Óscar Lopes Um intelectual poliédrico

Começando de um modo formalmente tradicional este texto evocativo da figura de Óscar Lopes no centenário do seu nascimento (1917-2013), poder-se-á dizer que, tendo sido profissionalmente Professor do Ensino Secundário, Professor Catedrático e Diretor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, além de seu vice-reitor, foi um eminente linguista, crítico e historiador literário, autor de vasta obra ensaística e historiográfica e ao mesmo tempo um cidadão interventivo política e culturalmente, tornando-se um dos intelectuais mais marcantes da segunda metade do século XX. De Óscar Lopes poder-se-ia então dizer, como ele um dia disse, ao tentar esboçar o seu próprio retrato, de modo menos formal que o agora usado, que não se reconhecia: “nem crítico, nem ensaísta, nem mesmo essencialmente professor, linguista ou político” (1990: p.13).

Com efeito Óscar Lopes foi um intelectual e um cidadão poliédrico: uma formação multifacetada, cobrindo simultaneamente os domínios da linguística, da musicologia, da história, das línguas clássicas, da filosofia e da literatura e uma viva curiosidade intelectual conduziram-no ao constante diálogo interdisciplinar e intersemiótico com outros saberes (lógica, neurociência, pintura, física, matemática, astrofísica), evitando o fechamento numa qualquer erudição estiolante.

Muito antes de se falar em interdisciplinaridade, ele praticou-a vivamente quer como ensaísta, quer como professor. E basta lembrar títulos como Uma Espécie de Música, sobre a poesia de Eugénio de Andrade, ou Uma Arte de Música e Outros Ensaios em torno de relações entre música e literatura ou a experiência que na década de sessenta desenvolverá com os seus estudantes de português dos primeiros anos do ensino então liceal, para onde tinha sido afastado de modo a que não ensinasse literatura aos estudantes do final do ensino secundário, experiência que o leva a cruzar ensino da gramática e da matemática e que terá um outro patamar de execução na Gramática Simbólica do Português – um esboço (1971), com a qual se inicia entre nós os estudos em semântica formal. Escrita de forma muitíssimo acessível, nela Óscar Lopes utiliza instrumentos teóricos de cálculo proposicional, de teoria dos conjuntos, de topologia, de relações matemáticas e lógicas de vários tipos e suas propriedades, para trabalhar um número considerável de questões linguísticas. A sua investigação em linguística prosseguiu depois, abarcando múltiplos assuntos, sempre na busca de instrumentos adequados a uma pesquisa capaz de ultrapassar qualquer descritivismo pré-científico, tendo sido, aliás, o fundador do Centro de Linguística da Universidade do Porto.

Óscar Lopes é mais conhecido como o historiador da literatura, que foi desde muito cedo, mas a sua historiografia literária articular-se-á intimamente com outra dimensão relevantíssima da sua obra – a de crítico literário. Durante as décadas de cinquenta e sessenta, debruçado sobre a contemporaneidade, desenvolverá continuadamente nas páginas do Comércio do Porto uma atividade crítica muito original e atenta à materialidade formal do texto literário, numa coluna quinzenal intitulada A Crítica do Livro. Torna-se um brilhante ensaísta e vai construindo um conceito singular de “realismo problemático ou dialético”, longínquo da tradição oitocentista e bastante heterodoxo relativamente ao neorrealismo imperante: um realismo que na sua opinião se manifesta sempre que a literatura resiste ao senso comum e produz um alargamento de mundos. Esta atitude de abertura crítica será responsável pelo facto de acolher entusiasticamente obras tão diversas como as de Carlos de Oliveira, Agustina Bessa-Luís, Vergílio Ferreira, Irene Lisboa, Cardoso Pires, Branquinho da Fonseca, Herberto Helder.

Ora o que mais me impressiona na obra de crítica e no ensaísmo literários de Óscar Lopes decorre da sua feição integradora, no sentido em que se entretece numa rede de saberes que, como ficou dito, vão da história à filosofia, da filologia à pragmática linguística, da música à matemática, da pintura à física. É um prazer ver como ele chama esses saberes, essa enciclopédia pessoal para ler os textos e procurar-lhes sentido, sem que isso implique um estendal pesado de erudição, da qual de resto se afasta voluntariamente, ou uma estratégia autoritária para encerrar o texto num sentido.

