O 25 de Abril – um ato de independência na História de Portugal

Oficialmente todos os povos têm uma história gloriosa que se inicia habitualmente por uma luta de libertação contra outros povos considerados opressores. Estes atos são designados por Independência, Libertação, Restauração e significam que um dado povo conquistou a sua Soberania. Decidiu o seu presente e o seu futuro. Inventa uma bandeira, um hino e nomeia um padroeiro.

A realidade é, no entanto, bem diferente. Todos os povos, e as entidades políticas que os governam, os estados na modalidade que a Europa do pós-revolução francesa estabeleceu como padrão mundial, que são dependentes, a soberania de um Estado é apenas a liberdade concedida e reconhecida pelos outros estados. São muito raros os momentos em que um Estado agiu de forma soberana. A história dos estados assenta sempre nas relações de vassalagem que os historiadores classificam como dependências e alianças.

No caso de Portugal, a independência do condado portucalense é um ato determinado pelos interesses dos ingleses em manterem o controlo da fachada atlântica nas suas rotas para o Mediterrâneo e pela inconveniência de terem um inimigo unificado, Castela e Galiza, que lhes negasse ou dificultasse o apoio aos seus navios. A instauração da dinastia de Avis após a crise 1383-85 resulta dos interesses ingleses em evitar, de novo, uma reunificação peninsular sob a tutela de Castela. Para isso enviaram Filipa de Lencastre para Portugal, uma mulher extraordinária, que traçou a estratégia de expansão marítima de Portugal enquadrada na estratégia da Inglaterra de domínio da entrada do Mediterrâneo. Daí a primeira expedição ter sido Ceuta e não uma praça no Atlântico.

Será na dependência da Inglaterra que Portugal restaura a independência em 1640, que concedeu o livre acesso dos ingleses aos portos do Brasil, que resistiu às invasões francesas, que recebeu o seu quinhão de colónias na Conferência de Berlim, que participou na Grande Guerra, na Guerra Civil de Espanha, na Segunda Guerra Mundial e, finalmente, na guerra colonial em África, que tinha como objetivo final a criação de uma África Austral Branca, incluindo Angola, Moçambique, África do Sul, Namíbia e Rodésia, um plano que recebeu o nome de código de Exercício Alcora.

Desde a fundação da nacionalidade, no século XII, as elites portuguesas foram vassalas de Inglaterra e Portugal, apenas com a exceção do reinado de João II, integrou a ordem que os grandes poderes europeus impuseram. Quanto ao povo, o povo nunca teve participação significativa na definição do destino do seu país, desde sempre oprimido entre uma aristocracia servil e uma Igreja promíscua e corrupta. A dependência da Inglaterra não permitiu a emergência de uma burguesia comercial autónoma, um facto que a Inquisição, com a expulsão dos judeus, agravou.

Apesar das várias consagrações à Senhora da Conceição desde 1189 como a padroeira de Portugal, no início do século XX a esperança de vida era a mais baixa da Europa, o sistema de saúde assentava na sorte do Deus dará e na caridade das Misericórdias, as infraestruturas básicas eram medievais, desde as vias de comunicação ao saneamento, não existiam sistemas de esgotos, e a industrialização morrera à nascença com o Tratado de Methuen, o analfabetismo atingia números chocantes quando comparados com os outros estados europeus, a indústria têxtil, vidreira, do papel, os transportes ferroviários, marítimos encontravam-se nas mãos de ingleses. As matérias-primas das colónias, o café, o chá, o algodão, o tabaco e os diamantes eram negociadas em Londres. O Ultimato inglês resultou do facto da ocupação de uma pequena parcela de território no interior de África interferir com o plano de Cecil Rhodes de unir sob a soberania inglesa a cidade do Cabo ao Cairo. A pobreza obrigava a vagas de emigração. A mais emblemática e rentável companhia colonial, a Diamang, era uma empresa do grupo Anglo-American Corporation, das famílias Rothschild e Rockefeller.

