Nota de Leitura – “Uma Outra História do Tarrafal”

 

Nem Colónia Penal nem Campo de Trabalho: para a História ficou conhecido como Campo de Concentração do Tarrafal (Cabo Verde, Ilha de Santiago), o espaço insular de desterro e encarceramento onde, entre 1936 (modelo da Alemanha nazi) e 1951 (ondas de choque do desfecho da Segunda Guerra Mundial), cumpriram penas de prisão e medidas de segurança 324 presos políticos portugueses (dos quais aí morreram 30) e, entre 1961 (início da Guerra Colonial, em Angola) e 1974, medidas administrativas de internamento 107 angolanos, 98 guineenses e 24 caboverdianos, também como presos políticos.

A história desta infâmia (“uma dor de quatro nações e dois continentes”, há-de o autor sublinhar) tem sido registada em diversas obras, em que predominam as memórias de antigos prisioneiros e, mais recentemente, em estudos históricos e dissertações académicas, em torno do tema deportação e desterro na aventura colonial portuguesa.

Em edição das Publicações D. Quixote saiu, em Setembro deste ano, com a indicação de romance, a obra O diabo foi meu padeiro, de Mário Lúcio Sousa, escritor e músico, figura multifacetada e multipremiada da cultura caboverdiana, nascido (1964) e crescido na freguesia onde se situa o antigo Campo de Concentração do Tarrafal, e que, ainda criança, conheceu a realidade envolvente dessa prisão, e, já depois de 1974, outra realidade, quando viveu e foi educado nas instalações da antiga cadeia, reconvertida em caserna das Forças Armadas de Cabo Verde.

Da lembrança que guardou, das coisas e pessoas que conheceu, acerta contas com as memórias próprias, através de um fio de relato histórico, baseado em obras publicadas de antigos prisioneiros, sobre a sua experiência prisional, ao qual dá um original tratamento literário, de que resulta uma história daquela prisão (a mesma, contada de outra maneira), desde a sua criação até à libertação dos presos, em 1974, passada uma semana do 25 de Abril, quando a notícia da revolução em Portugal aí chegou oficialmente.

Com notável agilidade, que inclui a atenção à diversidade linguística ou dialectal dos presos, o autor consegue articular a violência e a desumanidade que ressumam dos registos originais da realidade prisional com o objecto literário que dedica aos 553 antigos prisioneiros, nominalmente identificados numa lista final, que no Campo sofreram o desterro e a prisão, ou a morte.

A estranheza do título da obra, O diabo foi meu padeiro, confere com o absurdo do tema, razão da longa luta que Amílcar Cabral (Dakar, Julho de 1961) assim definiu: «Se a queda do fascismo em Portugal pode não levar ao fim do colonialismo português – hipótese que é, aliás, apresentada por alguns dirigentes da oposição portuguesa – temos a certeza de que a liquidação do colonialismo português arrastará a destruição do fascismo em Portugal».