Bernardo Santareno – as suas MÁSCARAS ou ALTER EGOS

Uma leitura atenta da obra dramática de Santareno, conjugada com um conhecimento aprofundado do seu percurso de vida e personalidade, pode levar-nos a especulações que se demonstrem correctas ou, pelo menos, passíveis de discussão. Esta é só uma primeira abordagem que poderá vir a ser, ou não, aprofundada.

Começamos pelo próprio pseudónimo de António Martinho do Rosário – Bernardo Santareno – criado em 1954, tinha o autor 34 anos de idade, e 4 de Licenciatura em Medicina, quando foi publicado o seu primeiro livro de poesia “A Morte na Raiz”. É do consenso geral e ele próprio o afirmou que “Santareno” é uma homenagem à sua terra de origem, mas “Bernardo” tem levantado algumas dúvidas. Numa entrevista publicada na separata da Revista Autores de 1980, ano da sua morte, ele diz que o nome tem algo de gótico ou ascético e, por isso, o escolheu. Sabemos, no entanto, que o Santo Padroeiro de Espinheiro (Alcanena), aldeia dos seus avós paternos e onde Santareno passava as férias durante a infância e adolescência, (e onde, muito jovem escreveu as suas primeiras peças ainda inéditas) terá sido, inicialmente, S. Bernardo (de Claraval). Existia uma capela a ele dedicada, entretanto, desaparecida, mas a imagem do Santo encontra-se ainda na Igreja de Espinheiro, onde continua a gozar da devoção do povo da aldeia. Tal como Santareno, S. Bernardo era muito ligado à sua devota mãe e, também muito novo, a perdeu. Ambos ficaram em profunda tristeza e a Fé foi o refúgio que encontraram. Ambos eram homens de letras, ambos inteligentes, generosos e praticantes da simplicidade. Ambos amavam o amor. Uma das frases atribuídas a S. Bernardo, é a seguinte: “O amor não busca outro motivo e nenhum fruto fora de si; ele é o seu próprio fruto, o seu próprio deleite. Amo porque amo; amo para poder amar.” Poderia ter sido uma afirmação de Bernardo Santareno – todos nós, que com ele privámos, sabemos como ele era um distribuidor de afeto e amor verdadeiros. Que o digam os cegos que na Fundação Sain faziam a sua reabilitação e encontravam nele, para além do Psicólogo, um amigo sincero e carinhoso. S. Bernardo terá sofrido as “tentações da carne”, mas tê-las-á reprimido mergulhando num tanque gelado e dedicando-se inteiramente à religião. Santareno viveu quase toda a sua vida acarretando um enorme sentimento de culpa. Quantas vezes não terá mergulhado em tanques gelados do seu desespero?! Vicente Batalha e José Miguel Correia Noras partilham comigo esta teoria: Santareno é Bernardo por identificação com o Santo da sua infância e juventude. O saudoso Artur Ramos referia-se a Santareno como “S. Bernardo”.

Passemos agora às personagens das suas obras. Já António Pedro referia que elas obsidiavam o autor, nunca delas se desfazendo por completo, mas antes, desmultiplicando-as de peça para peça. Em 2005, no décimo aniversário da Escola de Mulheres e vinte e cinco anos após o desaparecimento de Santareno, propusemo-nos revisitar a sua obra, tentando descobrir, através dela, a complexidade e as máscaras do criador, a beleza dos seus textos fortemente poéticos, e a contemporaneidade dos seus temas. Uma viagem aos abismos interiores do autor: a sexualidade e a ambiguidade sexual expressas em sensualidade telúrica, tanto reprimida, como violentamente exposta; os medos e os presságios; a procura obsessiva da verdade e da justiça; o angelismo demoníaco; o envelhecimento e a morte. Estes aspectos recorrentes em Santareno, sempre contextualizados num forte tecido social e político, foram os motores do espectáculo BernardoBernarda. Espectáculo em que se trocavam identidades e papéis sociais, num jogo de espelhos em que o Masculino e o Feminino se cruzavam, enfrentavam, e se dissolviam. “A encenação de Nuno Carinhas acentua-se num despertar pelos mitos, arquétipos, corpos, reflexos, luz e sombra. Cada uma destas linguagens vale-se do lado feminino e masculino de Santareno. Pode-se dizer que esta dualidade acontece num só corpo cénico, – o de Bernardo. Enquanto o público viu, escutou e sentiu um desencadeamento bifurcado, procurou-se, em simultâneo, evidenciar múltiplas visões de Santareno.” (in: Susana Moura – tese de Doutoramento “Bernardo Santareno: Teatro, Utopia, Performatividade”). Na investigação preparatória para a dramaturgia do espectáculo tornou-se claro o que sempre suspeitávamos:

O homem António Martinho do Rosário, sob o nome de Bernardo Santareno, escondia-se/revelava-se atrás das personagens por ele criadas.

