Europa: O todo e as partes
Europa: O todo e as partes
No livro recentemente publicado Adults in the room: my battle with Europe’s deep establishment[i], Yanis Varoufakis, o ex-ministro das Finanças grego durante o primeiro semestre de 2015, usa expressões como “colónia da dívida”, “tortura orçamental” ou “golpe de Estado financeiro” por parte do Eurogrupo, Banco Central Europeu e FMI, para caraterizar a situação a que o seu país se viu sujeito. É aí relatado um episódio particularmente ilustrativo da deriva “pós-democrática” da União Europeia. Foi quando Wolfgang Schäuble, o superpoderoso ex-ministro das Finanças alemão que patrocinou a imposição das mais severas condições para o resgate da Grécia, confidenciou a Yanis Varoufakis que, se estivesse no seu lugar, não assinaria o memorando da troika: “Como patriota, não [assinaria]. É mau para o seu povo.” [ii] A conversa, que decorreu em Berlim no gabinete de Schäuble, demonstra bem o grau de desrespeito entre países e a permanente chantagem negocial presentes na Europa comunitária. Mais do que isso; revela o profundo mal-estar entre os europeus por causa da União Europeia. Apresentando um sintoma claro – a descrença – esta doença tem um nome bem evidente: défice democrático.
O défice democrático
Não é de agora esta desconfiança no seio da União, reflexo daquela “Europa desencantada” de que fala Eduardo Lourenço. O défice democrático que tem presidido à construção europeia, pelo menos desde Maastricht (1992), implicou um decisivo afastamento de qualquer preocupação plebiscitária na legitimação das opções que foram sendo tomadas. Não admira, por isso, que nas poucas oportunidades que as populações tiveram de se pronunciar diretamente sobre as questões europeias, a contestação à atual ordem comunitária tenha sido uma constante: em 1992, os dinamarqueses rejeitaram por 51% o Tratado de Maastricht (texto que acabaria por ser aprovado no ano seguinte, também em referendo, com exceção de quatro cláusulas); em 2000, 53% dos eleitores dinamarqueses votaram contra a entrada na Zona Euro; em 2001, 54% dos irlandeses rejeitaram o Tratado de Nice (que, após todo o tipo de pressões e chantagens sobre a Irlanda acabaria por ser aprovado no ano seguinte); em 2003, 56% dos suecos impedem a adoção do euro no país; em 2005, os franceses dizem “não” ao Tratado Constitucional, com 55% dos votos, rejeição que se vai estender à Holanda, com 61,5% de votos; em 2008, os irlandeses votam 53% contra o Tratado de Lisboa (texto que acabaria por ser aprovado, embora com alterações, no ano seguinte); em 2016, a Holanda rejeita o acordo de Associação entre a União Europeia e a Ucrânia, com 61% de votos; a 23 de junho de 2016, o Reino Unido vota a saída da União Europeia (Brexit), por 52% dos votos. Não foram permitidas mais consultas populares.
Como explica o conhecido historiador inglês Perry Anderson, “A partir do momento em que, desprezando os sucessivos referendos, a casta cada vez mais oligárquica da União Europeia foi desprezando a vontade popular[iii] e inscrevendo os seus diktats orçamentais na Constituição, não é surpreendente que ela provoque tantos movimentos de contestação, de todo o tipo.”, chamando a atenção para o que entende ser a prevalência de “uma estrutura de autoridade burocrática protegida da vontade popular.” Tal estado de coisas é, aliás, amplamente confirmado pela declaração do recém falecido governador do Banco da Alemanha, Hans Tietmeyer, o qual preferia o “plebiscito dos mercados” ao das urnas, no que, de resto, foi acompanhado pelo seu conterrâneo, o inefável ex-ministro das Finanças Wolfgang Schaüble, para quem a imposição da política austeritária era independente das opções políticas que legitimamente viessem a ser tomadas em cada país da UE (nomeadamente através de escolhas eleitorais democráticas). É bem o “inverno da democracia”, sugestiva expressão que dá título à obra do sociólogo francês Guy Hermet[iv], que reflete o estado acelerado de desdemocratização e alienação cívica induzido pela lógica eurocrata, com base no princípio cristalinamente enunciado pela politóloga espanhola Sonia Alonso no título de um working paper de 2014, “You can vote but you cannot choose” [v].
Com efeito, na União Europeia assiste-se à proliferação de organismos e entidades não eleitas (Comissão Europeia, Banco Central Europeu, Eurogrupo), equipa de tecnocratas que governa por decreto, prescindindo de quaisquer procedimentos democráticos de legitimação e ponderação negocial. Com mais Estados-membros desde o alargamento de 2004 mas um orçamento comunitário inferior, a União Europeia tornou-se um espaço de assimetrias e falta de solidariedade cada vez mais acentuada entre países grandes e pequenos, ricos e pobres, assim como de competição exacerbada e atropelo aos mais elementares direitos dos respetivos povos. Com as políticas públicas vergadas às imposições dos mercados e à sacrossanta liberdade de circulação dos capitais, assiste-se a uma permanente degradação dos salários, proteção social e qualidade de vida dos cidadãos – garantindo, desta maneira, baixos custos de produção – para, em contrapartida, possibilitar lucros faraónicos, a mais rematada especulação financeira e o florescimento dos “paraísos fiscais”, naquilo que já foi designado por “corrida para o fundo”, que as regras europeias insistem em promover.