O Estado Novo, apesar da retórica do orgulhosamente sós, da atração de Salazar pelo nazismo e pelo fascismo, foi sempre vassalo e obedeceu às orientações de Londres, a potência imperial. Foram os ingleses que impuseram a continuidade de Salazar no governo após a Segunda Guerra, preferindo-o ao perigo de entrarem “comunistas” no governo (Abrilada 1947). O regime português do pós-Segunda Guerra foi determinado pela Inglaterra e pelos Estados Unidos.

Este é um pequeno resumo da secular vassalagem das elites portuguesas às potências dominantes, uma vassalagem que se prolongou durante a guerra colonial, em que o Estado português passou pela humilhação do bloqueio do Porto da Beira, em Moçambique, por uma esquadra inglesa, mas que não impediu uma viagem de Marcelo Caetano a Londres para celebrar a secular aliança Luso-Britânica!

Ao contrário do que tem sido veiculado como discurso oficial, os Estados Unidos tinham um plano para resolver a questão colonial portuguesa, que Kissinger resumiu num briefing: é necessário correr com os portugueses e eles apenas percebem a linguagem da força. Também durante a guerra Israelo-árabe, quando Marcelo Caetano tentou jogar com a autorização de aterragem dos aviões americanos que transportavam armamento para Israel para obter fornecimento de armamento, o embaixador dos EUA informou o primeiro-ministro português que era melhor conceder rapidamente a autorização porque os aviões já haviam descolado e iriam reabastecer nas Lages.

O 25 de Abril de 1974 apanha de surpresa os “senhores” que sempre haviam tomado o Estado Português como um manso vassalo em que os seus dirigentes iam às capitais europeias de chapéu na mão pedir orientações políticas e comissões para os negócios. Os serviços de informação dos Estados Unidos e das grandes nações europeias, a Inglaterra e a França em particular, estavam focados noutras origens, naquelas que eles habitualmente dominam.

Para os estados dominantes, a mudança em Portugal seria protagonizada por um general e este estava escolhido: Spínola. A receita do costume. Seguir-se-ia um regime de vassalagem com uma aparência de democracia, umas eleições disputadas por partidos de confiança, um parlamento e a manutenção das tradicionais linhas de subordinação estratégica e económica. O que estava previsto – e daí a displicência com que os agentes estrangeiros analisam os primeiros dias da revolução – seria um regime presidencialista, alinhado pela NATO, com a economia e a banca nas mãos das famílias tradicionais. Um regime escovado do povo. Tal era a confiança no servilismo português que em 25 de Abril o embaixador americano nem se encontrava em Lisboa e os serviços de informações se interrogavam sobre quem eram os chefes do golpe!

O 25 de Abril de 1974 foi e é o único ato político em que um grupo com força e consciência política dos problemas de Portugal age de forma autónoma e sem pedir autorização, conselho ou cumplicidade do estrangeiro!

O 25 de Abril de 1974 constituiu o único momento da História de Portugal em que se cumpriu a afirmação de Camões no final de Os Lusíadas quando escreve a invocação final a D. Sebastião, numa premonição de decadência:

Fazei, Senhor, que nunca os admirados
Alemães, Galos, Ítalos e Ingleses,
Possam dizer que são pera mandados,
Mais que pera mandar, os Portugueses.

A inaudita autonomia dos “capitães de Abril” relativamente aos tradicionais mandantes é o primeiro facto que excecionaliza o 25 de Abril. A NATO e o seu comando supremo dos Estados Unidos ficaram de fora, assim como a França, com quem Portugal mantinha uma forte cumplicidade na política ultramarina, tal como a Alemanha, além da Grã-Bretanha e da vizinha Espanha. E a revolução portuguesa devia ser levada a sério, porque provocava repercussões no flanco sul da NATO, na Grécia (ditadura dos coronéis), na Itália (compromisso histórico democracia Cristã-Comunistas); em França – agitação laboral e frente de esquerda e em Espanha, com o final da ditadura de Franco, moribundo.

