José Afonso – 90 Anos, Os Cantos Intemporais do nosso (des)contentamento

José Afonso foi um homem do seu tempo e dos tempos que viriam: assumindo-se como legítimo herdeiro e usufrutuário de tradições do canto de resistência nas fileiras das lutas pela liberdade, interpretou as urgências e as necessidades do seu tempo conferindo-lhes horizontes de futuro que permanecem como estímulos fundamentais no nunca terminado processo de conquista da dignidade humana numa “cidade sem muros nem ameias”. A intemporalidade das suas cantigas – mesmo naquelas cujo processo de criação parece confinado a um quadro histórico muito concreto e historicamente definido – radica justamente nessa genial capacidade de antecipar o futuro conquistando vontades e sensibilizando consciências para os amanhãs por fazer.

Em José Afonso e com José Afonso, o canto renova-se em cada audição: emergindo de tradições herdadas, esse canto constrói caminhos que vão ser depois vias de encontro colectivamente assumidas, que nunca se esgotam. Foi assim que do fado de Coimbra e das canções tradicionais (sobretudo beirãs e açorianas, numa primeira fase) José Afonso (re)criou trovas e baladas e definiu as bases artísticas de um canto de intervenção que, a partir dos anos 70 do século passado, seria canto livre e alicerce da música popular portuguesa tal como ainda hoje a entendemos.

José Afonso esteve na génese de todas as fases evolutivas de um processo que foi colectivamente assumido e participado, sem nunca secundar ou esquecer a raiz genuína da portugalidade da sua obra, a música tradicional portuguesa.

O trovador foi-o, do princípio até ao fim, permanecendo a obra fonte de inspiração e com a inefável capacidade em nunca deixar de nos surpreender. Porque, de facto, nas suas cantigas, José Afonso soube e quis sempre antecipar o futuro.

1. Coimbra: do fado e das canções coimbrãs para as trovas e baladas. José Afonso foi em 1940 prosseguir estudos em Coimbra, tendo então tido a oportunidade de conhecer bem a cidade e todo o ambiente que envolvia a comunidade estudantil, inconformado com a saída de África, cujas recordações não mais o abandonaram:

Troquei todas essas recordações, uma espécie de liberdade física de que gozava em África, pelo mito de Coimbra, uma Coimbra romântica daquela liberdade libertina que nos cantavam e nós cantávamos. Fazíamos o que nos dava na real gana, dávamos largas à tendência para o improviso e para a imaginação. Era a lenda, e Coimbra, que me envolveu bastante.

Cinco anos depois da sua chegada e enquanto frequentava o 5º ano no liceu D. João III, a sua voz começou a ouvir-se nas noites da boémia estudantil coimbrã, interpretando o repertório dos fados tradicionais, tendo-se inscrito em Ciências Histórico-Filosóficas da Faculdade de Letras em 1949. Destas andanças coimbrãs ficou a associação da sua voz à dos melhores e mais conceituados intérpretes da canção coimbrã, tais como Fernando Rolim, Fernando Machado Soares e Luís Goes, entre alguns mais. E, em 1953, gravou fados de Coimbra: Incerteza, O sol nada lá no céu, Contos velhinhos e Fado das águias (acompanhado pelas guitarras de António Brojo e António Portugal e pelas violas de Aurélio Reis e Mário de Castro).

Avancemos um pouco no tempo: quando em princípios dos anos 80 se registava em Coimbra uma tentativa de instrumentalização e apropriação do fado de Coimbra protagonizada por forças retrógradas, José Afonso vai recuperar Edmundo de Bettencourt e recolocar com o álbum “Fados de Coimbra e Outras Canções” a canção coimbrã no seu lugar de sempre. Uma vez mais – e sempre – José Afonso assumiu o mandato de recusa de um reescrever da história ao serviço de objectivos culturais (e políticos) absolutamente ilegítimos.

2. Pelo país e por terras africanas: as trovas e baladas de um tempo de transição. Em 1958, quando já se encontrava em Faro a dar aulas, José Afonso vai protagonizar uma mudança muito importante na evolução da música popular portuguesa, assumindo a ruptura com o ambiente musical coimbrão e tudo o que mais o rodeava, gravando as suas primeiras “baladas de Coimbra”: Menino de oiro, No largo do breu, Tenho barco tenho remos e Senhor poeta. Numa carta escrita a seu irmão João Afonso, José Afonso afirmou: Talvez te interesse saber que vou gravar outro disco, desta vez com duas ou três canções totalmente libertas dos pruridos coimbrãos. Segundo dizem as más línguas, uma delas, MENINO DO BAIRRO NEGRO, vai dar muito que falar.

