Sinais do fogo ou Lisboa e a paisagem

Cinquenta anos separam duas das maiores tragédias que marcaram, no nosso tempo, a história do país: as inundações de 1967, na região de Lisboa, com centenas de mortos e enormes prejuízos materiais, e os fogos florestais do Verão/Outono de 2017, com mais de cem mortos e danos materiais incomparavelmente superiores àqueles. Quase meio país ardido, o Pinhal de Leiria ardido.

Entre as duas desgraças, a profunda alteração ocorrida no país, com o fim da ditadura do “orgulhosamente sós”, das fronteiras passadas “a salto”, do lápis azul da Censura, e com o advento da democracia do espaço Schengen, da informação em tempo real, livre – mas ambas, afinal, retratadas na foto de Adriano Miranda (Público, 17/10/2017), colhida na aldeia de Ventosa, do concelho de Vouzela.

O olhar vazio do Cristo da Ventosa, pregado à cruz do seu cajado de pastor, ou ao cabo da sua sachola de camponês, a quem o lume tudo levara, interroga o país e cada um de nós: “por que me abandonaste?”. Essa imagem de abandono, de desamparo, de miséria pura e dura, é transversal às tragédias de 1967 e 2017. Noutro país, o mesmo país, no qual, salvaguardadas as devidas distâncias, permanece em boa medida o desconhecimento da realidade do Portugal profundo, o velho dito de que Portugal é Lisboa e o resto é paisagem.

A catástrofe de 2017 constitui a grande oportunidade de alterar essa mentalidade, de repensar o país. Alguma displicência, se não mesmo desatenção ou até insensibilidade política, por parte do Governo, a seguir aos fogos de Junho, não deixou de se reflectir na inoperância das forças da Protecção Civil aquando da vaga de incêndios que, a partir de 15 de Outubro, destruiu, como que à vontade, boa parte da floresta, e não só, em distritos do Centro e do Norte.

A violência e a dimensão da desgraça que assolou o país fizeram disparar o sinal de alarme que mobilizou competências – que não faltam, que nunca faltaram – para que o mesmo não volte a acontecer. Cientistas, académicos e especialistas de toda a ordem na matéria produziram ou reproduziram estudos, relatórios e modelos de previsão, no sentido de se impedir, ou limitar, a repetição de semelhantes ocorrências. Ponto, agora, é que essa avalanche de informação sirva, realmente, para os fins que, de há muito, a justificavam.

 

Vão surgindo sinais de que a realidade que, na área da protecção civil, impunha os fogos de Verão como calamidade anual inelutável, está a ser sacudida – não apenas com produção legislativa adequada mas, principalmente, com obra no terreno. Terá, porém, que ser um abanão mesmo a sério, que comece por vencer poderosos interesses instalados, cujo levantamento, aliás, está feito. Realce-se, na matéria, o que vem sendo dito, escrito e começado a discutir, quanto ao envolvimento das Forças Armadas no sistema de protecção civil. Como era de esperar, já se agita o espectro da inconstitucionalidade das medidas a tomar, alega-se que põem a tropa a comandar paisanos. É óbvio que não se trata, fundamentalmente, disso, nem de pôr quaisquer militares, sem preparação adequada, a intervirem em operações complexas e de alto risco. Trata-se, antes, de levar à prática aquilo que a Constituição da República impõe quanto à defesa do território, ou seja, à defesa nacional, e isso está ao nosso alcance, com esta Constituição, se interpretada e aplicada com inteligência e com determinação. É só quererem.

Essencial é que o actual regime semipresidencialista seja respeitado, que a separação de poderes constitucionais permaneça intocável. Ora, no delicado equilíbrio político em que assenta a actual solução de Governo do Partido Socialista tem sido patente que, na sequência dos fogos florestais de 2017, com o Governo a não alcançar devidamente as enormes consequências da tragédia de Junho, o Executivo proporcionou ao Presidente da República um espaço que este não desaproveitou para vir forçando uma interpretação dos poderes presidenciais que nenhum dos seus antecessores tinha ousado. Para a boa saúde da República há então que cuidar que sejam contidos quaisquer ímpetos de incontinência presidencial que possam revelar vontade ou intenção de passar das marcas impostas pela Constituição.