Outro aspeto que me atrai no percurso crítico-ensaístico de Óscar Lopes é o seu carácter simultaneamente evolutivo e consequente. É possível reconhecer e reencontrar uma voz idêntica em textos distanciados por décadas, sem que isso signifique estatismo teórico-crítico, nem afastamento em relação a princípios ideológicos marxistas que sempre nortearam a sua aproximação dos textos e da realidade em geral.

Nos textos antigos, designadamente nas suas reflexões sobre o que para ele é fazer crítica e ensaísmo literários, pressente-se já a consciência de que o texto literário é um texto em aberto, que a leitura faz renascer. Em 1965, dizia ele numa conferência: “a obra vive as milhentas vidas sucessivas e simultâneas cujo ciclo se pode considerar iniciado no momento da sua redacção definitiva e que se continua através de cada leitura mais ou menos atenta que a interprete, que hierarquize e até selecione as suas numerosíssimas intenções expressas, que portanto a refaça com um mínimo de capacidade recriadora ou vivificante sem o qual tal leitura não passa de um acto mecânico” (1969: p.84).

A cada leitor cabe este papel de revivificador do texto, dado que lança sobre ele uma quota parte de responsabilidade na criação, mas implica ao mesmo tempo aceitação de que cada leitura fica condicionada pelo circunstancialismo que rodeia o leitor. Este facto, historicizando a leitura, permite a Óscar Lopes atribuir a toda a leitura um carácter provisório, que se por um lado parece desresponsabilizar o crítico, por outro propicia a abertura de uma janela ao diálogo e à releitura crítica, também ela, por seu turno, aberta. Em meados dos anos 50, escreve: “a permanência de cada obra de arte é a de um movimento constante, cheio de saltos e de redescobertas criadoras: uma Paixão de Bach desmente e instabiliza em nós um conceito definido de realidade bem diferente do conceito de realidade de Bach, ao que não são indiferentes, entre outras coisas, nem as transformações ocorridas no modo de produção económica, nem o facto de já termos ouvido os quartetos de Bartok, por exemplo.”(1969: p.36). Ao crítico caberá, portanto, “uma progressiva síntese refundidora” (1969: p.36).

Ora, cerca 40 anos mais tarde, justificando o trabalho do crítico e o carácter que pretende “precário” das suas “tentativas” ensaísticas, recolhidas no livro A Busca de Sentido (1995), ouvimos o mesmo Óscar Lopes dizer, no fundo repetindo: “Se é que há algum dado, é este, de reencontar na inevitável (e mesmo necessária) distância o chamado círculo hermenêutico, que restitua a continuidade (humana) nas incoincidências (quase sempre insensíveis) dos horizontes de compreensão provisoriamente imediata.” (1995: p.10.)

Assim, ler, para Óscar Lopes, é fazer tentativas, é ensaiar sínteses, pontos de equilíbrio num palco de conflitos que um texto sempre constitui, sem omitir a própria conflitualidade do eu crítico. O exercício crítico afigura-se-lhe a procura de sentido apesar da complexa ambiguidade de que o texto está eivado e apesar do crítico ser ele mesmo uma dramatis persona num palco onde figuram outras personagens1. Não é despiciendo o facto de quatro dos seus mais conhecidos livros de ensaios, de épocas diversas, terem títulos que se centram nas ideias de sentido e de leitura – Ler e Depois (1969), Modo de Ler (1969), Os Sinais e os Sentidos (1986) e A Busca de Sentido (1995). Apesar de acabar por declarar não saber “o que o(s) sentido(s) seja(m)” (1986: p.10), Óscar Lopes reclama à exaustão e desde sempre a actividade crítica como A Busca de Sentido, sentido ao qual também chama “síntese” – por exemplo em Modo de Ler (1969) ou em Álbum de Família (1984) -, a síntese “possível”, pese embora o facto de ela se refazer, já o dissemos, a cada nova leitura. Em Maio de 1985, ao ser-lhe entregue o Prémio Jacinto do Prado Coelho, ele chama a si mais uma vez esse conceito: “Quando se verifica a extraordinária quantidade de ambiguidades ou contradições que nós resolvemos no mais simples acto de comunicação razoavelmente logrado, é difícil conceber que a poesia se caracterize pela simples abertura de um texto à ambiguidade e à contradição, sem que essa abertura contenha um desafio à síntese possível e competentemente unívoca de cada aqui e agora.” (1990, p.14-5).

