Editorial

Edição Nº 1745 - Inverno 2018

Dinheiros públicos, contas direitas


“Os ladrões de bens particulares passam a vida na prisão e acorrentados; os ladrões de bens públicos, (passam a vida) nas riquezas e nas honrarias”, assim proclamava Catão, o Velho, em Roma, nos tempos da República.

A afirmação ganha, na actualidade, toda a sua força expressiva, pelo facto de que aumentaram “as riquezas e honrarias”, que emanam, directa ou indirectamente, do exercício do poder político, assim como aumentou, como consequência, a promiscuidade entre interesses privados e serviço público.

"Aumentaram “as riquezas e honrarias”, que emanam, directa ou indirectamente, do exercício do poder político"

Não se ignora que, na época actual, cresceram exponencialmente as necessidades colectivas, decorrentes do próprio desenvolvimento económico-social e do processo de democratização das sociedades que alargam a área de intervenção do Estado e cuja satisfação requer cada vez maiores recursos financeiros e técnicas de gestão, cada vez mais sofisticadas.

Face a esta realidade, os poderes públicos têm procurado as respostas, enfeudados, porém, ao quadro do sistema de valores dominantes, ou seja, imbuídos de concepções neoliberais que defendem dever o Estado reduzir-se à sua expressão mínima, apenas com competências nos poderes de soberania (entretanto, em grande medida usurpados, por integração em espaços económicos e políticos mais amplos), reservando para a proclamada “sociedade civil” a resolução das necessidades colectivas emergentes, designadamente, nos domínios da educação e ensino, saúde, segurança social, infância, 3ª idade, etc.

E, assim, entre nós, cresceu e prosperou o chamado “terceiro sector” da economia que, fundamentalmente, se caracteriza pela criação de instituições de direito privado de diverso tipo, conforme os objectivos sociais a prosseguir, mas cujo funcionamento depende, em grande medida, do financiamento do Estado.

A verdade, porém, é que este fenómeno de satisfação de objectivos e interesses privados com dinheiros públicos, excede em grande extensão o funcionamento do designado “terceiro sector” e, particularmente, o funcionamento das IPSS, Instituições Particulares de Segurança Social, agora na mira da comunicação social, para se revelar, em toda a verdadeira expressão, nas Parcerias Público-Privadas, na salvação de bancos falidos, nos subsídios a granel, nas isenções de impostos, etc., etc.

Os argumentos com que se pretende justificar esta perversão do papel do Estado são conhecidos. No entanto, tais argumentos são, em verdade, meras falácias legitimadoras do sistema instituído, com os quais se procura ilidir o que verdadeiramente está em causa, a saber, a efectivação de interesses privados, com o uso e abuso de recursos públicos. Proclamações como “o Estado não pode chegar a todo o lado” ou “o Estado é mau administrador” e outras afirmações idênticas não passam, assim, de um filtro ideológico, com o qual se quer encobrir a realidade, ou seja, a obtenção de lucros privados com dinheiros públicos.

Em abono da verdade, deve referir-se, no que respeita ao terceiro sector e, em particular às IPSS que, de facto, não se pode, nem deve, confundir a árvore com a floresta, pois, em muito casos existirá, neste sector, genuína vontade de serviço púbico, actuações transparentes e inegáveis benefícios para a sociedade. A razão de ser destas linhas, mais do que juízos morais sobre esta ou aquela actuação, trazida às primeiras páginas da comunicação social, assenta, sobretudo, na preocupação de procurar defender o Estado democrático, bem como os organismos que dele dependem, seja qual for a sua natureza jurídica, da possibilidade de “colonização” por interesses espúrios.

Nesta perspectiva, importa assinalar que a promiscuidade entre o poder político e as instituições que dele dependem, as redes de amiguismo e fenómenos de nepotismo e favorecimento têm vindo a agravar-se na sociedade portuguesa, não por qualquer razão de atávica falta de ética colectiva que esteja inscrita no desígnio ou destino dos portugueses. Nesta matéria, os portugueses não serão melhores, nem piores que os restantes povos, com o mesmo nível de desenvolvimento.

A trivialidade de tais fenómenos deverá, pelo contrário, ser procurada na actuação dúplice do sistema económico vigente, que vitupera e abjura o Estado, quando este intervém na economia, no uso das suas legítimas funções e, por razões de interesse público, condiciona a acção do mercado e da iniciativa privada, designadamente, em matéria de concentração monopolista, mas, por outro lado, lança mão do Estado, sem escolher meios, quando se trata de salvar o lucro das empresas e a acumulação ilegítima de riqueza.

Acresce que a sociedade portuguesa, ao longo de séculos, foi uma sociedade atrasada, sem colher imediatamente dos benefícios da revolução industrial e, de alguma forma, foi sempre uma sociedade enjeitada pela modernidade cultural, científica e técnica, permanecendo ainda hoje, na memória colectiva, o confrangedor atraso que o “ruralismo” salazarista atirou ao País, com a sua política de protecção dos monopólios e condicionamento industrial, bem como, o caciquismo, a dependência, o amiguismo, o favorzinho, enquanto regras (ainda que informais) de funcionamento da sociedade e de promoção social.

Apesar dos avanços extraordinários, após o 25 de Abril de 1974, a verdade é que a sociedade portuguesa continua a ser pobre e dependente, com a grande maioria da população com níveis de bem-estar muito deficientes, para quem “singrar na vida”, conforme os modelos sociais dominantes constitui fundamento de realização pessoal. Neste contexto, estranho seria que as mazelas e entorses sociais inerentes ao fenómeno da corrupção não se fizessem sentir, como doença endémica, que corrói a sociedade e a democracia portuguesa.

Compete a todos nós e, em especial, àqueles que assumem maiores responsabilidades na esfera política, económica e social, lutar pela sua prática e exemplo, contra estes fenómenos degradantes da sociedade e indignos da Revolução de Abril, tendo sempre bem presente que a “ética política” é um conceito mais vasto e exigente do que o estrito cumprimento da lei.