O que é a urbanização?

Cidade é uma daquelas palavras que parece ter um significado muito claro: uma cidade ou urbe é uma área urbanizada, que se diferencia de vilas e outras entidades urbanas através de vários critérios, os quais incluem população, densidade populacional ou estatuto legal, embora a sua clara definição não seja precisa, sendo alvo de discussões diversas…, como é dito na wikipédia. Numa conversa ligeira onde seja dispensável saber os sentidos mais rigorosos das coisas de que se fala, a palavra cidade parece funcionar. Nessas circunstâncias a conversa decorrerá, serão trocadas razões e argumentos e, como num poliedro de infinitas faces, cidade será aquilo de que se fala quando se fala de cidade, dependendo da face do poliedro que estiver em discussão.

De entre as características habitualmente apresentadas para caracterizar cidades, para além do nome e da localização, referem-se: a) determinados quantidades e diversidades populacionais – “muitas e variegadas gentes”, como escrevia o cronista Fernão Lopes (1385-1460) a propósito de uma certa Lisboa de outros tempos; b) um determinado valor de densidade demográfica derivada da aglomeração; c) uma extensão territorial considerável, infraestruturada e bastante edificada; d) determinadas características morfológicas mais ou menos regulares, lotes, quarteirões, traçados, ruas, etc.; e) a presença de uma diversidade de actividades económicas industriais e de serviços; f) sociológica e culturalmente, a ocorrência de uma grande diversidade de estatutos e referências culturais; f) um grau de abertura ao exterior, à troca, à mobilidade de pessoas, de bens, de informação, etc., etc.

Claro que todas estas características possuem um certo relativismo sensível a conjunturas históricas e geográficas, ora privilegiando visões culturalistas e historicistas (no contexto Europeu, sobretudo), ora, por exemplo, dizendo respeito apenas a morfologias e processos de urbanização rápida e de grande escala que ocorreu recentemente no hemisfério sul, no Grande Sul, como na América Latina, em África ou no Sul e SE da Ásia em países como a Índia ou a China.

A banalização da denominação de cidade atribuída quer a constelações urbanas imensas – Cidade do México, de S. Paulo, Cairo, Bombaim/Mumbai, Tokyo, Dhaka, Beijing, Shanghai, etc. -, quer aos aglomerados modestos que existem em Portugal, por exemplo, ou, viajando no tempo, às cidades da pré-história, da antiguidade clássica ou do renascimento italiano, fazem-nos crer que cidade é um genérico transcultural, trans-histórico, a-temporal e a-espacial. Em todos estes casos, cidade seria a forma, o tipo de assentamento, que acompanha a evolução da urbanização, por sua vez, um resultado da própria evolução e do aprofundamento do denominado processo de modernização; dos seus contrastes e contradições, claro. Basta para isso analisar o processo histórico do imperialismo europeu e da colonização em África ou nas Américas e entender a especificidade da construção do território urbano e das relações sociais e espaciais que se engendraram entre a cidade do colono e a outra.

No imaginário europeu, a cidade tem um nome próprio, uma localização e uma história; possui um centro, um limite e uma forma clara; é uma civitas – um grupo social definido -, uma polis – um sistema político de regulação desse grupo social -, e uma urbis – os edifícios, as ruas, as praças, as infraestruturas que contêm e viabilizam o funcionamento do assentamento urbano. É, resumindo, uma espécie de Cidade-Estado, um interior claramente confinado (dentro de uma muralha, um limite administrativo, uma descontinuidade geográfica como um rio ou a linha de costa), separado e diferente do um exterior de onde se recorta: o campo, o espaço rural, o território.

Todas estas clarezas e simplificações são hoje redondamente falsas, mas de tantas vezes repetidas e sucessivamente matizadas, adaptadas sem grande esforço crítico, tornaram-se verdadeiras e continuam a circular nas mais diversas publicações, ou representações.

