Pelos ares, nunca antes atravessados
Passam este ano vinte anos sobre a transferência de soberania em Macau. Portugal transferiu a administração do território para a República Popular da China, em Dezembro de 1999, ficando assegurados cinquenta anos de vigência da língua portuguesa no território. Macau sempre foi visto como um território distante e raras vezes se sabia onde ficava exatamente essa pequena parcela de presença portuguesa no Oriente. Conta Jaime do Inso que, já no século XX, os correios ainda não sabiam onde ficava Macau. No seu livro Visões da China, não raro refere este desconhecimento que quase desemboca na perceção de que em Portugal havia um grande desinteresse sobre Macau, dando o exemplo do correio extraviado quando a morada do destinatário era neste longínquo território.
Atualmente, o desconhecimento sobre este pequeno território mantém-se, apesar do discurso político de aproximação à China. Este desinteresse manifesta-se, nomeadamente, ao ignorar o papel dos sinólogos que, no território de Macau constituíram e alguns ainda (raros) constituem um corpus de conhecimento assinalável e incontornável em língua portuguesa dos mais mundanos acontecimentos da vida daquele território que até há bem pouco içava oficialmente a bandeira de Portugal. Se percorrêssemos a lista do que não se sabe sobre este território, outrora parte integrante dos territórios administrados por Portugal, preencheríamos todo este artigo com essa enumeração.
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Corria o ano de 1924, quando dois aviadores, José Manuel Sarmento de Beires e António Jacinto da Silva Brito Paes, acompanhados pelo mecânico Manuel Gouveia, embarcam numa aventura que consistia na ligação aérea entre Lisboa e Macau. Esta aventura constitui reconhecidamente um marco na aviação nacional e internacional, tendo contribuído para a cartografia e tecnologia aeronáuticas. Ademais esta aventura insere-se num movimento internacional de “Conquista dos ares” que levava a que países como os Estados Unidos, a França, a Itália, o Reino Unido e o Japão tivessem autênticas esquadras, com vários aviões, a desafiar os limites da aviação. No momento em que estes portugueses tentaram esta ligação, sobrevoando mares e desertos, montanhas e planícies, outras esquadras tentavam empreender a primeira viagem aérea de circum-navegação. Qual a diferença entre estes aventureiros de diversas nacionalidades? Os portugueses empreendem na viagem apenas com um avião, obtido através de subscrição pública ou o que hoje seria denominado por “crowdfunding”. A este esforço da sociedade civil aliam-se jornais, organizadores de eventos e associações.
Graças à divulgação pública desta aventura aérea, ela ganha um grande impacto na sociedade da época. Torna-se assunto de jornal, revista e de conversa de café. Une mulheres e homens de diferentes profissões e origens geográficas e sociais. Organizam-se jogos de futebol, desfiles, bailes e serões culturais para a angariação de fundos.
O país em turbulência profunda, com acesas discussões no parlamento, greves e manifestações em curso, vive apaixonadamente esta viagem aérea entre Portugal e Macau que parecia restaurar parte do orgulho nacional.
Colocava novamente Portugal no mapa internacional, entre as grandes potências tecnológicas da época. E isso fazia sonhar os portugueses. Isso alimentava o espírito aventureiro dos aviadores.
Em termos de política internacional, há, igualmente, que destacar o seu significado. Além de colocar novamente e na sequência da viagem aérea atlântica, Portugal no mapa, esta aventura aérea reforçava a presença simbólica de Portugal no Oriente, essencialmente em Macau que atravessava um período de turbulência. Apesar da proximidade entre os movimentos republicanos português e chinês, através de Macau, e da implantação das duas repúblicas quase simultânea (apenas distanciadas por um ano e alguns meses), as respetivas revoluções e as novas autoridades tiveram de lidar com os interesses divergentes de Portugal e da China.
Enquanto em Portugal, o regime republicano reforçava o tom nacionalista do discurso que incluía uma presença colonial reforçada e respeitada internacionalmente, na China, o regime republicano comprometia-se com o fim das humilhações à China e progressiva expulsão de todos os estrangeiros que não respeitassem a soberania chinesa. No meio destes discursos nacionalistas inflamados, que tinham permitido a ascensão dos regimes republicanos em Portugal e na China, estava Macau. Este território que Portugal administrava em terras chinesas e sobre o qual se negociavam acordos sempre pouco claros e inconcludentes sobre o que afinal estava sob jurisdição nacional. Neste período, discutia-se sobretudo a soberania sobre as águas territoriais de Macau. Portugal e China não chegavam a acordo e esta viagem aérea demonstrava simbolicamente como Portugal ainda era um ator internacional a ter em conta. A atenção nacional e internacional que a viagem recebe coloca também na agenda chinesa esta aventura, apesar do seu impacto ter sido, sobretudo, sentido em Cantão e Macau.
