Nova etapa da Economia Social em Portugal
Constituição da República Portuguesa (CRP) estabelece na alínea b) do Artigo 80.º que consagra os princípios em que assenta a organização económico-social a “Coexistência do sector público, do sector privado e do sector cooperativo e social de propriedade dos meios de produção” e na alínea f) do mesmo artigo a “Protecção do sector cooperativo e social de propriedade dos meios de produção”. No Artigo 82.º que consagra os Sectores de propriedade dos meios de produção, garante a coexistência de três sectores: o sector público, o sector privado e o sector cooperativo e social.
Da leitura da ambos os artigos da CRP, assim como dos demais dez que ao sector cooperativo e social se referem, podemos concluir que a Economia Social tem completo acolhimento constitucional mas só pela Lei n.º 13/2013 de 8 de maio a Assembleia da República aprova por unanimidade a “Lei de Bases da Economia Social” (LBES) fixando “no desenvolvimento do disposto na Constituição quanto ao sector cooperativo e social, as bases gerais do regime jurídico da economia social, bem como as medidas de incentivo à sua atividade em função dos princípios e dos fins que lhe são próximos” (Artigo 1.º).
No seu Artigo 4.º estabelece quais as entidades que integram a economia social e no Artigo 5.º os “Princípios orientadores”, definindo portanto os tipos de entidades que entram nesta classificação e um conjunto de características e princípios que essas entidades devem respeitar.
Atribuiu no Artigo 6.º ao Governo a responsabilidade de “elaborar, publicar e manter atualizada em sítio próprio a base de dados permanente das entidades da economia social” e assegurar a “criação e manutenção de uma conta satélite para a economia social”.
Temos então cooperativas, associações mutualistas, misericórdias, fundações, outras instituições particulares de solidariedade social, associações com fins altruísticos que atuem no âmbito cultural, recreativo, do desporto e do desenvolvimento local, entidades abrangidas pelos subsectores comunitário e autogestionário e finalmente outras entidades dotadas de personalidade jurídica que respeitem os princípios orientadores da economia social e que constem da base de dados da economia social, como “constelações” que compõem a “galáxia da economia social”, na feliz im agem criada pelo Professor Doutor Rui Namorado [i].
Desta “galáxia” não fazem parte entidades ou empresas públicas nem empresas capitalistas. Aquelas porque dependem do Estado e estas porque o seu objetivo é o lucro que é apropriado pelos detentores do capital.
As Entidades da Economia Social (EES) apresentam outras características que constituem o seu ADN. São organizações de pessoas, com pessoas e ao serviço das pessoas e consequentemente das suas comunidades. Nelas o capital é instrumental e os resultados positivos alcançados, que são essenciais para a auto sustentabilidade e melhor desempenho das suas missões, são reinvestidos nas respetivas entidades, já que estas não têm ânimo de lucro.
Rui Namorado considera que os eixos estruturantes das EES são a cooperação, a reciprocidade e a solidariedade.
A cooperação é a base do funcionamento das organizações cooperativas, mas vai muito para além delas.
A reciprocidade é a aplicação do princípio “um por todos e todos por um”, base da ação mutualista, e que também está na génese cooperativa.
A solidariedade é a disponibilidade para ajudar, apoiar, quem precisa, sem esperar “contrapartidas ostensivas ou equivalentes”.
Temos então um setor económico, com consagração constitucional e regulamentação legal e que não se confunde com o setor público e muito menos com o setor capitalista, porque os seus princípios, valores e práticas se distinguem claramente.
Aqui chegados importa ver, em traços muito largos, o que representa a Economia Social em Portugal, fazendo naturalmente uso das duas Contas Satélite já publicadas com referência aos anos de 2010 e 2013.
Naqueles dois anos o Valor Acrescentado Bruto (VAB) das EES representou 2,8% do Total Nacional, em 2010 as remunerações pagas pelas EES representaram 4,6% do Total Nacional, valor que subiu para 5,2% em 2013, do emprego remunerado em 2010 representou 5,5% e em 2013 subiu para 6,0%, da Produção Nacional em 2010 representou 2,8% e em 2013 teve uma ligeira descida para 2,7%, da Despesa de Consumo Final representou nos dois anos 2,4% e da Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF) em 2010 representou 3,2% e 4,3% em 2013, aumento “que poderá ser justificado, por um lado, pela diminuição do total do investimento na Economia Nacional, entre 2010 e 2013, e, por outro, pelas alterações metodológicas introduzidas pelo SEC 2010 (Sistema Europeu de Contas Nacionais e Regionais de 2010) na contabilização da Investigação e Desenvolvimento (I&D) como Formação Bruta de Capital”. [ii]
Se a estes indicadores juntarmos a informação de que estamos a falar de 61.268 EES, de 215.963 unidades de trabalho Equivalentes a Trabalho Completo (ETC) de 4.206 milhões de euros no VAB e 3. 973 milhões de euros nas Remunerações, temos uma ideia mais aproximada da grandeza deste Setor. Mas se acrescentarmos que estamos a falar do 5º ramo de atividade em termos de peso na Economia Nacional quanto ao VAB e do 2º quanto ao emprego remunerado (ETC), apenas superado pelo ramo da Construção que representa 6,9% do Total Nacional, e à frente da Saúde, da Indústria Têxtil, dos Transportes e Armazenagem, etc, começamos a ficar com a ideia do seu peso relativo.
