Nos últimos anos muito se tem falado da arte urbana. Longe vão os tempos em que aqueles que pintavam na cidade, de modo informal, inesperado e questionando os usos regulados do espaço público citadino, eram pura e simplesmente entendidos como vândalos. Na última década tem-se observado uma reconfiguração dos olhares e dos discursos em torno destas práticas e daqueles que as empreendem. Para percebermos o que se passa hoje é conveniente recuarmos no tempo, fazendo um breve historial destas manifestações.
A arte urbana (também denominada por alguns de “street art”) deriva, em grande medida, de uma expressão surgida há cerca de cinco décadas nos EUA e que conhecemos pela denominação de “graffiti”. Tendo surgido em Filadélfia e posteriormente florescido na cidade de Nova Iorque, a prática do graffiti foi desenvolvida por jovens que, deste modo, criaram uma forma original de se expressarem e de reivindicarem um espaço de comunicação na cidade. A associação deste fenómeno às culturas juvenis urbanas tem sido acentuada por diversos investigadores, que encontram aqui mais um bom exemplo das capacidades criativas dos jovens que, em grupo, reinventam identidades colectivas, criam novas linguagens e formas de comunicação.
O graffiti norte americano consistia num movimento cultural e estético assente em regras, acções e técnicas muito particulares. O objectivo primeiro desta prática consistia numa busca por prestígio entre os pares, condição que resultava de um investimento regular na quantidade e qualidade das acções de rua. Criar um pseudónimo (o tag), espalhar a assinatura e desenvolver um trabalho estilisticamente complexo eram etapas deste processo. Ficaram famosas as carruagens do metropolitano de Nova-Iorque que foram pintadas por diversos grupos (crews), circulando por toda a cidade, deixando um rasto dos nomes e das obras destes jovens.
O graffiti foi, desde cedo, perseguido pelas autoridades que o consideravam uma forma de vandalismo que necessitava de ser, pura e simplesmente, erradicada. Esta tentativa de catalogar o graffiti como uma forma de poluição e violência tem acompanhado a história desta manifestação urbana, facto que não impediu que a mesma fosse ganhando cada vez mais relevância. Entretanto não só o graffiti sobreviveu, como se multiplicou pelos quatro cantos do planeta. Esta é uma manifestação fortemente resiliente, resistindo às múltiplas modalidades de controlo e erradicação de que foi alvo.
Cedo o graffiti evoluiu de uma linguagem algo rudimentar, baseada na simples assinatura (tag) para a elaboração de murais complexos, ricos na iconografia e narrativa visual. Durante este processo muitos se foram apercebendo da qualidade e singularidade desta linguagem, falando não de vandalismo, mas antes de arte. Um dos livros pioneiros sobre este fenómeno, marcado por um impressionante registo fotográfico, intitula-se precisamente “Subway Art” (de Martha Cooper e Henry Chalfant), descrevendo as obras pintadas nas carruagens nova-iorquinas durante as décadas de 70 e 80 do século passado. Não tardou muito a que galeristas e críticos olhassem para estas expressões com algum deslumbre e interesse, chamando muitos graffiti-writers às galerias. Esta ambivalência tem acompanhado a história do movimento, alimentando uma velha questão e uma disputa identitária: é arte ou vandalismo?
O graffiti em Portugal surgiu sensivelmente passadas duas décadas. Foi o contacto com uma cultura mediática juvenil que, nos anos 80 e 90, nos trouxe imagens da cultura hip-hop nas suas mais distintas vertentes, como o rap o breakdance e o graffiti, que despoletou um conjunto de processos criativos. É neste período que surgem os percursores do rap em Portugal, as primeiras crews de breakdance e também os primeiros exemplos de graffiti na Área Metropolitana de Lisboa.
Também aqui o graffiti foi entendido como uma prática ilegal e transgressiva, apesar das autoridades públicas terem demonstrado uma atitude razoavelmente tolerante por comparação com a situação registada noutros países. A relativa tolerância das autoridades permitiu que o graffiti florescesse e que a comunidade se multiplicasse, principalmente nos grandes centros urbanos. No despontar da primeira década do milénio testemunhamos um verdadeiro “boom” de graffiti na AML, sendo que este se tornou elemento central da paisagem urbana, situação que conduziu a um maior debate público e algumas medidas de contenção e erradicação.