Voar para o outro lado do mundo
Em 1924, as travessias aéreas intercontinentais ainda constituíam uma grande aventura. A cartografia ainda estava a ser desenhada e a tecnologia ainda tinha parcos recursos para corresponder aos desafios destas viagens. A perda de aviões (e aviadores) era comum, o que justificava que os países com mais capacidade financeira tivessem esquadras no ar que poderiam ir dos três aos cinco aviões, ou até ultrapassar este número, como chegou a acontecer no caso das viagens pioneiras de circum-navegação. A opinião pública era bastante recetiva a estas aventuras, pois tratava-se da prova de que a humanidade era capaz de responder a todos os desafios que a natureza e a distância lhe impunham. Em simultâneo, o uso das bandeiras nacionais concedia a estes feitos um significado interno, transposto para a esfera internacional. Podemos dizer que os anos vinte são, indubitavelmente, tempos de corrida aos céus. Sarmento de Beires, um dos aviadores desta travessia aérea até Macau, voltará à aventura, acompanhado novamente por Manuel Gouveia, desta vez sulcando os ares noturnos do Atlântico, um projeto que Sacadura Cabral e Gago Coutinho tinham deixado proposto, mas não concretizado. Foi em 1927 e Sarmento Beires ainda não tinha caído em desgraça.
Mas voltemos à viagem aérea até Macau. Ainda em 1924, soprando por essa época ventos de turbulência social e política, mas também com o desenvolvimento de um gosto especial pelas aventuras aéreas, Sarmento Beires e Brito Paes, a quem se juntará o mecânico Manuel Gouveia em Tunis, partem de Vila Nova de Milfontes para um voo de descoberta. Seguem com um único avião, partindo a 7 de abril de 1924. O Pátria, o avião que se virá a despenhar na Índia, devido às condições atmosféricas. O relato é de Sarmento Beires que diz como estava exausto e, trocando impressões com o seu companheiro aviador, Brito Paes, decidem aterrar perto de uma pequena aldeia. Este revés é recebido com grande emoção em Portugal. A imprensa nacional e internacional que acompanha a viagem, dá cobertura a este evento. Interrompida a viagem numa das suas etapas e depois de telegrafarem para Lisboa, a sociedade civil, com um forte apoio da imprensa lança uma série de atividades no sentido de conseguir fundos para comprar um novo aparelho. A um avião, comprado em segunda mão, através da angariação de fundos, segue-se um outro, o Pátria II, pelo qual os aviadores tiveram de esperar e que chegaria através da Índia.
Em Portugal e apesar deste grande contratempo, considerava-se que a viagem já era um sucesso, pois chegara-se à Índia e pela primeira vez aviadores portugueses desbravavam os ares daquela parte do mundo. Logo que recebem o novo aparelho, os aviadores fazem-se aos ares e lá vão em direção a Macau. Contudo, nunca chegarão ao seu destino. Os sucessivos atrasos pela mecânica frágil e já antiquada da aeronave até á sua perda, a espera por um segundo avião, tinham empurrado o final da jornada para a época das monções. E foi debaixo de uma forte intempérie que o segundo avião se perdeu, sendo forçada a sua aterragem ainda em Cantão, sem ter sobrevoado os céus de Macau. Mesmo assim, os aviadores são aclamados como heróis e a imprensa portuguesa faz eco do regozijo que se vivia cá e lá, ao ponto de os aviadores fazerem várias escalas no seu regresso a Portugal de modo a serem recebidos apoteoticamente em cada lugar onde havia um português. Mas depois, o que ficou desta viagem? Pouco, apesar de toda a cobertura mediática e apoio popular. Durante a aventura, muitas notícias competiram pela atenção da imprensa, algumas das quais diretamente relacionadas com a aviação, fruto do conflito entre pilotos e o Ministério da Defesa. Relativamente a este conflito, os aviadores chegam a enviar um telegrama em que expressam o seu apoio aos seus camaradas.
Num Portugal mergulhado em conflitos sociais e problemas económicos e políticos graves, não foi difícil ao Poder apagar da memória esta viagem.
Passados vinte anos sobre a transição de Macau, vale a pena lembrar que em tempos alguém tentou ligar aereamente Lisboa a este território.
Sarmento de Beires, um seareiro em Macau
José Manuel Sarmento de Beires, para além de aviador, foi um seareiro. Integrou o Corpo Directivo da Revista Seara Nova entre Janeiro de 1926 e Janeiro de 1932 e foi um colaborador assíduo entre 1924 e 1930, quer na condição de poeta quer de prosador abordando temas da mais diversa ordem com destaque para o tema da aviação.
A Seara Nova adere à grande subscrição de apoio ao “raid” Lisboa – Macau através duma “luxuosa e belíssima” sua edição do livro de poemas Sinfonia do Vento da autoria de Sarmento de Beires cujo primeiro milhar foi posto à venda pelo preço mínimo de dez escudos tendo as livrarias renunciado à sua percentagem de lucro.
