O imenso campo de batalha do Médio Oriente – Parte I
Zona tradicional de conflitos devido às suas riquezas naturais, à posição geoestratégica e à exploração colonial desestabilizadora das contradições étnicas, religiosas e culturais existentes desde épocas muito antigas, o Médio Oriente degenerou, no século XXI, num dos principais campos de batalha pela definição da ordem internacional – isto é, da relação de forças internas do sistema capitalista.
A chamada primeira guerra do Iraque, iniciada pelo presidente George HW Bush (pai) em 1990, é a prova de que o domínio do Médio Oriente, incluindo pela via militar, foi um objectivo fulcral para a imposição da ordem mundial unipolar e imperial como resposta ao fim da bipolaridade que vigorava desde o final da Segunda Guerra Mundial. A invasão do Iraque, sob o pretexto de “libertar o Koweit” da agressão das tropas de Saddam Hussein, ainda hoje um conjunto de episódios muito mal explicados, coincidiu com a derrocada da União Soviética e do campo socialista. Quer isso dizer que Washington não perdeu tempo em tentar mostrar quem passava a mandar no mundo, arrastando na ofensiva uma grande “coligação” de países e novos regimes ansiosos por se posicionar do lado de uma força que não teria rival à escala planetária.
Abrindo a última década do século XX, a invasão do Iraque coincidiu também com uma série de transformações internacionais, políticas, económicas e financeiras que moldaram a ordem unipolar sob a tutela do neoliberalismo, o extremismo capitalista guiado por uma ortodoxia fundamentalista passada à prática nos Estados Unidos de Reagan e no Reino Unido de Margaret Thatcher depois de testada, a partir de 1973, sob a ditadura fascista de Pinochet no Chile.
Uma ortodoxia assumida durante a década de noventa pela chamada integração europeia através do Tratado de Maastricht, do alargamento aos países da antiga esfera de influência soviética e da aplicação nefasta dos “critérios de convergência” que antecederam a imposição do euro como moeda única.
A nova formatação mundial foi reforçada logo a abrir o século XXI com outro dramático acontecimento ainda muito mal explicado: os atentados cometidos em Nova York em 11 de Setembro de 2001. As únicas certezas que existem sobre este episódio terrorista são a chacina de inocentes cometida e a falsidade das versões oficiais.
Os atentados tiveram uma explicação oficial norte-americana que os associou ao Médio Oriente, ou melhor, ao chamado Médio Oriente alargado para incluir regiões da Eurásia e do Norte de África consideradas estratégicas para a afirmação plena da unipolaridade, incluindo a definição de novas rotas de petróleo e gás natural.
Um “novo” Médio Oriente
Surge assim, ainda em 2001, a invasão do Afeganistão por uma NATO reconvertida em braço armado da nova ordem, a que se seguiu a ocupação do Iraque através de nova agressão desencadeada pelos Estados Unidos e aliados com base em pretextos falsos, segundo os quais o regime de Saddam Hussein teria armas de destruição massiva – que até hoje não apareceram.
A ordem unipolar parecia imparável. Expressões como globalização e globalismo tornaram-se indispensáveis no léxico mediático, entendidas como a combinação virtuosa de um poderio militar inquestionável, de uma “democracia” política de modelo único e submetida ao pleno funcionamento do sistema económico-financeiro neoliberal sem fronteiras, sustentada por uma explosão tecnológica de amplitude planetária dominada por gigantes corporativos transnacionais que são os reais gestores da nova ordem.
O Médio Oriente adquiriu ainda maior relevância como pedra angular do novo mundo assim reformatado.
Nos dias de hoje, independentemente das novas realidades que emergiram, é possível perceber que o lançamento das guerras do Afeganistão e do Iraque tiveram causas próprias mas visaram igualmente ameaçar e desestabilizar a República Islâmica do Irão.
Uma realidade que Washington nunca tolerou desde 1979, como demonstrou pelo facto de então ter apoiado, inclusivamente com fornecimento de armas químicas, o regime iraquiano de Saddam Hussein numa guerra trágica contra Teerão. O mesmo regime de Bagdade que os Estados Unidos foram derrubar 20 anos depois…
Este aspecto é, ainda assim, uma parte do todo. E o todo é a transformação global do Médio Oriente numa região dominada pelos Estados Unidos e Israel onde não existam vectores minimamente capazes de contestar este poder. O novo Médio Oriente seria assim um pilar fundamental da ordem unipolar, garantindo a posse de riquezas naturais estratégicas e o controlo de algumas das rotas geoestratégicas essenciais do planeta.
