TESTEMUNHOS DE ABRIL – “«Recuperar o povo»”
A Companhia de Teatro de Almada assinala o cinquentenário da Revolução de 1974 com a criação de um espectáculo: «A sorte que tivemos – Um espectáculo sobre Abril», com textos de António Cabrita, Jacinto Lucas Pires, Patrícia Portela, Rui Cardoso Martins, e encenação de Teresa Gafeira. A 12 de Abril, o dia em que estreamos este nosso 191.º espectáculo, inauguramos também a segunda das quatro exposições que coapresentamos este ano com o Arquivo Ephemera, intitulada «A liberdade pelos olhos do teatro». Foi na pesquisa para esta mostra — que incluirá informação sobre as campanhas de dinamização cultural do Movimento das Forças Armadas, levadas a cabo entre 1974 e 1976 — que descobri alguns dados que me levaram a reflectir sobre as eleições legislativas de 10 de Março, cujo resultado já será conhecido quando este texto for publicado. Na verdade, um conjunto de documentos do Arquivo Histórico Militar conduziu-me à tal pergunta assaz retomada por estes dias: o que é que a esquerda fez de errado nos últimos cinquenta anos para que assistamos agora, interditos, à prosperidade da extrema-direita em Portugal?
Logo após os acontecimentos de Abril de ‘74, as campanhas de dinamização cultural do MFA procuraram divulgar o programa político deste movimento, esclarecer as populações rurais quanto à importância de participar nas primeiras eleições livres, e conferir uma dimensão verdadeiramente nacional à Revolução. Realizaram-se mais de 2.000 acções deste tipo, sobretudo no Norte. Procurava-se restabelecer a confiança entre o povo e os militares, que durante os últimos treze anos haviam servido o regime fascista nas três frentes da guerra colonial. Na verdade, a forma de actuar destes jovens soldados inspirava-se ainda nas recorrentes ‘acções psicossociais’ que haviam levado a cabo junto das populações autóctones, em África. Para além das sessões de esclarecimento cívico e de animação cultural — concertos, pintura de murais e actuações teatrais —, estes grupos de militares ocuparam-se também quer da construção de infraestruturas básicas (saneamento, estradas, equipamentos desportivos), quer da prestação de apoio médico-sanitário e veterinário. Numa directiva do Estado Maior do Exército, datada de 6 de Fevereiro de 1975 e assinada pelo general Carlos Alberto Fabião, pode ler-se que:
“[A finalidade destas campanhas consiste em] recolher o máximo de informações sobre o quadro de vida dessas populações, especialmente as suas motivações mais profundas, ressentimentos, anseios e necessidades prementes”.
Ainda nesse documento, batido à máquina em folhas A4 verdes e com o carimbo vermelho de “RESERVADO”, pode ler-se adiante a seguinte “recomendação especial”:
“É notável a personalidade do homem rústico, mesmo iletrado, mas possuidor de uma cultura empírica, de um conhecimento da vida que lhe faculta poder de análise, senso prático, confiança em si próprio e profundas e arreigadas convicções sobre os conceitos que regem a comunidade em que vive. Por isso é errado o jovem militar, educado nos grandes centros à base da teoria escolar, pensar e agir num plano de superioridade em relação a este homem”. (Sublinhado meu)
Se hoje em dia expressões como ‘superioridade moral da esquerda’, ‘esquerda caviar’ ou ‘esquerda urbanista’ são utilizadas sobretudo por jornalistas e comentadores de política, considerados liberais ou de direita, para criticar algumas posições (sobretudo de índole moral) de partidos de esquerda, não posso deixar de fascinar-me com a clarividência deste general do MFA, na altura com 44 anos, que recomenda ainda o seguinte aos seus soldados: “Há que ser humilde nos contactos: os militares têm muito que ensinar mas também têm muito que aprender”. Carlos Fabião alertava os seus subordinados, que haviam acabado de protagonizar a alteração do regime, para jamais se alcandorarem acima do povo. Eis uma directiva que os agentes políticos de hoje em dia poderiam cumprir — e geralmente não cumprem. Mesmo nos partidos de esquerda, abundam exemplos de quem não resiste a sentir-se acima do povo — ou das ‘pessoas’, como soe dizer-se nestes tempos ‘novilínguos’.
No mesmo acervo militar sobre estas campanhas do MFA existe um “relatório da sessão de prospecção efectuada em 16 de Janeiro de 1975 na freguesia de Alqueva”, assinado pelo tenente-coronel de infantaria Artur de Sá Seixas, no qual se lê que:
“Os elementos da população manifestaram a existência de estrumeiras a cerca de 70 metros das casas de habitação. Mais me encarrega Sua Exª. o Brigadeiro Comandante da Região, de solicitar a valiosa acção de V. Exª. para a possibilidade de resolução deste problema”.
Outros documentos deste tipo respeitantes a acções noutras localidades dão conta de diferentes aspirações da população rural, tal como a carência de instalações eléctricas ou a necessidade da construção de escolas. Mas eu detive-me neste problema das estrumeiras, porque, sendo ele aparentemente prosaico, também me pareceu que fosse paradigmático da fenda a partir da qual os populistas intentam hoje arrombar a nossa democracia.
