À memória de Aurélio Santos
Um dos maiores receios da minha mãe era o de que o o meu pai fosse transferido de Caxias para Peniche. Ao ler este livro consegui perceber porquê.
Os relatos, na primeira pessoa, estão prenhes de coragem e de firmeza. Na prisão do regime fascista de Salazar e Caetano, tornada ilha ao encher da maré e a lembrar outra prisão e outra ilha, as condições dos presos políticos eram ínfimas, tanto quanto eram as das famílias a quem, na grande maioria, o fascismo sonegava o sustento e com isso a possibilidade de uma deslocação a Peniche, para visitar companheiros, filhos e pais.
Nos idos de 80 visitei o “Forte de Peniche”. Dias Lourenço, protagonista de uma fuga heróica, serviu-nos de guia. Na memória ficou-me gravada a cela do “segredo”. Um pequeno espaço de dois metros quadrados, escuro e húmido. A visita que devia ter conteúdo histórico, acabou por ser um doloroso exercício. Não consegui, enquanto jornalista, esquecer os receios da minha mãe e os relatos que ouvi dos que conheci – Óscar dos Reis Figueiredo e Francisco Pinto (não mencionado no livro) – sobre a sua “estadia” no Forte de Peniche.
A custo, portanto, li o livro que em boa hora e com toda a propriedade a União de Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP) decidiu editar dedicado a “todas as vítimas da perseguição e repressão fascistas”. Dos testemunhos nele inscrito, dois destaques.
“Enquanto aguardávamos pela visita, as horas eram intermináveis, junto a um portão enorme à chuva, ao frio e ao calor. Durante a espera, éramos confrontados pelos medos e incertezas de como iríamos encontrar os nossos familiares e de como iria decorrer a visita. Acalentava-nos apenas a palavra amiga e o abraço caloroso dos familiares de outros presos que ali também se encontravam. (…) Chegava a hora da visita… e passados todos estes anos não consigo apagar da memória uma chave enorme que só o seu barulho a abrir as portas nos intimidava, os choros das crianças que queriam ver os pais, tocar-lhes e beijar-lhes, o que lhes era negado, porque só os podíamos ver da cintura para cima através daquele vidro atrás do qual eles se encontravam já sentados quando chegávamos”. Eulália Miranda
“Naquele dia nenhum de nós pensava que a intervenção do guarda Pôpa viesse apressar e colaborar nos planos da fuga. As circunstâncias contribuíram para muita gente pensar (mesmo os carcereiros) que aquela ida para o «segredo» foi provocada por nós ou pelo Dias Lourenço. Mas a verdade não é essa. De facto esperava-se o momento oportuno. E o momento oportuno foi o guarda Pôpa quem o precipitou. (…) Lembra-me que naquela confusão o Dias Lourenço ainda teve tempo para me lançar um olhar significativo que eu interpretei como indicação de que ia aproveitar a oportunidade. (…) Era todo um mundo de interrogações que nos preocupavam. Sempre que um guarda se aproximava ou abria a porta da sala esperávamos poder observar qualquer indício que fosse uma resposta à nossa ansidedade.
O tempo de espera não foi muito.
Numa manhã seguinte dois guardas entraram na caserna e dirigiram-se para a minha cama. Pressenti imediatamente que tudo se tinha consumado – para o bem ou para o mal.
– Onde estão as coisas do senhor Dias Lourenço? – perguntaram, sem se dirigir particularmente a ninguém”. Joaquim Campino
Para que a memória não esmoreça (o livro também contém todo o processo de luta conduzido pela URAP com o objetivo de que a prisão fascista permanecesse como testemunho vivo e não se transformasse em unidade hoteleira), Forte de Peniche – Memória, resistência e luta é um livro de leitura obrigatória, para todos os que, sem sectarismos de qualquer espécie, falam e escrevem sobre a ditadura fascista de Salazar e Caetano. Mesmo para os que a apelidam de “Estado Novo”.