E tal acontecia desde a sua peça, ainda inédita Confissão datada de Agosto de 1945, escrita em Coimbra para um grupo de senhoras que queriam fazer Teatro. Esta peça ainda muito ingénua, com personagens algo estereotipadas, apontava já, no entanto o que poderia vir a ser o teatro de denúncia que veio a ser o de Bernardo Santareno. Madalena, a protagonista, artista de renome, com idade aproximada à do autor, identifica-se com a mítica Madalena do Novo Testamento e, como ela, renuncia à vida de “pecado” que até então vinha prosseguindo e entrega-se de corpo e alma a Cristo. No entanto, não é sem sentimentos de ódio e repúdio que o faz – prepara uma audiência de senhoras da sociedade e denuncia as suas hipocrisias e misérias – “…odeio-as, desprezo-as do fundo do coração, sinto nojo…um nojo invencível” (pág. 10); “…eu quero expiar também: aqui estou diante de vós, esfrangalhada pela dor, rasgada em todo o meu orgulho de mulher…Escolhi-vos a vós que sei implacáveis e a quem desprezo profundamente, para me ouvirem em confissão…” (pág. 11); “…agora peço-vos que saiam! Não quero vê-las mais: vocês são a mentira, o ódio, a sombra, o lodo, a podridão e eu quero a verdade, a luz, o amor…” (pág. 12). A peça termina com Madalena sozinha dizendo entre soluços “Sou feliz…Senhor! Eu sou muito feliz.” Parece claro que a Madalena de a Confissão é António Martinho do Rosário (ainda não Bernardo Santareno) numa época em que se debatia entre profundos sentimentos de culpa e desejos de santidade.

O seu alter ego é, pois, feminino e trágico, mas aponta já para outras personagens femininas posteriores, mulheres rebeldes, divididas e fortíssimas.

Em A Promessa (1957) e António Marinheiro (1961), “duas peças emblemáticas, é a mulher, Maria do Mar, em A Promessa, quem provoca e convoca a força erótica, que é força de vida, força da Natureza, que nada deve tentar sufocar… Em António Marinheiro, a trágica atracção edipiana entre António e Amália conduz, como no mito grego, ao reconhecimento da identidade dos dois amantes. António recua e afunda-se num mistério de noite marítima e de ambiguidade sexual, afastando os laços carnais proibidos, como quem se retira correndo para os bastidores da acção. É Amália, a mulher acusada de um pecado que lhe caiu em cima,… quem se levanta e permanece de pé, visível para todos, numa afirmação de vida…” (in: A Mulher como vitória da Natureza em Bernardo Santareno. A Promessa e António Marinheiro de Maria do Céu Fialho). Podemos reconhecer o autor na Maria do Mar quando esta convoca a força erótica que a sufoca, quando a sua rebeldia põe em causa a “moralidade católica”. Amália e António são as faces da mesma moeda – mãe e filho, homem e mulher, juntos num amor proibido, mas respondendo à tragédia das suas vidas conforme as suas naturezas; António (não terá sido por acaso o nome escolhido pelo autor) seguindo sem remédio a única via para ele possível e Amália gritando no final da peça: “Quero viver! …quero …quero!!” Interessante, ainda, é ver como o autor empresta o seu pseudónimo à Mãe de Amália (Bernarda), a causadora/criadora da tragédia.

Mas passemos a outros alter egos, desta vez, masculinos: em O Judeu, obra de 1966, só representada após a morte do autor. Podemos rever Santareno na personagem de António José da Silva. Ambos autores de teatro, ambos perseguidos, ambos gritando por Liberdade, ambos gritando “Quero viver!! Não creio no Deus de Israel, não creio no Deus dos Cristãos… Quero viver. Viver, viver, viver!!(in O Judeu, pág. 51). Mas é na maravilhosa cena em que António José da Silva dirige os seus actores (pág. 170/177) que Santareno nos revela o seu amor lúcido pelas gentes do teatro com quem intimamente convivia. “Eu conheço-vos. Sei tudo. E amo-vos…como um Pai aos filhos… Vós comigo fazeis uma família. Com a vossa miséria, e apesar dela, eu quero, e posso! mostrar ao público de gentes várias os caminhos para a Justiça. Aqui, sobre as sujas tábuas deste palco. Com a vossa voz, pelos vossos corpos. Amassando com as minhas mãos, a mentira, a fealdade, a traição, o despudor…- que tudo isto sois e encarnais! – eu posso ensinar o Povo a conhecer o rosto autêntico da beleza, da coragem, da virtude….”. É também, no entanto, sob a máscara de Cavaleiro de Oliveira que Santareno fala:

“No meu País quem governa é o medo! Os olhos e os ouvidos do medo crescem e multiplicam-se por toda a parte” (pág. 92).

“Escrevo, claro. Como pode escrever um escritor menor. Oh, não tenho ilusões!… Não terei, de facto? A verdade é que, contra toda a razão, as tenho muitas vezes: E se estas pobres cousas que a minha dessorada cabeça vai pensando, que o meu velho coração vai sentindo, fossem ainda lidas daqui a … cinquenta, cem, duzentos anos?!” (pág. 41). Mas, naquela que Santareno pensou ser a sua última peça – Português, Escritor, Quarenta e Cinco Anos de Idade, obra de Março de 1974, o autor decide fazer cair as máscaras e falar abertamente como persona (de teatro). A sua própria voz gravada integra o espectáculo – “Sou português, escritor e tenho quarenta e cinco anos de idade. Estou desesperado, a vida dói-me horrivelmente. Sim, esta representação é, gostaria que fosse, uma despedida. Uma despedida sem amor. Perdi tudo. O que lhes possa acontecer a vocês, espectadores, mesmo aos mais jovens, já não me interessa. “Português, Escritor, Quarenta e Cinco Anos de Idade”, que acabaram de ver, foi a minha última peça”. Mas passados dois meses deu-se a Revolução dos Cravos. O Bernardo acreditou que tudo seria possível, mas foi perdendo a esperança. Morreu triste. Este é o seu Centenário. Comemoremo-lo.