Ainda as torres gémeas fumegavam…
O projecto de transformação total do Médio Oriente alargado foi abordado pela primeira vez logo dia 13 de Setembro de 2001, exactamente dois dias depois dos atentados de Nova York. A revista “Parameters”, das Forças Armadas dos Estados Unidos, publicou um trabalho assinado pelo coronel Ralph Peters contendo as linhas fundamentais da estratégia de “reordenamento” do mundo, a começar pelo Médio Oriente alargado. Um plano que viria a ser conhecido como “Projecto Rumsfeld-Cebrowski”, de Donald Rumsfeld, secretário da Defesa do presidente George W. Bush, e Arthur Cebrowski, almirante e director do Gabinete da Força de Transformação, dependente do próprio Rumsfeld. Os desenvolvimentos pormenorizados deste projecto foram sendo conhecidos ao longo dos anos – o New York Times publicou em 2013 os mapas que lhe correspondem; mas, sobretudo, a sucessão dos acontecimentos e as realidades plasmadas neste imenso campo de batalha vieram confirmando os conteúdos do plano e conduziram-nos, uma vez mais, à evidência de que a realidade do 11 de Setembro não cabe na explicação oficial de Washington.
O projecto Rumsfeld-Cebrowski é indissociável da “Doutrina Wolfowitz”, segundo a qual:
os Estados Unidos não podem admitir a ascensão de qualquer potência ou grupo de potências até um nível que lhe permita algum dia rivalizar com o poder norte-americano.
Secretário adjunto da Defesa de George W. Bush, Paul Wolfowitz, um sionista associado aos governos mais extremistas de Israel, é considerado o arquitecto da invasão do Iraque em 2003.
De uma forma resumida, a estratégia Rumsfeld-Cebrowski previa a liquidação de todos os Estados fortes no Médio Oriente, sobretudo os seculares, e a respectiva transformação em 14 entidades homogéneas dos pontos de vista religioso e étnico que vivessem em guerra entre si e fossem submissas em relação aos recursos de hidrocarbonetos dos seus territórios, além de incapazes de incomodar Israel. De acordo com os mapas posteriormente conhecidos, os países a desmembrar e a “transformar” seriam o Iraque, a Síria, a Líbia, o Iémen e também a Arábia Saudita – onde se registaria uma autonomização da minoria xiita, a interligar com a iemenita. Compare-se o enunciado com a realidade desenvolvida em quase duas décadas e extraiam-se conclusões.
As transformações previam, por exemplo, a criação de um Curdistão em parcelas dos territórios actuais da Síria e do Iraque – o “Rojava” no norte sírio é um ensaio a somar à autonomia da zona curda iraquiana; de um “Sunistão” – mais ou menos equivalente ao “califado” que chegou a ser declarado pelo Isis, Daesh ou Estado Islâmico; e de outros “Estados” segundo critérios análogos étnico-religiosos. O Iraque ficaria assim restringido às áreas de maioria xiita.
A guerra contra o terrorismo
Não surpreende, portanto, que as primeiras consequências da invasão do Iraque fossem a desarticulação das estruturas estatais existentes e a proliferação de guerras entre as comunidades religiosas e étnicas.
E que a desarticulação da Síria tenha sido planificada logo em 2003, embora só tenha havido condições para começar a executá-la a partir de 2011, no quadro da grande mistificação que foram as “revoluções coloridas” conhecidas como “primaveras árabes”.
De notar ainda que este processo de “transformação” se desenvolveu no âmbito da chamada “guerra contra o terrorismo” declarada na sequência dos atentados de 11 de Setembro de 2011. Uma designação que se desmentiu a si própria a partir da multiplicação de exemplos segundo os quais as tropas norte-americanas, em particular, e as da NATO, em geral, beneficiaram e continuam a beneficiar da colaboração operacional de grupos terroristas associados à al-Qaida e ao Estado Islâmico. A al-Qaida, é oportuno lembrá-lo, foi criada no Afeganistão pelos serviços secretos dos Estados Unidos e de outros países ocidentais, designadamente o Reino Unido, e veio depois a ser acusada de ter cometido os atentados em Nova York.
No Médio Oriente alargado prosseguem, hoje em dia, as guerras contra o Afeganistão, a Síria e o Iraque; eterniza-se a guerra civil na Líbia, patrocinada por potências estrangeiras depois de a NATO ter desmantelado o país com auxílio do terrorismo islâmico; arrasta-se há seis anos a guerra contra o Iémen, imposta pela Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos com apoio dos Estados Unidos, França e Reino Unido. Continua em curso, também, a guerra para aniquilação do povo palestiniano, que tem um novo plano de ataque norte-americano e israelita para tentar consumar a anexação do que resta dos territórios palestinianos; um projecto validado pela chamada “comunidade internacional” – União Europeia incluída – no mínimo através da inércia e do desprezo pela legalidade internacional.
Quase 20 anos depois de ter sido exposta pela primeira vez a doutrina Rumsfeld-Cebrowski, o Médio Oriente alargado é uma amálgama de guerras sem fim à vista através das quais ficam demonstradas as intenções de “remodelação” e, ao mesmo tempo, o inconformismo dos povos da região perante as tentativas de submetê-los a interesses estrangeiros.
Da “transformação” ficou a destruição, com milhões de vidas humanas arrasadas sem que os criminosos sejam punidos – afinal são eles os donos da ordem dominante.
(continua na próxima edição)