Reconhecimento
Todavia, o início do milénio foi, também, o berço de uma nova tendência que está agora a dar frutos. As políticas pouco duras das autoridades e do poder público, permitiram o despontar e amadurecimento de uma geração de jovens artistas que encontrou um contexto muito favorável ao desenvolvimento do seu trabalho. Muitos daqueles que agora são reconhecidos como artistas urbanos são provenientes desse meio ou foram fortemente influenciados por essa comunidade que se foi afirmando ao longo deste período.
Chegados à segunda década do milénio, somos hoje frequentemente interpelados por notícias que nos dão conta do reconhecimento nacional e também internacional de um conjunto de artistas urbanos portugueses. Muitos consideram o panorama português extremamente rico a este respeito, quando se olha para a dimensão reduzida do país.
As autarquias entenderam o papel fulcral que estas expressões podem ter para uma revitalização e promoção do espaço público e para a projecção internacional das cidades. A Câmara Municipal de Lisboa, por exemplo, foi pioneira a este respeito, tendo criado há cerca de 8 anos a Galeria de Arte Urbana, visando a criação de uma política de promoção destas expressões artísticas. Os resultados desta política são evidentes na paisagem da cidade e na promoção da cidade no exterior, tendo a imprensa internacional vindo a destacar a cidade de Lisboa como uma das mais relevantes no panorama mundial da arte urbana. No entanto Lisboa não está isolada nesta política de incentivo à arte urbana, tendo sido seguida por outras autarquias.
Muitas cidades atualmente têm roteiros de arte urbana ou promovem esta expressão como exemplo de contemporaneidade, cosmopolitismo e criatividade. Os festivais de arte urbana também têm vindo a multiplicar-se, tal como os projectos em torno desta matéria. Estes processos são acompanhados por um conjunto de outras iniciativas culturais e artísticas que conduzem os artistas urbanos da rua para galeria e para o museu. Não é por acaso que o Centro Cultural de Belém acolheu em 2010 uma exposição dos artistas brasileiros Os gémeos ou que, no ano de 2014, o consagrado VHILS expôs no museu da electricidade, da fundação EDP. Mais recentemente há notícias que apontam para a criação do Museu de Arte Urbana e Contemporânea de Cascais, criando um espaço formal para exibição de obras provenientes deste meio artístico. Há um gradual reconhecimento por parte do mundo da arte e das instituições de um conjunto de artistas cuja biografia está indelevelmente ligada às acções de rua.
Se dei primazia ao graffiti norte-americano na solidificação desta arte urbana emergente, tal não significa que não existam outras referências importantes. A história da arte produzida na rua na segunda metade do século XX está invariavelmente ligada a nomes importantes, sem ligação directa com o mundo do graffiti. Há personalidades relativamente óbvias, como sejam os norte-americanos Jean-Michel Basquiat e Keith Haring que utilizaram a rua como espaço criativo, paralelamente ao seu trabalho artístico mais convencional. John Fekner, também merece algum destaque. Este é um artista multimédia e street artist que produziu uma série de trabalhos a stencil, de natureza mais politizada, nos anos 70 e 80 nos EUA e não só.
Na Europa há um conjunto de criadores que foram pioneiros no emprego do aerossol como ferramenta para a sua actividade artística. Desde logo aquele que é por vezes descrito como o precursor destas artes, Gérard Zlotykamien. Este artista plástico francês durante os anos 60 e 70 produziu na rua aquilo que ele denominou de éphémères, figuras simples inspiradas pela tragédia de Hiroxima. Por seu turno, Harald Naegeli, que teve formação clássica em artes, ficou conhecido como o “sprayer de Zurique” por pintar ilegalmente a aerossol nesta cidade, nos anos 70 e 80. Ainda antes do sucesso alcançado por Banksy que viria a projectar o stencil enquanto técnica maior da street art, temos o trabalho fundamental levado a cabo pelo parisiense Blek le Rat que marcou as gerações futuras de street artists. Este artista começou a sua carreira de rua no início da década de 80 pintando, através da técnica do stencil, ratos nas paredes de Paris. Os seus trabalhos evoluíram para outras figuras e produções mais complexas.
Falamos de arte
Estamos, hoje, muito longe do contexto inicial do graffiti. O termo arte urbana não deixa espaço para qualquer espécie de dúvida. Falamos de “arte”. E estarmos a falar de “arte” pressupõe que socialmente há um reconhecimento do potencial cultural e estético que emerge destas expressões. Este reconhecimento ganha forma nos media, nas autarquias, nas instituições artísticas que contribuíram para reconfigurar a forma como olhamos para estas expressões. Os vândalos foram gradualmente elevados à categoria de artistas.