Insisto, porém, na ideia de que esta “busca” é a “busca de sentido” e não a busca de um sentido. Óscar Lopes não se cansa de reclamar que “o seu principal intuito é o de estimular uma reflexão dirigida em variados sentidos” (1984: p.10), num esforço que é a um tempo de diálogo com o texto e de diálogo com o seu leitor e que pressupõe sempre a ideia da leitura como uma aventura: “Não se sabe ao certo ao que se vai (pode ser sempre mais ou menos, imprevisto); e parte-se de algo de impreciso, como um pseudópode que se estende para fora a partir da célula total.” (1995, p.11).

Esta procura de sentido num texto aproxima-a Óscar Lopes da procura de sentido na vida. Os textos como a vida são mais ou menos conflituais e são sempre “uma condensação de experiência social activa”2 onde confluem representações de um passado que persiste no presente e expectativas de um futuro que já atravessa o presente. E enquanto experiência social que é tal busca de sentido faz apelo, em Óscar Lopes, a um imperativo ético, na medida em que ele sente absolutamente que o destino de qualquer ser social é também o seu destino. E o destino individual do ser humano é sempre trágico – como um dia me disse -, porque a vida, tal como a conhecemos pelo menos de há dez mil anos para cá, é “vivos a comer vivos”, o que o faz experienciar um “mal estar intrínseco, uma ideia sofrente” que o levam à procura de utopia sempre que lê. A literatura e a leitura permitem-lhe, então, conjugar o drama da sua visão individual muito pessimista da vida com o seu otimismo social, o próprio drama da vida que nos faz sentir, usando uma imagem também sua, a magnificente beleza de um bando de gazelas galgando pela savana, conhecendo nós antecipadamente a tragédia da gazela que será abocanhada pelo leão.

Por tudo isto, para Óscar Lopes, “ler ou escrever um texto denso é passar por uma vivência de profunda solidão,” – que não é incompatível, note-se, com aquele imperativo ético de que falava há pouco – “porque o texto poético, fictivo, ou radical-mente meditativo, suspende o dispositivo quotidiano da comunicação: é uma evocação, ou Gedankenexperiment, de mundos possíveis, organizados a partir de fragmentos do mundo mais óbvio, e ligados a hipóteses de algo que seja mais compreensível ou que seja mais desejável. Ler ou escrever um texto denso é também, por vezes, a procura de um rosto ou de uma voz, tanto mais voláteis quanto mais importaria apreendê-los.” (1990: p.15).

Como foi referido, uma componente central da obra de Óscar Lopes é a de historiador da literatura portuguesa. Creio que o sentido que tem para ele fazer história da literatura não está muito longe do sentido que para ele tem ler e escrever, isto é, procurar um rosto, uma voz… Fazer história da literatura portuguesa é procurar o seu próprio rosto, é procurar a voz do seu país, é explicar-se, explicando-nos – é tentar perceber o que há, se é que há, de especificamente português, é perguntar-se qual é o nosso papel na história.

A literatura interessa-o antes de mais enquanto acto de dizer, enquanto palavra que depois de dita tem muitos significados e que em novos contextos novos significados ganha. Fazer história (da literatura ou outra) será então sempre fazer uma narração, nunca uma ressurreição. A hermenêutica entendida como tensão entre certa ideia que fazemos de um objecto e aquilo que esse objecto será, ideia que à medida que vai sendo afinada, vai alterando a nossa própria representação do momento presente, tem sido importante para Óscar Lopes conceber o seu projecto de uma historiografia da literatura como narração em aberto. A História da Literatura Portuguesa (1955), que elaborou de parceria com António José Saraiva – a par do seu já clássico Entre Fialho e Nemésio (1987) – teve 16 edições revistas e foi sempre entendido por ele como um projeto inacabado, exatamente porque partilhava da ideia otimista de que não se pode beber duas vezes a mesma água, de que não se vê a mesma coisa duas vezes da mesma maneira. Por isso mesmo, já nos anos 50, Óscar Lopes falava em fazer história da literatura em função do público . Como o momento presente nunca está definido, define-se reciprocamente em relação ao seu objeto, para Óscar Lopes, conhecer o passado era conhecer o presente – fazer história da literatura portuguesa era conceber um futuro português.