Ocorre até que em períodos e contextos onde a metamorfose da urbanização é muito rápida e disruptiva – exigindo revisão de conceitos e formas de problematizar -, que, ao invés de rever e actualizar a epistemologia do urbano, da urbanização e da cidade, ocorre outra coisa: separam-se as novas formas de cidade e urbanização das tidas como convencionais, colocam-se-lhes nomes distintos – periferia, subúrbio, bairro de lata, urbanização informal, favela, etc. -, e assim se vai mantendo intocável a falsa clareza da cidade.

Aconteceu isso com o subúrbio e a suburbanização, uma especial forma de urbanização que teve uma dinâmica fortíssima na Europa e nos EUA no séc XIX.

O domínio geográfico e semântico do subúrbio, com todo o seu rol de imagens pejorativas, acabou por produzir um efeito de preservação da ideia luminosa de cidade, construindo-lhe uma blindagem que fez com que tudo o que fosse indesejável e perturbador da boa imagem urbana, fizesse ricochete e aterrasse nessa zona franca desqualificada. A cidade continuou a ser o centro; e o subúrbio, a periferia – a cidade é uma entidade com forma, centro e limites perfeitamente claros; o subúrbio corresponde a uma condição incerta, desconfinada, instável, sem forma, sem história, sem linhagem.

A cidade é extraordinária, o subúrbio é ordinário e duplamente periférico: um afastamento físico ao centro e um afastamento social às classes urbanas favorecidas. Tão claro quanto grosseiramente simplista.

Na literatura da especialidade, o subúrbio tornou-se a vala comum das sociedades em processo de industrialização: o lugar para onde se exportava o negro das fábricas e do proletariado e tudo o que fosse a retaguarda suja de qualquer montra que brilhasse na “cidade”. Dos campos iam também para aí os desqualificados da sociedade rural. Este é o pecado original: quando a urbanidade se transformava e ganhava uma nova sociologia e uma nova geografia, cavava-se um fosso entre a má e a boa cidade e assim se mantinha esta última purificada, em estado cristalino.

Por ser uma palavra com o prefixo sub, o subúrbio é imediatamente estigmatizado: todas as palavras com essa prótese à cabeça correspondem a versões deploráveis daquilo que aparece à frente do tal prefixo. Sub é o que está por baixo, subterrâneo, subalterno; o que é inferior, degenerado. Subúrbio seria então um estado de urbanidade muito pouco recomendável, uma metamorfose espúria da urbanidade a lavrar descontrolada e sem tino por montes e vales.

Frederich Engels publicou em 1845 na Alemanha (traduzido em inglês só em 1885) a Condição da Classe Trabalhadora na Inglaterra: Manchester, Liverpool e o Est End de Londes, subúrbios e outras áreas mais centrais, eram exemplos claros da urbanização da pobreza operária criada pelo crescimento meteórico do capitalismo industrial. Estava assim inaugurada a leitura crítica da produção social da cidade e das suas desigualdades e contradições; mais tarde, teria um ressurgimento muito importante com Henri Lefèbvre (1901-1991) e com obras como Le Droit à la Ville (1968).

A cidade como “coisa”, como entidade, objecto de estudo autónomo, ficava assim decididamente ultrapassado, mas a verdade é que, entretanto, quer em áreas disciplinares como a arquitectura e o urbanismo, quer sobretudo nos meios de comunicação de massa e no senso comum, continuava (e continua) o cenário apresentado no início – fala-se de cidade a propósito de tudo e de nada.

Em termos estritamente morfológicos, inspirado em Banham foi Cedric Price – The City as na Egg, 1982 [1] – que popularizou a metáfora mais eficaz para desfazer certos lugares comuns acerca da cidade como um ideal-tipo mais ou menos único e vago.

A primeira metáfora, o ovo cozido, é a imagem da cidade amuralhada. Na segunda, no ovo estrelado, define-se claramente um modelo dualista de urbanização: a gema é o centro onde tudo se concentra; o subúrbio é a frente de expansão urbana contígua ao centro, de função dominantemente habitacional e sucessivamente mais distante. Claro que a palavra “cidade” ficava confinada ao centro.