Estes dados no seu conjunto mostram a relevância da Economia Social em Portugal e mostram sobretudo que resistiu melhor que o conjunto da Economia Nacional quer do ponto de vista económico quer do ponto de vista social à crise que se fez sentir no período observado.
Há contudo que frisar que estamos a apontar indicadores económicos e sociais quantitativos, muito adequados à economia capitalista, a que escapa relativamente às EES a avaliação da qualidade da produção e dos serviços prestados, a qualidade do emprego, os leques salariais praticados, o valor do trabalho voluntário da grande maioria dos dirigentes, o contributo para as comunidades em que as EES estão inseridas, o apoio à formação dos trabalhadores, a formação cívica que promovem entre os seus membros, o real efeito multiplicador dos subsídios e transferências, a inequívoca lealdade nas Parcerias Público Sociais, o contributo para contrariar a desertificação do interior, a não deslocalização para outros países da produção e da responsabilidade fiscal, a Responsabilidade Social efetiva e não como mais uma ação de marketing.
Mas apesar de tudo isto bem sabemos como é desproporcionada a visibilidade de cada um dos setores!
Há finalmente que assumir que estes indicadores demonstram, se os compararmos com os de outros países europeus, que a Economia Social em Portugal tem ainda pela frente muitos desafios a vencer.
O 1º Congresso Nacional da Economia Social e o futuro!
Em 2010 o Governo decidiu pôr fim ao INSCOOP-Instituto António Sérgio do Sector Cooperativo e criar a Cooperativa António Sérgio para a Economia Social, Cooperativa de Interesse Público de Responsabilidade Limitada, (CASES), processo que juntou ao Estado seis Organizações representativas de outras tantas “constelações” da “galáxia” da Economia Social, a saber: a Confederação Cooperativa Portuguesa, CCRL (CONFECOOP), a Confederação Nacional das Cooperativas Agrícolas e do Crédito Agrícola, CCRL (CONFAGRI), a União das Mutualidades Portuguesas (UMP), a União das Misericórdias Portuguesas (UMP), a Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade (CNIS) e a Associação Portuguesa para o Desenvolvimento Local (ANIMAR), recebendo esta Cooperativa de Interesse Público as competências do INSCOOP, como regulador e supervisor do Setor Cooperativo, e relativamente às funções de apoio e fomento deste Setor, elas tornaram-se extensivas aos demais Setores da Economia Social.
Alguns meses depois, o Governo criou como seu órgão de consulta para a Economia Social, o Conselho Nacional para a Economia Social (CNES), acrescentando na sua composição, para além das organizações que integraram a CASES, a Confederação Portuguesa das Colectividades de Cultura, Recreio e Desporto (CPCCRD) e o Centro Português de Fundações (CPF), representantes do Governo Regional dos Açores e do Governo Regional da Madeira, da Associação Nacional de Municípios, da Associação Nacional de Freguesias e quatro personalidades de reconhecido mérito.
Ora, estes passos criaram objetivamente as condições para que as várias “constelações” se conhecessem melhor e que num longo processo de 8 anos reconhecessem a necessidade de realizar um Congresso onde a “galáxia” se sentisse refletida.
Ao longo do ano de 2017 realizaram-se quatro sessões temáticas, em Lisboa, Póvoa de Varzim, Mangualde e Évora que prepararam, juntamente com o trabalho desenvolvido pela Comissão Organizadora do Congresso, a sessão final realizada a 14 de novembro em Lisboa.
Para além dos diversos painéis de reflexão e debate que contaram com investigadores e dirigentes da Economia Social, nacionais e internacionais, esta sessão teve como pontos centrais a comunicação das Recomendações do Congresso e a assinatura da Carta de Compromisso, em que as oito Organizações assumem que até 31 de março de 2018 devem realizar o ato formal de constituição da CESP-Confederação da Economia Social Portuguesa.
As Recomendações do Congresso, vinte no total, apontam como objetivo primeiro das EES “ser permanentemente ouvidas pelos departamentos governamentais e nas instâncias de concertação social e económica, nomeadamente no Conselho Económico e Social (CES), em todas as matérias que digam respeito à sua atividade e à economia nacional” e para tal criam “uma instância de representação” a CESP, “sem prejuízo da independência e iniciativa de cada entidade”.
