O SNS – Uma obra maior da Revolução dos Cravos
“O maior feito da nossa democracia!”.
Não haverá consenso maior no país do que o enaltecimento do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Foi ele, de resto, que fez frente à pandemia do Covid 19, com os grandes privados abrigados à rectaguarda, à espera do fim, para caçar os despojos.
Alguns elogios, contudo, encobrem a vontade de o reduzir a uma complementaridade caritativa para os mais pobres, deixando o resto livre para o negócio.
Nos cinquenta anos de Abril, vale a pena relembrar o crescimento e declínio do SNS, condicionado por opções políticas.
A Saúde na ditadura
Álvaro Carvalho descreve assim a medicina rural em Portugal na primeira metade do século vinte que, no essencial, se manteve sem significativas alterações até aos anos 70, quando comecei a minha profissão de médico:
“A população rural era votada ao abandono e dependia de gestos de caridade (…) Algumas zonas dispunham de pequenos hospitais das Misericórdias. Era aí que os médicos praticavam a sua actividade. Não era raro que se dedicassem também à agricultura e o seu estatuto social permitia-lhe certas regalias, como o pagamento “em espécie” (…) Os doentes deslocavam-se à vila a pé ou de burro. Uma visita ao domicílio era um luxo ao alcance de poucos.”[1].
Os únicos hospitais ligados ao ensino médico-cirúrgico onde chegavam pontas da medicina moderna trazida do estrangeiro, situavam-se em Lisboa, Porto e Coimbra. Nas outras cidades e vilas, para além de pequenos e mal equipados hospitais geralmente ligados a Misericórdias, havia as “Caixas” (de Previdência) e os “médicos de partido”, pagos pelos municípios (sem o termo ter qualquer conotação política), a que depois se acrescentaram as Casas do Povo e Casa dos Pescadores, cobrindo apenas os beneficiários (que as pagavam), convivendo com organizações mutualistas e obras de “benfeitores” ligados ao regime, seguindo uma filosofia caritativa que não reconhecia a Saúde como um direito.
Dei os primeiros passos como Interno Geral no velho Hospital da Universidade de Coimbra (HUC) com enfermarias frias e húmidas onde doentes, desnutridos e desdentados, se estendiam nas camas de ferro entre pratos de lata amolgada e um cheiro a vomitado e a urina.
Depois da manhã passada nos Serviços de Medicina ou de Cirurgia, era nos bares das bombas de gasolina das saídas de Coimbra que se organizavam os grupos de médicos, cada um enchendo um carro (despesas divididas) para irem “fazer Caixas” numa mesma região de destino.
O contrato era individual com a distância paga em quilómetros e em tempo perdido. Por isso, quanto mais longe melhor, porque o pagamento-base era baixo e o que valia eram os acrescentos.
Se houvesse um colega local disponível para aí trabalhar, o pagamento (sem extras) não compensava a tarefa de “ver” a multidão de doentes.
Assim se estabelecera uma “desorganização” acéfala e gastadora, que nos parecia tão enviesada como imutável. Estranhamente, a administração das Caixas preferia esse absurdo e enorme dispêndio de dinheiro a subir a remuneração-base, como se estivesse mais interessada em pagar viagens que consultas.
A revolução de Abril e o início do SNS
Tendo terminado o curso em 1972, a minha vida profissional confundiu-se com o nascimento e desenvolvimento do Serviço Nacional de Saúde (SNS), um dos cravos mais brilhantes de uma revolução que arrancou da miséria e do atraso um Portugal afundado numa longa ditadura e na guerra que ela impôs.
O SNS, solidário, universal e gratuito, mudou tudo na Saúde do país e na vivência dos profissionais que o ajudaram a construir, levando o país para a linha da frente dos principais indicadores da Saúde. Uma espantosa epopeia que alcançou, em pouco tempo, objectivos antes apenas sonhados.
Foi nos primeiros anos após a libertação que, no terreno, a mudança na saúde se começou a sentir, com o Serviço Médico à Periferia (SMP) a espalhar jovens médicos pelo interior pobre, abandonado e, para muitos, desconhecido.
Foi nesse primeiro ano do SMP (1975) que desembarquei, com cinco colegas, numa pequena vila da Beira interior, começando a aprender a ser médico, largando, como um lagarto, a pele imberbe de estudante “licenciado em Medicina”.