Desde a rede dos caminhos-de-ferro e estradas do séc XIX, até às auto-estradas, aeroportos, redes de energia, gás, saneamento, telecomunicações…, estes e outros sistemas sociotécnicos de suporte à urbanização iam-se multiplicando e garantindo a coesão funcional do sistema e a sua escala espacial cada vez mais alargada. Do ponto de vista político-administrativo, haveria desde supergovernos que regulariam o ovo estrelado inteiro, a chamada Área Metropolitana, até à mais fragmentada geografia política onde o município (ou outro circunscrição local do mapa político-administrativo) do centro, o que contém a “cidade”, domina sobre os outros e, todos, disputam decisões sectoriais do Estado (acerca da localização de hospitais, sistemas de transporte, aeroportos, vias rápidas, universidades, etc.) e dos privados. Normalmente, o município que contém o centro não tem problemas em garantir os seus interesses.

Em todo o caso, nas metáforas do ovo cozido e do ovo estrelado, o artefacto urbano continuava a ter limites claros, distinguindo-se da sua envolvente rural, natural, o que seja. O sistema Área Metropolitana substituía a cidade, dando clareza a um suposto modelo universal para a cidade que entretanto cresceu – que se “expandiu”, como se costuma dizer – e que, apesar do mosaico variado e contrastado das formas urbanas, manteve uma elevada coerência funcional e uma intensa dependência face ao centro; de um único centro, entenda-se.

Com o que já foi dito (ainda sem os “ovos mexidos”), percebe-se que a cidade perdeu o monopólio da urbanização e se desfocou da geografia dos nomes e dos povoados com limites precisos.

Diferentemente da cidade pensada como um lugar, a urbanização é um processo em modo contínuo — toma forma e lugar nas mais diversas circunstâncias e geografias —, depositando algures construções diversas e funções variadas, relações e ambiências,

e organizando-se nas mais variadas escalas, do local ao global, do micro ao macro. Aquilo que na vida urbana só a proximidade, a contiguidade, a diversidade e a aglomeração permitiam, pode-se agora espaçar por dezenas ou centenas de quilómetros, pode-se dissipar pelo mundo todo, densificando-se ou dispersando-se, separando, como sempre, riqueza e pobreza, conforto ou privação; aproximando, misturando.

A terceira metáfora, os ovos mexidos, corresponde claramente a esta explosão da forma urbana: a urbanização admite descontinuidades, dissonâncias, crescimento por fragmentos, indefinição formal, múltiplas geografias políticas e administrativas, graus variáveis de polarização ou coesão social – no limite a territorialidade da urbanização define-se por um campo de forças onde se desenham as mais variadas redes de relações e movimentos, ora compondo geografias onde se percebe uma certa coesão e continuidade, ora formando arquipélagos de “ilhas” que correspondem a unidades com um grau de referenciação elevado – condomínios fechados, aeroportos, zonas empresariais, favelas, etc. – mais ao menos conectados aos sistemas infraestruturais que suportam a mobilidade de pessoas, mercadorias, energia ou informação.

Muito estranho seria se perante a aceleração tumultuosa da inovação tecnológica, da globalização económico-financeira, do extremo contraste entre sociedades, países e lugares do mundo, os processos e as formas de urbanização fossem os mesmos de sempre.

A urbanização não é mais do que uma espécie de territorialização da sociedade e da sua (des)organização. O aprofundamento da globalização veio a complexificar ainda mais a questão.

O divisor comum entre um bairro pobre de Nova Deli e a city de Londres, é a teia da organização capitalista mundial que designa posições para os mais desqualificados dos trabalhadores ou para o seu contrário.

Para processos e formas urbanas distintas, são necessários novos conceitos urbanos. P.J. Taylor e R. E. Lang, 2004, compilaram cem nomes diferentes para esses conceitos[2]. Deve haver mais!

O curioso é que a cidade persiste como forma dominante de entender o urbano e a urbanização (pelo menos, a julgar pelo uso da palavra até à exaustão dos significados que lhe dão). O geógrafo David Wachsmuth resolve a questão desta polissemia infinita, defendendo simplesmente que cidade não corresponde a um conceito – uma categoria clara e objectiva, verificável pelos modos habituais da prática e do conhecimento científicos -, mas sim a uma ideologia: cada um dirá aquilo que quer representar e argumentar como cidade.