Muito se tem escrito acerca da transferência de votos para a extrema-direita por parte de eleitorados tradicionalmente de esquerda. Em França este fenómeno tem ocorrido, por exemplo, sobretudo em zonas desindustrializadas, como Reims. A este respeito, leia-se dois livros já editados em português: «Regresso a Reims», de Didier Eribon, e «Quem matou o meu pai», de Édouard Louis.
Ora, parece-me notório que em Portugal os filhos e os netos do tal “homem rústico, aparentemente iletrado”, que até há pouco tempo votavam à esquerda, se cansaram de que os seus representantes no Parlamento — também educados “nos grandes centros à base da teoria escolar”, tal como os militares das campanhas do MFA na década de 70 — não só não lhes resolvam os seus problemas, por mais triviais que se apresentem, como também os considerem uns bárbaros, racistas e retrógrados. Seguem-se três exemplos de como a esquerda tem levado os filhos e os netos do “homem rústico”, naturalmente arreliados, a votarem na extrema-direita:
I – Quando uma ministra da cultura do Partido Socialista defendeu no Parlamento que a questão das touradas não era “cultural, mas sim civilizacional”, chamou-lhes trogloditas, aviltando uma identidade centenária. Se essa ministra ‘citadina’ alguma vez tivesse tido o mínimo interesse em averiguar como realmente se vive numa aldeia alentejana, ter-se-ia dado conta de que as festas de Verão — com as suas procissões, romarias e garraiadas, que ela certamente consideraria primitivas — são literalmente o único acontecimento cultural do ano. Cancelados toiros e padres, não fica nada.
II – É fácil acusar alguém de ser racista por não querer coabitar com comunidades ciganas, sobretudo quando nunca se teve ciganos como condóminos. A convivência com culturas e modos de vida nalguns casos opostos aos nossos é um problema delicado e complexo, para o qual intuo não existir uma solução plena. Mas varrermo-lo para debaixo do tapete e assobiar para o lado, como se tem feito nos últimos 50 anos, limitando-nos a considerar racistas os filhos e os netos do “homem rústico” que se queixam desse incómodo, não me parece justo.
III – Os filhos e os netos do “homem rústico” precisam de que, pelo menos, haja professores nas escolas públicas frequentadas pelas suas proles — não precisam de que a esquerda se entretenha a discutir se as casas de banho dessas escolas hão-de ter, ou não, urinóis; os filhos e os netos do “homem rústico” precisam de médicos nos hospitais das zonas onde moram, quando os haja, porque têm medo de que lhes dê o tanglomanglo e morram — não precisam de que a esquerda se dedique a aferir se eles têm ou não direito a deixar-se morrer; os próprios ‘homens rústicos’, que provavelmente combateram no ultramar e festejaram depois o 25 de Abril, nem devem saber da existência de uma Biennale em Veneza, e que o Estado português mantém lá um pavilhão pago com os seus impostos — mas se alguém lhes contasse que a propósito do cinquentenário da Revolução dos Cravos esse pavilhão é este ano dedicado a celebrar a figura de Amílcar Cabral, acredito que tanto esses ‘homens rústicos’ como os seus filhos e netos ficassem de alguma forma agastados.
Acontece que na última década, na senda do que se tem passado noutros países, surgiu em Portugal uma vaga populista de extrema-direita que não tem feito mais do que aproveitar-se dos sucessivos erros daquela esquerda que substituiu a ideologia pela identidade. Como se de repente tivesse deixado de haver pobres no País. Como se por milagre nos pudéssemos dar ao luxo de não nos preocuparmos com as questões mais prementes das vidas dos cidadãos, para nos recrearmos — por vezes literalmente — a discutir o sexo dos anjos. Ainda nos lembraremos do premente movimento que se formou para rebatizar o Cartão do Cidadão, de forma a torná-lo mais “inclusivo”? Se nessa altura a extrema-direita era ainda residual no Parlamento, daí para cá — ‘hélas!’ — tornou-se na nossa terceira força política.
Pois bem: parece-me que o povo português está verdadeiramente cansado de que os decisores políticos se preocupem mais a tratá-lo por ‘pessoa’ (em vez de ‘cidadão’, um conceito que desapareceu dos discursos da última campanha) do que a proporcionarem-lhe uma existência condigna. Considero abjecto propugnar o veganismo diante de quem ainda passa fome — talvez porque traga nos genes as privações da geração anterior à minha, que só comia carne pelo Natal. O povo português não é as ‘portuguesas e portugueses’ com que hodierna e invariavelmente os líderes da esquerda iniciam os seus discursos. É povo: este nosso povo que é pobre (embora menos), iletrado (embora menos) e que tem convicções (cada vez menos) como há 50 anos atrás.
Então, e o que há-de fazer a esquerda para recuperar o voto do povo? Não sei. Mas poderia começar por assumir os seus erros e passar a olhá-lo de igual para igual, pelo menos. Tal como fez, de resto, a tropa do MFA há meio século atrás, quando foi anunciar ao povo do interior do País que tinha havido um golpe militar em Lisboa, e que a Revolução em curso nesse momento era também a sua.