Neste processo de renovação, José Afonso publicaria mais dois singles: Balada de Outono (1960) e Dr. José Afonso em Baladas de Coimbra (1963). Este é um período durante o qual José Afonso nunca deixou de acompanhar as crises académicas em Coimbra e no Porto, não enjeitando a oportunidade para a elas se associar com a sua voz, acompanhado já por Rui Pato, o que era sempre tarefa complicada, segundo este: Íamos sempre com o coração nas mãos. Quando partíamos para uma coisa nunca sabíamos se ele podia cantar ou se o recital era proibido. Eram sessões muito acidentadas.

Fazia-se história, aos mais diversos níveis, prosseguindo a saga da verdadeira renovação da música portuguesa que estava a ser protagonizada por José Afonso, numa demonstração inequívoca de que ele criava canções para os novos tempos. No cartaz que anunciava “um espectáculo de fino gosto musical”, em 17 de Maio de 1964- com uma primeira parte a cargo de Carlos Paredes e Júlio Abreu em “Variações à Guitarra” e uma segunda parte com o Dr. Zeca Afonso acompanhado por Rui Pato com “Baladas e Canções de Coimbra” – a Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense não tem qualquer dúvida: Embora mantendo ainda nas suas canções os sentidos musical e interpretativo de Coimbra, Dr. José Afonso revela-se um inovador. Através das suas belas e estranhas baladas, perpassa todo o sentido poético-trágico da sensibilidade do nosso povo. Pela primeira vez através deste cantor-poeta de temática eminentemente popular, a canção portuguesa encontra um caminho certo.

Seria neste espectáculo que, seguramente já antecipando o futuro evolutivo da música portuguesa da fase das trovas ou baladas para a nova canção de intervenção, José Afonso cantou pela primeira vez uma canção composta para evocar e homenagear Catarina Eufémia, Cantar alentejano.

E, inspirado e estimulado pelo ambiente de verdadeira fraternidade que se respirava, compôs poucos dias depois um poema que foi lido naquela mesma sala, intitulado Grândola Vila Morena.

Neste mesmo ano, José Afonso publica um álbum, Baladas e Canções (do qual se destacam, entre outras, canções como Ronda dos paisanos e O pastor de Bensafrim), surgindo pouco tempo depois um disco que de imediato recebeu os mimos proibitivos da censura, com canções como Coro dos caídos, Canção do mar, Ó Vila de Olhão e Maria.

E, ainda em 1964, José Afonso regressa a terras africanas, Moçambique, que vão marcar a sua sensibilidade politica e musical de sobremaneira, reconhecendo no entanto que isso significou a ruptura com um circuito de apresentações em público que foi muito importante para ele: Quando fui para o Maputo, então Lourenço Marques, estava no início da minha fase mais ou menos organizada de cantar nos meios académicos, nas associações de estudantes e nas colectividades. Tinha finalmente assinalado um objectivo para a minha actividade, uma vez que, desde 60/61, ou antes, a minha militância era praticamente improvisada, solitária e até quase boémia.

Mas a África seria, como referimos antes, uma influência decisiva, apesar de José Afonso regressar à metrópole em 1967: As coisas finais reflectem canções suburbanas que ouvi e imagens que nunca mais esqueci. Ao fim da tarde, quando aqueles empregados todos, aqueles mainatos todos, se punham a dançar ouvindo a rádio Pax, quando já se estavam nas tintas para o ferro de engomar e para aquilo tudo, foram imagens que me ficaram para sempre. Na personalidade do africano havia sempre alguma coisa que a repressão do branco não conseguia destruir.

Um regresso com vida difícil, tal era o cerco da PIDE às suas actividades – Todo o meu trabalho tinha sempre um carácter político. Qualquer sítio para onde me deslocava e as situações de escândalo daí resultantes eram por vezes muito mais úteis que uma simples sessão de cantigas… – durante o qual José Afonso vai congeminar e aprimorar o material que deu forma ao álbum “Cantares do Andarilho”, publicado em 1968, quando já estava assente com residência em Setúbal, uma obra com a qual ele considera dar início a uma fase de transição no meu percurso estético-musical na medida em que se apoia numa recuperação de formas musicais e poéticas ancestrais.