E hoje estamos perante uma expressão muito abrangente, que envolve um conjunto de manifestações plásticas e de técnicas que vão muito além do graffiti convencional. Obras que envolvem técnicas de stencil e colagem, stickers, posters ou murais a aerossol convivem num espaço com fronteiras fluídas. Na verdade esta é uma categoria ainda em aberto, permeável a diferentes influências, tradições e modos de fazer. A arte urbana é uma categoria, vasta e ambivalente, que tanto pode envolver manifestações de natureza informal e transgressiva, tal como pode acolher obras e projectos comissionados e institucionais. É esta ambiguidade que, de alguma forma, lhe confere um carácter inesperado e singular no panorama das artes visuais contemporâneas.
A relevância que o graffiti e a arte urbana adquiriram na passagem do século XX para o século XXI, e o facto de serem actualmente reconhecidos como fazendo parte de um movimento artístico singular, conduzem-nos a reformular velhas premissas acerca da forma como concebemos a arte e o seu usufruto por parte dos cidadãos. Há um conjunto de questões que merecem ser destacadas.
Em primeiro lugar, o papel central da rua. O espaço público urbano adquire em todo o processo criativo lugar crucial. Desde logo este é o espaço da criação artística e, como tal, transforma-se no ateliê do artista. Este é o espaço onde se depositam as tintas, trinchas, sprays, baldes e restante parafernália da criação artística e onde se desenrolam as diferentes fases da obra pictórica. Este é, por isso, um ateliê aberto ao público, onde todos podem apreciar o curso da actividade. Mas este não é apenas o espaço de criação. Este converte-se também no espaço de exibição e, por isso mesmo, se diz que esta é uma galeria a céu aberto. Como tal, há um desvio relativamente ao papel central que os espaços fechados do ateliê, da galeria ou do museu desempenhavam nas artes plásticas convencionais.
Em segundo lugar, há que salientar a dimensão material da cidade na produção das obras. Ou seja, a arte urbana dialoga de forma dinâmica e hábil com a cidade, com o seu edificado e ambiente material. As superfícies urbanas compostas por muros, fachadas, portas, tapumes, vitrinas, mobiliário urbano, são recursos e suportes usados de forma inteligente por estes criadores. Quem faz arte urbana conhece a materialidade urbana e como utilizar estes recursos. Deste modo, as obras são compostas não apenas pelos conteúdos gráficos criados, mas também pelo seu suporte. A materialidade urbana é elemento integrante e inamovível da obra, facto que deve ser tido em consideração na sua apreciação por parte do público.
Em terceiro lugar, há a questão da democratização na produção e no acesso às artes. Estas são expressões que poderíamos apelidar de mais “democráticas” no que diz respeito ao usufruto, pois estão disponíveis no espaço público urbano. Como tal, não se encontram enclausuradas em redomas protegidas, vigiadas por câmaras e seguranças, sujeitas a horários e a acesso condicionado. Pelo contrário, estão acessíveis a todos, dia e noite, fins-de-semana e feriados. São, por isso, obras que estão integradas no quotidiano das pessoas e o seu público maioritário é constituído pelos transeuntes citadinos. Por outro lado, estas são artes que se assumem claramente como não-canónicas, dessacralizadas e populares. A arte urbana utiliza geralmente uma linguagem popular, não exige o domínio de códigos culturais elitistas, nem respeita os cânones artísticos perpetuados pelas instituições. Este lado mais democrático está, de alguma forma, ligado à memória dos movimentos culturais e artísticos de rua, vinculados a determinadas culturas juvenis e a certas causas sociais e culturais.
Por último, há a questão da efemeridade que tem vastas implicações. E a transitoriedade destas obras está associada à sua incorporação na matéria urbana e à natureza dessacralizada deste tipo de manifestações. Diríamos mesmo que o tempo é incorporado pelos artistas como uma dimensão estrutural do seu exercício estético. Ao pintar uma parede ou carruagem de comboio, ao colar um sticker ou poster, o criador tem plena consciência de que as paredes se vão deteriorar, que as inscrições são rasuradas, violadas, apagadas. Podemos, então, falar de uma arte de “ciclo curto”. As obras são realizadas sem expectativa de eternização, nem previsão de duração. Podem permanecer minutos, horas, dias ou anos. Daí que exista uma completa incorporação do espírito da cidade, em continua mudança, com uma paisagem em permanente actualização.
Ricardo Campos
Investigador CICS.NOVA - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (UNL)- Membro fundador e co-coordenador da Rede Luso-Brasileira de Pesquisa e Informações Urbanas (RAIV)