A metáfora da urbanização como ovo mexido anula definitivamente a “cidade”:

– Perdido o “todo” que caracterizava a “cidade-corpo” como um sistema mais ou menos fechado, a urbanização extensiva contém múltiplas escalas e pertenças; a cidade constituída pela rede dos lugares, transformou-se no urbano enquanto rede de sites, de fragmentos urbanos que se caracterizam pelos seus conteúdos e teias de relações com outros fisicamente próximos ou não. A geografia das relações é mais importante do que a geografia das formas. Mais do que o todo urbano que não se sabe o que seja, o conhecimento das suas partes permite mostrar o puzzle e discernir as (inter)relações mais significativas, bem como os efeitos sistémicos. O urbano (a urbanização) não é um “texto” linear e estruturado como nos relatos acerca da velha cidade: uma geografia que estuda o “crescimento da cidade” (por contiguidade, a partir de um centro) e uma história que segue a cronologia desse crescimento e informa genericamente acerca dos contextos sociais em presença;

– A urbanização, como construção social que é, é um processo muito diverso que se manifesta diferentemente e não segundo regras ou formas universais. A urbanização no México, em França, na China ou nos EUA contém formas e processos muito distintos;

– A pequena escala que caracterizou a cidade durante séculos, remetendo-a para um espaço densamente construído confinado por um limite, “explodiu”, estendendo-se agora no território como uma constelação, ora aglomerada, ora dispersa, contínua ou descontínua, dotada de vários núcleos de centralidade, de áreas especializadas ou misturadas. Estas formações sócio-territoriais são percorridas por sistemas sociotécnicos que suportam as mobilidades e relações de pessoas, mercadorias, informação ou energia. Áreas de urbanização mais antiga ou mais recente podem passar por modificações drásticas, seja nos níveis de renda, na atracção de determinadas actividades ou ambiências, na persistência ou na ruptura de processos vindos do passado;

– Centro e periferia não são lugares fixos. A emergência da condição central (cujas características são a máxima acessibilidade aos diversos modos de transporte; a aglomeração de actividades e funções altamente polarizadoras; e a capacidade de produzir imagens e marcações simbólicas) pode ocorrer longe do velho centro – o que foi reclassificado como Centro Histórico -, com perfis distintos e ajudando a construir espacialidades urbanas poli ou multicêntricas. A condição periférica tanto se pode manifestar em zonas deprimidas “dentro” da velha cidade, como algures. Criado um estigma em torno dessa condição, a inércia aumenta porque os próprios processos sociais da periferização tendem a reproduzir-se.

Como conceito – designação dada a palavras com significados claros e precisos -, cidade é uma ruína. A cidade é um ideal-tipo usado para falar de uma determinada faceta da urbanização considerada exemplar, seja uma forma, uma ambiência, uma visão do mundo, uma arquitectura, etc. Assim, existe a cidade histórica, a cidade inteligente, a cidade sustentável, a cidade inovadora e todo um sem número de palavras-slogans de efeito mistificador.[3] A palavra cidade tornou-se uma palavra-contentor, cabe lá quase tudo. O problema não é só esse. O problema é que a tenacidade do pseudo-conceito de cidade constitui um obstáculo no esforço de entender o que são as múltiplas formas de urbanização contemporânea, sobretudo a Urbanização da Pobreza que caracteriza a maior parte da urbanização do planeta.

Notas:
[1] Banham, R. (1959), City as a Scrambled Egg, Cambridge: Opinion (17), 18-23
[2] P. J. Taylor, R. E. Lang (2004), The Shock of the New: 100 Concepts Describing Recent Urban Change, Environment and Planning, Vol: 36 issue: 6, pp: 951-958.
[3] David Wachsmuth (2014), City as ideology: reconciling the explosion of the city form with the tenacity of the city concept, Environment and Planning D: Society and Space 2014, volume 31, pages 75–90