Os testemunhos discográficos que se seguiram – “Contos Velhos Rumos Novos” (1969) e “Traz Outro Amigo Também” (1970) – marcam, e de que maneira, uma evolução e uma maturidade que viriam a ser determinantes para o que iria acontecer logo em princípios dos anos 70.

3. Da intervenção (re)centrada para a nova música popular portuguesa. Tempos novos requeriam novas expressões culturais capazes de acompanhar as dinâmicas socais e políticas da época, assim como de responder aos novos desafios da modernidade expressiva. E o universo das cantigas tinha de corresponder a um novo quadro de exigências, o que sempre caracterizou todo o processo evolutivo: se a partir das “canções heróicas” e do fado/canção de Coimbra se caminhou para o movimento das trovas e baladas (da tão celebrada “viola heróica”, de alguma maneira incorporando sugestões dos cantos de protesto que pelo mundo se iam fazendo ouvir), no início dos anos 70 do século passado era manifestamente evidente que nada mais podia continuar a ser como antes. Se a linha temática de enraizamento expressivo tendo por base a herança da música regional portuguesa e o mandato de intervenção cultural, social e política permaneciam nos alicerces fundamentais da nova música popular portuguesa como herança irrecusável e fundamental, era necessário avançar para níveis de instrumentação mais ricos assim como para arranjos e orquestrações que respondessem a novas sensibilidades criativas por parte do público. Era preciso combater o simplismo historicamente compreensível da fase da “viola heróica” ou da “viola às costas” e avançar para propostas que integrassem as novas exigências estéticas e artísticas.

E foi no ano de 71, num Outono particularmente importante e decisivo – pela publicação de obras discográficas de José Mário Branco (“Mudam-se os Tempos Mudam-se as Vontades”), Sérgio Godinho (“Os Sobreviventes”) e Adriano Correia de Oliveira (“Gente de Aqui e de Agora”) – que foi publicado o seminal “Cantigas do Maio”, que José Afonso não hesitou em considerar, nesse mesmo ano, como sendo “o melhor que fiz” acreditando “que não voltarei a fazer outro assim”.

Trata-se, de facto, de um momento de viragem muito importante para todo o movimento de cantigas que, emergindo do post-guerra – das “canções heroicas” ao canto de intervenção, passando pelo fado de Coimbra e pelas trovas e baladas e pela breve incursão na canção de protesto, vai desaguar na nova Música Popular Portuguesa, uma expressão emancipada e enraizada para a qual foram decisivos os contributos renovadores e inovadores aportados por José Afonso ao longo de toda a sua carreira.

José Afonso, nas obras de originais que se seguiram – “Eu Vou Ser Como a Toupeira” (1972), “Venham Mais Cinco” (1973), “Coro dos tribunais” (1975), “Com as Minhas Tamanquinhas” (1976), “Enquanto Há Força” (1978), “Fura Fura” (1979), “Como Se Fora Seu Filho” (1983) e “Galinhas do Mato” (1985) – legou-nos testemunhos de um percurso onde, ele próprio, define as fases de evolução que nos levaram à Música Popular Portuguesa tal como ainda hoje a continuamos a entender, a ouvir e a fazer.

José Afonso foi um cantautor do seu tempo e de todos os tempos, com uma genial capacidade em apontar os caminhos por fazer, o que explica porque razão ainda continuamos a descobrir sempre algo de novo nas suas canções.

Uma obra inesgotável que devemos fruir sem, todavia, deixar de ter bem presentes os referentes históricos, sociais e políticos das fases evolutivas em que a mesma se inseriu. Esta é, a nosso ver, a única maneira de lhe rendermos a nossa homenagem com a certeza do seu contentamento lá na Constelação da Utopia onde habita.

Bibliografia:
- Alcides Bizarro, 2019, José Afonso. O Tempo e o Modo. Edição da Câmara Municipal de Grândola.
- José António Salvador, 1984, Livra-te do Medo. Estórias & Andanças do Zeca Afonso. A Regra do Jogo, Edições.
- Mário Correia, 1984, Música Popular Portuguesa. Um Ponto de Partida. Edição Centelha/MC-Mundo da Canção.
- Viriato Teles, 1983, Zeca Afonso. As Voltas de um Andarilho. Relógio d’Água Editores, Lda.