No meio rural (como em muitas áreas das cidades), dominava a gente pobre, corpos magros, com roupa escura e gasta, cosida e recosida, pés descalços ou enfiados em toscas socas de madeira, olhos encovados, cravados em faces precocemente envelhecidas de onde surgiam poucos sorrisos nas bocas desdentadas.
Boa gente, triste gente, que trabalhava para sobreviver, ao sol, à chuva ou com neve, raramente recorrendo aos escassos mas prestigiados médicos “João Semana” da região, a quem poucos podiam pagar, procurando mais os “endireitas” e os “bruxos” (versão menos sofisticada das actuais “medicinas alternativas”).
A iniciativa de enviar jovens médicos para o interior mais pobre e abandonado do país, ultrapassou muito o projecto governamental inicial, assumindo aspectos notáveis de autonomia e auto-regulação colectivas, tornando a sua realização (mantida durante sete anos – 1975-1982) um caso exemplar de empenhamento na construção de um país mais justo e solidário, contrastando com o sentimento de desrespeito e desmotivação que mais tarde (e até aos dias de hoje) os governos do “arco do poder” conseguiram instalar.
É bom recordar que foram os médicos internos de Lisboa, Porto e Coimbra que, negociando com a tutela, impuseram a ida, não para os hospitais distritais, mas para os concelhos mais carenciados do interior, uma marca da sua história tal como hoje a recordamos.
Em poucos meses organizaram-se as condições de alojamento (por vezes precárias), e foi regulamentado o trabalho em regime de absoluta exclusividade, outra marca de água do Serviço Médico à Periferia.
O SMP foi um êxito e mostrou como o país podia mudar com o esforço colectivo, possibilitando cuidados médicos a milhares de portugueses até aí deixados ao desamparo.
A afirmação de Álvaro Carvalho[2] de que depois do SMP “a medicina portuguesa nunca mais voltou a ser o que era”, talvez possa parecer um exagero, mas em relação a cuidados primários e de proximidade no interior do país – que, a partir de 1982, deu origem à carreira de Clinica Geral, depois tornada Medicina Geral e Familiar -, não deixa de ser verdadeira.
Nas primeiras décadas, com o desenvolvimento das Carreiras Médicas (Hospitalares, de Saúde Pública e de Clínica Geral /Medicina Geral e Familiar) que vieram congregar o trabalho médico e os cuidados de saúde numa só organização coerente, gratuita e pública, o SNS alargou a prevenção e assistência a toda a população, possibilitando a adaptação a uma medicina moderna, multidisciplinar e tecnicamente avançada, que exigia maiores investimentos e unidades bem apetrechadas.
O trabalho no serviço público, apesar de pior remunerado do que “lá fora”, foi-se alargando no horário, estabelecendo-se como actividade principal, mais diferenciada, interdisciplinar e sofisticada, que permitia a progressão na carreira por concurso, onde se ensinava e se aprendia, e se traçavam planos de desenvolvimento para o futuro, com estabilidade e uma melhor reforma garantida.
A criação, no início dos anos 90, da opção de “dedicação exclusiva” ao SNS, constituiu outro passo decisivo para a fixação dos médicos no SNS, evitando desperdício de tempo e conflitos de interesse.
Nessas primeiras décadas, com a gestão democrática e eleição do Director do Hospital e Director Clínico, Carreiras Médicas estruturadas e o progressivo alargamento do regime em “dedicação exclusiva”, o progresso do SNS foi enorme:
Comecei, em 1983, como único especialista “fixo” e responsável do Serviço de Ortopedia do Hospital Pediátrico de Coimbra, num país com índices de mortalidade infantil do terceiro mundo (cerca de 40/1000 nascimentos), operando muitas vezes numa mesa de madeira da cozinha porque a mesa cirúrgica que existia não tinha um tampo radiotransparente que permitisse o RX.
Vinte anos depois, no virar do século, os indicadores da mortalidade infantil eram iguais aos da Suécia (cerca de 4/1000), a esperança de vida aumentara quase uma década, no Serviço havia um quadro de seis ortopedistas diferenciados em áreas específicas, a qualidade dos cuidados de enfermagem melhorara imenso, o Serviço estava bem equipado fazendo praticamente tudo o que se fazia nos grandes centros estrangeiros, nomeadamente a grande cirurgia da coluna e o tratamento dos tumores malignos ósseos.
Em 2001, o SNS português foi considerado, pela Organização Mundial de Saúde, o 12º do mundo na qualidade de assistência prestada aos seus cidadãos, bem à frente do invejado NHS inglês (18º), da Alemanha (25º) e dos Estados Unidos (37º), atingindo talvez o seu ponto mais alto antes de entrar em perda.