O clássico golpe militar, o putsch, em que uma Junta de chefes militares, em grande uniforme, garante a nova ordem, transformou-se rapidamente num processo revolucionário com a entrada do povo, do movimento popular, nas transformações políticas e sociais. Essa entrada ocorre logo no dia 25 de Abril quanto Otelo Saraiva de Carvalho autoriza Salgueiro Maia a deixar entrar o povo no Largo do Carmo.

A autonomia do processo político do 25 de Abril evoluiu para a ameaça de revolução com o apoio que as Forças Armadas conferem, através do COPCON, ao movimento popular e é um ato herético, uma ofensa ao dogma imposto pelos Estados Unidos e que ingleses, com Churchill, alemães, com Adenauer, a França, com De Gaulle haviam aceitado de chefiarem regimes vassalos.

O final da Segunda Guerra instaurou na parte ocidental da Europa sob domínio americano um novo modelo de regime caraterizado pelo acréscimo de direitos sociais, férias, previdência, sistemas de saúde, de educação e por direitos políticos, alargamento da base eleitoral com o acesso geral das mulheres ao voto que tornaram este modelo uma vacina contra as tentações dos trabalhadores optarem pelo socialismo, mas em Portugal, uma sociedade com um proletariado industrial reduzido e que nunca tivera direitos, com o final da guerra colonial e a desmobilização de cerca de duzentos mil jovens a atração por novas formas de democracia e de exercício do poder existiam. O fenómeno político que ficou conhecido como a Aliança Povo-MFA ultrapassou as barreiras do aceitável pelos “senhores da ordem ocidental” estabelecidos após a Segunda Guerra e assustou as oligarquias europeias do que hoje assumiu o título de Ocidente Global.

O processo político português, a partir da resignação do general Spínola em Setembro de 1974 e até ao 25 de Novembro de 1975 é uma luta sem tréguas nem regras (terrorismo incluído) contra a autonomia e a independência de um povo, que criou um movimento popular e foi apoiado pelas forças armadas sob o comando de uma nova estrutura, o COPCON.

O argumento de que as “forças democráticas” lutavam contra a imposição de uma nova ditadura é uma vulgar falácia típica da propaganda anticomunista da Guerra Fria, bem descrita por Melo Antunes e que teve dois momentos teatralmente culminantes, um no comício da Fonte Luminosa convocado por Mário Soares e o outro no arrombamento do portão do quartel da Ajuda por uma Chaimite dos Comandos às ordens de Ramalho Eanes a partir da Amadora.

A divisão da Europa em zonas de influência entre os Estados Unidos e a URSS fora estabelecida em 1945 na Conferência de Potsdam e as duas superpotências jamais violaram o acordado, os Estados Unidos não intervieram na Hungria nem na Checoslováquia, do mesmo modo que a URSS, se absteve de intervir nas ditaduras bananeiras instaladas pelos Estados Unidos na América do Sul. Na ata final do Acordo de Helsínquia, no Verão de 1975, ficara estabelecido entre Gerald Ford, o presidente dos Estados Unidos, e Brezhnev, da URSS, que Portugal se manteria no campo ocidental, NATO incluída.

A conjugação do movimento popular e do apoio do COPCON, que marcaram a especificidade da revolução portuguesa de 25 de Abril de 1974 a 25 de Novembro de 1975, a afirmação de liberdade e de soberania popular sem a tutela de “cabos políticos” dos aparelhos partidários não eram aceitáveis pelas democracias ocidentais. O movimento popular colocava em causa o domínio do Estado sobre a sociedade, que é o dogma em que assentam os atuais regimes de democracias iliberais.

O 25 de Novembro de 1975 marcou o regresso à vassalagem internacional de Portugal, e, internamente, a imposição de um regime de representação partidária que limita, quando não exclui, a intervenção dos cidadãos no governo da sociedade e na definição do seu futuro, mas não livra de sofrer os resultados das decisões das velhas e novas classes possidentes, que se apropriaram do poder do Estado e que em nome dele realizam os seus negócios e fabricam as suas fortunas.