As EES consideram que “não devem ser objeto de discriminações quando pretendem atuar em qualquer domínio de atividade, rejeitam quaisquer entraves legais ao seu funcionamento e consideram que devem ser avaliadas nessas atividades a partir de critérios que tenham em conta a sua específica forma de organização e governança”
As EES “consideram que, no âmbito das políticas públicas, devem ser lançados programas de fomento da economia social que contribuam para a promoção da igualdade, da saúde e do emprego e para a fixação das populações”.
As EES consideram “que se deve dar prioridade à implementação de uma política coerente de educação para a economia social nos currículos de todos os graus de ensino”.
As EES “querem ver fomentada a investigação sobre a economia social”
As EES “consideram que se deve incrementar e melhorar a informação da sua realidade e atividade feita por parte da comunicação social generalista ou especializada”.
As EES “atento o disposto na Constituição e na lei ordinária de acordo com o princípio da discriminação positiva que a aplica, consideram-se no direito a beneficiar de um regime fiscal adequado à sua natureza e aos fins que prosseguem”.
As EES “apelam a que cessem os impedimentos ao desenvolvimento de atividades financeiras próprias à economia social”.
As EES “consideram ser necessária a criação de um programa financeiro que as incentive a aceder às novas tecnologias de comunicação e gestão, à economia digital, bem como à disseminação de inovações e boas práticas desenvolvidas”
As EES “entendem ser de elementar justiça a possibilidade de candidatura a todos os programas e projetos, fundos e linhas de crédito, europeias e nacionais, e sua aplicação aos seus modelos específicos de organização e governança, nomeadamente participando na futura geração de fundos comunitários”.
As EES “apoiam a posição governamental de pugnar por um Plano de Ação em favor da economia social a nível europeu”.
As EES “centradas no primado da pessoa, consideram dever unir esforços, intercooperando no âmbito europeu e internacional em prol do desenvolvimento económico e social, com especial atenção ao espaço lusófono e ibero-americano”.
As recomendações são, a nosso ver, um misto de caderno, mais de “encargos” do que “reivindicativo”, para o Governo e de algumas linhas de ação para a CESP.
Como bem sabemos encontramos nas várias “constelações” da Economia Social dirigentes e membros que pessoalmente aderem, ou não, às mais diversas correntes, religiosas, de pensamento e ação, que vão de democratas cristãos a comunistas, de socialistas a sociais-democratas, mas tal não determina qualquer filiação ou alinhamento das EES, a quem se exige sejam independentes e autónomas.
Mas é também natural que esta diversidade de visões e ideologias leve a que se espere da Economia Social respostas diferentes que vão do papel de mero amortecedor das chagas económicas e sociais abertas pela ação sem peias do grande capital, à expectativa de que a Economia Social possa gerar uma alternativa ao capitalismo. A este respeito vale a pena ler o ensaio de Thierry Jeantet[iii].
Se a primeira posição é absolutamente redutora do papel das EES, alimentar a expectativa de que a Economia Social produzirá uma alternativa ao capitalismo, é quase certo estar a apontar um caminho que não conduzirá ao objetivo anunciado.
As EES são em si mesmas uma forma não capitalista de organização, e a sua parceria com o setor público e com as MPME-Micro, Pequenas e Médias Empresas é natural.
E regressamos a Rui Namorado[iv] que afirma “a economia social pode ser encarada como um horizonte historicamente possível e humanamente necessário. Seja este horizonte tendencialmente completo, vocacionada para ocupar por completo enquanto tal o nosso futuro, seja uma parcela de um horizonte pós-capitalista que partilha harmoniosamente, no âmbito de um conjunto que o transcende.
Nesta perspetiva a economia social aproxima-se tanto mais do êxito, quanto mais profunda e extensamente impregnar a sociedade.
… quanto menos marcada for a sua subalternidade mais eficaz será a sua resistência; e quanto mais eficaz for a sua resistência, mais nítida poderá ser a imagem de alternatividade que projeta.”
As EES têm sem dúvida uma capacidade transformadora que importará acompanhar e desenvolver, porque dando respostas sustentáveis do ponto de vista económico, social e ecológico às necessidades das pessoas e das suas comunidades, têm princípios, valores e uma cultura que promove a pessoa enquanto cidadão de corpo inteiro, com deveres e direitos que são conquistas da Humanidade e não concessões de qualquer líder, organização, Estado ou outra entidade e se são indispensáveis numa sociedade capitalista elas terão um papel ainda mais destacado numa sociedade pós-capitalista.
[i] Rui Namorado – Economia Social em Ação-Almedina-pag.11)
[ii] Conta Satélite da Economia Social (CSES), Edição 2017-pag. 36)
[iii] Thierry Jeantet – A Economia Social-Uma Alternativa ao Capitalismo, Le Monde Diplomatique, 2009)
[iv] Rui Namorado – Economia Social em Ação-Almedina-pag.16)