Neste contexto, a especialista em direito europeu e professora do Instituto de Estudos Europeus da Universidade de Paris-VIII, Anne-Cécile Robert, denunciando aquilo que considera ser a “arte de ignorar o povo” e que caracteriza como “governança contra democracia”, explica a “reviravolta espetacular” experimentada pelas democracias modernas – de que a Europa passou a ser um autêntico laboratório-vivo – em que “já não são os eleitores que escolhem e orientam os eleitos, mas os dirigentes que julgam os cidadãos.”[vi] No momento em que estão a ser decididas questões fundamentais para o futuro coletivo dos europeus, como os poderes monetário e orçamental ou as transferências cada vez mais significativas do poder político e da soberania nacionais para Bruxelas, os eurocratas afastam liminarmente a possibilidade dos povos se pronunciarem sobre algo que lhes diz diretamente respeito. Sob a reiterada justificação de que não estão reunidas “condições” para o veredito das urnas, esconde-se a preocupação fundamental com a incerteza dos resultados. E, como refere Anne-Cécile Robert, “Em nenhum momento a classe dirigente pensa que os cidadãos rejeitam os tratados europeus, não por estarem mal informados, mas, pelo contrário, porque retiram lições absolutamente lógicas de uma experiência dececionante de cerca de sessenta anos.”
A desconfiança face às elites que delinearam, de forma arrogante e autossuficiente, este projeto europeu – de que a decadência dos chamados “partidos tradicionais” é um sinal inequívoco – é por demais evidente. A alternativa que sempre se apresenta a sufrágio é desoladora; a de que a Europa continue mal ou fique ainda pior. Em qualquer dos cenários, são os europeus que perdem sempre. A cada eleição, a Europa comunitária vê-se na contingência, tão bem expressa pelo insuspeito José Pacheco Pereira, “de que ganhar é não perder, o que não é brilhante.”[vii] Daí o comentário certeiro que o diretor do Le Monde Diplomatique, Serge Halimi, faz sobre a situação: “A União Europeia tornou-se indiferente às escolhas democráticas dos seus povos, certa de que as orientações fundamentais dos Estados-membros estavam aferrolhadas por tratados. (…) A União treme agora ao observar cada escrutínio nacional como se neles se jogasse a sua vida.”[viii] Porque será?
A questão nacional
Mas há também razões estruturais que explicam este afastamento dos europeus relativamente a uma União que, feita em seu nome, lhes merece cada vez menos crédito. Trata-se da particularidade das circunstâncias históricas, políticas, culturais ou linguísticas nacionais, segundo as quais um povo europeu é algo de inexistente. Mais ficção que realidade, e aparte um contexto geográfico comum, a verdade é que não existe, como também refere Eduardo Lourenço, “como comunidade histórica viável sentida e vivida como um todo, nenhuma Europa.”[ix] No seu mais recente livro, Comment nous sommes devenus américains[x], também Régis Debray nos deixa, sobre este tema, reflexões importantes. Diz-nos o filósofo francês que “O mito da Europa murchou mais do que convinha por ter pressuposto que um texto de Constituição podia servir de ancoradouro, sem língua, memória, nem lenda partilhadas.” e adverte-nos para as consequências desta situação: “Destruir um sentimento de pertença sem pôr um outro no seu lugar é sempre perigoso.” [xi] É que a resiliência do vínculo nacional, mais do que uma questão meramente identitária – e precisamente no sentido de evitar a sua transformação numa excrescência de índole nacionalista – é um pressuposto essencial da soberania dos povos europeus e condição sine qua non do controlo político democrático dos Estados, constituindo, de igual forma, a base indispensável para a possibilidade de alocação de recursos próprios e de negociação, numa base de equidade contratual mínima, de recursos alheios.
Há duas décadas, um outro filósofo político francês, Gérard Mairet, na introdução à obra clássica de Jean-Jacques Rousseau, Du contrat social[xii], não hesitou em afirmar que, à luz do princípio da democracia enquanto soberania do povo, “L’Europe n’existe pas, entendons l’Europe comme union politique. Elle n’existe pas dans les choses et, même, les choses resistent fortement sinon violemment à l’Europe.”[xiii], uma vez que, “le réflexe identitaire si caractéristique, chez un peuple, de l’affirmation de sa souveraineté, est absolument disqualifié dans le cadre à la fois un et multiple de l’Europe.” Mas é precisamente este “particularismo histórico” que constitui o âmago da identidade europeia, tendo dado às suas gentes e instituições a liberdade e força necessárias para a sua existência autónoma ao longo dos séculos. Pelo contrário, e ainda que pressuposta no princípio da “nacionalidade europeia” e garantida no artigo 8º do Tratado de Maastricht para todos os cidadãos dos respetivos Estados-membros, a identificação nacional é hoje cada vez mais desprovida de conteúdo institucional, à luz de uma construção pretensamente unificadora, mas que acaba por veicular, na sua concretização real, todo o tipo de preconceitos e exclusões que as relações de poder entre países, desenvolvidas no seu interior, acabam por impor. Até porque, como afirma Mairet – enunciando, afinal, a grande aporia da construção comunitária – “en partant du monde historique tel qu’il est, aucune démocratie européenne ne peut se construire si la condition de cette construction est le sacrifice des nations. Aucune nation n’est prête à un tel sacrifice, et je suppose que, au fond de lui-même, aucun individu n’est prêt à consentir ce sacrifice.” Está bem de ver que, ao contrário do que acontece com o capital, as pessoas têm, efectivamente, uma pátria.