Entre as ilustres personalidades inscritas para a aquisição da obra e que a Seara Nova publicou no seu número 35 de 15 de Maio de 1924, figurava, logo à cabeça, o Presidente da República Manuel Teixeira Gomes. Neste número, na página seguinte à que anuncia a iniciativa figura o poema que dá título ao livro Sinfonia do Vento.
A edição foi um sucesso tal que em três dias se tinham vendido um milhar de exemplares e os editores acreditavam que toda a edição estaria esgotada em breve. Reconhecendo o valor poético da obra, é também reforçado o valor nacionalista do feito que os três portugueses tentam, destacando a sensibilidade e bela escrita do autor.
No número seguinte, datado de Junho de 1936, um desenho representando Sarmento de Beires faz a capa da revista. No número 37, de Julho/Agosto de 1924, vários intelectuais comentam a obra Sinfonia ao Vento. Carolina Michaelis de Vasconcelos, António Sérgio, António Lopes Vieira, Aquilino Ribeiro, Jaime Cortesão e António Patrício são unânimes em considerar a sensibilidade do poeta e em reconhecer a sua qualidade poética. No número seguinte, datado de Setembro-Outubro de 1925, Leonardo Coimbra publica uma opinião sobre o livro, ocupando toda uma página em que novamente reconhece o valor estético da obra do autor.
Sarmento de Beires notabiliza-se, então, enquanto aventureiro, mas também enquanto escritor e intelectual. Aliás, a narrativa da aventura entre Lisboa e Macau fica imortalizada pelas suas palavras que descreveram ao pormenor desafios, sentimentos e o companheirismo presentes na viagem. Então, o que faltou a este homem que semeou belas palavras e percorreu o mundo? Faltou-lhe o reconhecimento oficial. A sua atividade política e a paixão com que viveu as suas ideias estavam proibidas num país silenciado por uma Ditadura Militar que se converteu num Estado Novo.
Durante a vida de Beires, Macau passou do local de destino de aventura, ao local de degredo, após a sua participação no movimento revolucionário de 20 de Julho de 1927 que tentava debelar a então Ditadura Militar.
A partir daí, e tendo desertado do Exército, a sua vida passou a ser alvo da vigilância permanente das instituições que zelavam pela segurança da ditadura instalada.
Acusado de atividade conspiratória contra o governo, vivia escapando às autoridades e participando em atividades visando a queda do regime. Em 1931 é novamente acusado de participação em atividade revolucionária no movimento de 26 de Agosto. Em 1932 é acusado de conspiração contra o Estado Novo e, em consequência, banido do território nacional por dois anos. Em 1933 e depois da sua detenção em Espanha, é condenado a sete anos de desterro. Chega a enviar correspondência a António Oliveira Salazar, expondo a sua situação ainda durante a sua detenção no Aljube, mas nada poderia impedir que fosse banido da vida pública e privada portuguesa. Seguia-se o degredo. Para pena “tão leve”, argumentam os ficheiros da PIDE que teria contribuído as atenuantes dos seus feitos como aviador. Macau, terra de aventura, era agora Macau terra de degredo, onde encontra muitas dificuldades em sobreviver, por não conseguir qualquer ocupação remunerada. O seu embarque para Macau dá-se em 1934 e, desde cedo, Beires percebe que a sua vida não será fácil no destino que tinha escolhido para degredo, talvez lembrando-se do caloroso acolhimento que tinha recebido dez anos antes. Acaba por fugir de Macau em 1937, tendo sido o seu paradeiro identificado na África do Norte em 1937. No ano de 1948 era elaborado pela PIDE um dossier sobre os crimes contra a segurança exterior do Estado Português executados por Sarmento Beires que deveriam ser argumento para que não voltasse ao seu país.
Neste contexto, a travessia aérea até Macau, a aventura noturna sobrevoando o Atlântico ou a sua obra literária foram esquecidas.
A Ditadura apagava seletivamente a memória de feitos que envolviam toda uma equipa ou mesmo todo um povo.
Para Sarmento de Beires ser esquecido, Brito Paes e Manuel Gouveia não recebiam nem a atenção nem o reconhecimento de outros aviadores. Conta-se que, querendo Sarmento de Beires assistir ao funeral de Brito Paes, lhe foi negada a possibilidade desse último adeus. Corria o ano de 1934 e Sarmento de Beires via o cortejo fúnebre desde a sua janela do Aljube. Não sabemos o quanto a perseguição política o impediu de seguir e aprofundar uma vida literária. Sabemos, apenas, que o aviador poeta viveu o suficiente para ver cair a Ditadura que o silenciara, falecendo em Junho de 1974. E, apesar de reconhecido por algumas condecorações nacionais que nunca lhe foram retiradas, caiu no esquecimento coletivo.
Cátia Miriam Costa
(1974)
Investigadora no Centro de Estudos Internacionais (ISCTE-IUL) e Diretora da Cátedra Ibero-américa Global do Instituto Europeu de Estudos Internacionais (Estocolmo)