Para além de um historiador da literatura, de um crítico literário e de um linguista de exceção, Óscar Lopes foi uma figura humana ímpar. Era um homem de uma bondade enorme, de uma humildade enternecedora, de uma disponibilidade ilimitada, de uma abertura de espírito rara, de uma sabedoria insaciável e era um cidadão sempre pronto a colocar-se ao serviço dos outros e da pátria, que foi para ele mais madrasta que mãe. A sua humildade intelectual, tão própria de um verdadeiro sábio, permitia-lhe ouvir com igual atenção o mais banal dos estudantes ou o seu par da investigação mais vanguardista. Também por isso ele foi um “construtor de pontes” (2004: p. 308), como lhe chamou um dia o seu amigo António José Saraiva.

Foi um homem grande e forte na fragilidade da sua figura física. Para mim, o grande mestre em múltiplas fulgurações e um amigo incondicional.

Na passagem do centenário do seu nascimento, as suas cidades, Matosinhos e Porto, e o PCP, seu partido de toda a vida, tomaram uma série de iniciativas para evocar a sua grandeza. Por iniciativa da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde só lhe foi permitido chegar depois do 25 de Abril, com quase sessenta anos, decorreram diversas iniciativas, ao longo do presente ano, envolvendo várias instituições da cidade (o Arquivo Distrital do Porto, a Feira do Livro, a Fundação de Serralves) e a Universidade do Porto estabeleceu que ele será a sua “Figura Eminente” em 2018, prolongando assim pelo próximo ano, as comemorações do seu centenário. Pela relevância do trabalho em causa, doravante incontornável no conhecimento da figura humana e intelectual de Óscar Lopes, destaco a publicação pela Câmara Municipal de Matosinhos, de uma monumental fotobiografia de Óscar Lopes intitulada Retrato de Rosto, da autoria de Manuela Espírito Santo.

1) A propósito dos ensaios de datas diversas, que recolhe em Os Sinais e os Sentidos, Óscar Lopes manifesta o desejo de que: “nos sinais de escrita deste livro se acrescentem, ao sentido inicial, outros sentidos, conferidos por situações históricas já distanciadas e que permitem ver o autor (e o próprio autor se ver) como sendo uma dramatis persona num palco marcado por outras personagens, e por objectos ou projectos comuns, ou diversos.”(1986: p.10).
2) Por muito confusa e indecisa que seja a nossa experiência humana,” – diz Óscar Lopes – “palavras como eu e nós carregam toda a evidência de uma complexa história unificada de assimilação ou acomodação, e palavras como aqui e agora ligam-se à evidência dos enquadramentos, dentro dos quais se nos impõe fazer qualquer coisa, entre um passado que está ainda presente sob a forma de resultados e representações, e um futuro evidenciado por um conjunto presente de expectativas a ponderar, e de alternativas a escolher. Um texto é, assim, um condensado de experiência social activa e intertextualidade definida.” (1990: p.15).

 

Referências bibliográficas

(1951) LOPES, Óscar – “A História da Literatura em Função do Público”, Vértice, nº89, janeiro de 1951.

(1969) LOPES, Óscar – Modo de Ler, Porto, Editorial Inova.

(1984) LOPES, Óscar – Álbum de Família, Lisboa, Caminho.

(1986) LOPES, Óscar – Os Sinais e os Sentidos, Lisboa, Caminho.

(1990) LOPES, Óscar – Cifras do Tempo, Lisboa, Caminho.

(1990) LOPES, Óscar – A Busca de Sentido, Lisboa, Caminho.

(2004) NEVES, Leonor Curado (ed.) – António José Saraiva e Óscar Lopes: Correspondência, Lisboa, Gradiva.