É, aliás, muito significativa a prioridade dada à união económica e monetária – e à consequente adoção da moeda única e criação do Banco Central Europeu – no aprofundamento do processo de integração europeia. A plena liberalização do espaço financeiro europeu, nomeadamente através da livre-circulação de capitais, a supressão de todas as barreiras existentes ao direito de estabelecimento e livre prestação de serviços nos vários países membros, longe de responder às preocupações e anseios das populações, significou, antes de mais, um enorme reforço dos interesses económicos e financeiros dominantes e o aprofundamento das desigualdades existentes. Impõe-se a dúvida: depois da crise das dívidas “soberanas” e dos resgates austeritários – com a consequente humilhação de países como a Grécia ou Portugal – como é ainda possível falar de uma União Europeia? Ou será que, afinal, o tão proclamado “projeto europeu” se resume aos ditames do pensamento único neoliberal e aos negócios multimilionários de uma globalização desenfreada? A Europa não passará, afinal, de um mero locus geográfico, limitada à condição, invocada por Valéry, de cabo mais ocidental da Ásia?
Em entrevista a Maria João Cantinho, o filósofo Sousa Dias faz, a este propósito, uma constatação fundamental: “A União Europeia não está em crise: esta União é a crise propriamente europeia, o fator de infinitização das crises económicas e financeiras dos Estados: basta pensares na «resposta» antieconómica e antissocial da União ao problema das dívidas públicas dos Estados do sul e na sua função política de dominação, de chantagem permanente por parte dos Estados credores do norte. É uma espécie de estado de guerra não declarada, mas em curso (…). Pelo que a crise da Europa não tem, nunca terá, solução no interior desta União.” No mesmo sentido, Perry Anderson sublinha que “o futuro da União Europeia depende de tal forma das decisões que a moldaram que já não podemos limitar-nos a reformá-la: temos de sair dela ou de a desfazer, de modo a podermos construir, no seu lugar, algo melhor, assente noutras fundações, o que implica acabar com Maastricht.” O que se exige, pois, é a reinvenção da comunidade europeia com pleno respeito pelas soberanias nacionais e pela democracia. Senão, não.
[i] Random House, 2017.)
[ii] Público, 12/6/2017.)
[iii] Le Monde Diplomatique, ed. port., março de 2017. Confirmando esta asserção, o investigador do IPRI-UNL, José Pedro Teixeira Fernandes, afirma, por seu turno, que a construção europeia tem seguido “basicamente a fórmula da integration by stealth («integração furtiva», ou seja feita nos bastidores) + despolitização.”, baseado num “consenso/apatia permissiva” que pressupunha um “contrato social” que entretanto se rompeu: “a perspetiva de um contínuo aumento de bem-estar económico e social para a generalidade da população europeia.” (José Pedro Teixeira Fernandes, “O futuro da construção europeia na era da globalização”, pp. 157-175, in André Freire (org.), O futuro da representação política democrática, Lisboa, Nova Vega, 2015, p. 172).
[iv] L’hiver de la démocratie ou le nouveau regime, Paris, Armand Collin, 2007.
[v]. (acrescentar a nota [v] “Pode-se votar, mas não se pode escolher”, (in Democracy and the sovereign debt crisis in the Eurozone, Madrid, Instituto Carlos III – Juan March de Ciencias Sociales, Universidad de Madrid).
[vi] (acrescentar a nota [vi] Le Monde Diplomatique, ed. port., outubro de 2016.
[vii] Público, 24/4/2017.
[viii] Le Monde Diplomatique, ed. port., abril de 2017.
[ix] Eduardo Lourenço, Nós e a Europa ou as duas razões, Lisboa, INCM, 1988, p. 33.
[x] Paris, Gallimard, 2017.
[xi] Le Monde Diplomatique, ed. port., agosto de 2017.
[xii] Paris, Le Livre de Poche, 1996.
[xiii] “A Europa não existe, entendida esta enquanto união política. Ela não existe nas coisas e as coisas resistem fortemente, quando não violentamente, à Europa.” [tradução minha] (Mairet, 1996: 17).
Hugo Fernandez
(1961)
Investigador do Centro de Investigação em Ciência Política da Universidade de Évora