Declínio do SNS e crescimento da grande privada
Se até aos anos 90, e apesar das dificuldades de um país ainda a sair do atraso, o SNS esteve sempre a crescer, nas décadas seguintes (com uma Lei de Bases privatizadora) assistiu-se à inoculação no serviço público do pior que há na lógica do sector privado: subfinanciamento, taxas moderadoras prioridade ao “lucro virtual” e à pressão para desmultiplicação dos actos com manipulação de números e estatísticas, fim da “dedicação exclusiva”, fragmentação de serviços e equipas, domínio autocrático de uma gestão partidarizada cheia de “espírito empresarial” com secundarização do doente e das prioridades clínicas.
A nova gestão “moderna” e “por objectivos”, não hesitou em fraccionar a coerência organizativa de hospitais e centros de saúde, com contratos individuais, avaliações sem sentido e formas de organização “autónomas” (como as USF tipo A,B,C e os CRI agora na moda), estimulando a drenagem de doentes e de dinheiro para a grande privada.
Assim foi emagrecendo o SNS com fusões e encerramentos, deixando os grandes grupos privados ocuparem uma cada vez maior fatia do “mercado”, graças a um verdadeiro “pacto de regime” PS/PSD que lhes assegurou a subsidiação do estado sem a qual não seriam rentáveis.
E enquanto a paisagem urbana se foi enchendo de anúncios de clínicas e seguros ligados a grandes grupos financeiros, os ideólogos do “arco da governação” (PS, PSD e CDS) deixavam de investir no sector público “para salvar a sustentabilidade do SNS e do país”, lamentando depois as suas falhas.
Paradoxalmente (ou talvez não), em Portugal, como na Inglaterra de Thatcher e Blair, só quando o aumento da riqueza do país tornou apetecível o negócio da saúde é que a sustentabilidade financeira do SNS passou a ser posta em causa por uma direita ávida de privatizações.
Contudo, enquanto a esperança de vida em Portugal passou a estar acima da média da União Europeia (P – 81,1 / UE – 80,6, em 2022), a despesa pública nas despesas de saúde foi, em 2019, antes da pandemia, quase 20 pontos abaixo da média da UE (P – 61%, UE – 79,7%), com um gasto per capita de 2.314 euros, muito abaixo da média da “Europa” (3.523 euros), enquanto o que sai directamente do bolso dos cidadãos (30,5%) é o dobro dos países da UE (15,4%), mostrando que o SNS português é muito barato, talvez até demasiado barato por falta de investimento.[3] [4]
Hoje, é evidente que, com todas as “revoluções” de organização e gestão do SNS levadas a cabo pelos partidos do poder, os problemas têm vindo a agravar-se, por desestruturação da sua coerência organizativa e fuga dos seus recursos humanos (nos últimos cinco anos, vinte mil profissionais, dos quais, 5.043 médicos, abandonaram o SNS – DN, 7-2-24).
Torna-se, pois, necessário abandonar a política neoliberal de privatização dos serviços públicos, voltando ao espírito da época fundadora do SNS, quando se queria construir um país mais solidário e justo, e havia condições políticas para o fazer.
Não é com apelativos “cheques-consulta”, “cheques-cirurgia” ou outras falaciosas medidas que reforçam o sector privado, que a saúde dos portugueses e o SNS ficam melhores.
Bastaria restabelecer a gestão democrática das unidades do SNS, abandonando a ganga ideológica “empresarial” injectada no serviço público, repondo remunerações dignas, o vínculo à função pública, as carreiras médicas e o regime de “dedicação exclusiva” nos moldes que existiram até 2009 (e não a “dedicação plena”, um regime inventado para confundir), alargando a cobertura da saúde oral, saúde mental e dos cuidados continuados, para o SNS melhorar a resposta e voltar a tornar-se atractivo para os seus profissionais.
É disso que o país necessita e é isso que só uma política patriótica e de esquerda pode assegurar.
Notas: [1] “Médicos e Sociedade – Para uma História da Medicina em Portugal no século XX”, Ed. By the Book, 2017 [2] “Médicos e Sociedade – Para uma História da Medicina em Portugal no século XX”, Ed. By the Book, 2017 [3] “Estado da Saúde na UE – Portugal”, relatório da OCDE/UE, 2021 [4] Em 2023, o governo só gastou 43,2% da despesa orçamentada para a Saúde (relatório da Unidade Técnica de Apoio à Assembleia da República de 26-2-24).