Os percursos íntimos de Perfil dos Dias, de Manuel Veiga

Foi Octavio Paz, logo nas primeiras páginas do seu livro Los Hijos Del Limo, quem disse que a arte moderna, nomeadamente a literatura, não recusa a tradição, que, ao tomar essa atitude não deixa de procurar ou perseguir o que talvez seja uma tradição da heterogeneidade. Se analisarmos o modernismo português, sobretudo em Fernando Pessoa, vamos encontrar traços discursivos herdados do romantismo. De resto, Pessoa considerava ser o romantismo o mais importante movimento literário/filosófico, considerando não haver Nem uma corrente literária que fosse sequer a sombra do romantismo ao meio-dia![1]

Penso que os poetas contemporâneos, por muito que o experimentalismo os seduza, junto com um certo hermetismo estruturalista e surrealizante, que herdaram de Ramos Rosa ou Herberto Helder, ainda se deixam embalar pela fecundidade melódica da poesia presencista, ou pela inquietação e denúncia político-social que fez a grande poesia neo-realista, agora muito presente na poesia que se debruça sobre o real que inquieta os nossos dias.

Manuel Veiga, mais nas incursões poéticas que no discurso ficcional, vai beber a estas duas fontes: a do rigor formal do segundo modernismo, junto com as preocupações sociais que o aproximarão de uma hipotética 2.ª geração neo-realista, em que estarão Fernando Assis Pacheco e Albano Martins, ou José Manuel Mendes, p.ex.

A poesia de Manuel Veiga, e não refiro apenas este livro, mas os anteriores, nomeadamente Caligrafia Íntima em que essa vertente lírica se entrelaça, em subtil consonância, com o ser cívico atento ao pulsar do seu tempo.

Aconteceu assim com Do Amor e da Guerra e acontece agora com este magnífico livro de poemas Perfil dos Dias, em que o poeta elabora essa geografia do ser, esses metafóricos labirintos da paixão, essa metafísica descoberta de si e, ao descobrir-se nessa existencial perplexidade, dos outros, com a sobriedade límpida das palavras erguidas do chão seco do silêncio e que o verbo de Veiga transfigura. Antes do verbo, ou dos versos, habitávamos o silêncio, esse húmus agreste e mudo, e foi com a palavra, com o poema, que rasgámos o silêncio e derretemos o frio.

Assim, aos poetas, pelo simples facto de o serem, cabe a responsabilidade cívica e cultural, de ir mantendo a chama das palavras para que a bruma se não instale na cidade e regressemos às trevas e ao gelo dos dias primeiros da nossa condição. E são poetas como Manuel Veiga, que olham o mundo sabendo que Nada é excesso: Nem o arco/Nem a esfera./Nem o ardor/Nem o cristal/Aceso, que nos dão a certeza dessa perenidade, e que o humano que nos estrutura, apesar de alguns sinais do regresso à barbárie, prosseguirá indemne.

Na batalha de Uclés (1108), em que D. Afonso VI, rei de Castela e Leão, perdeu um filho querido, este irá utilizar, interrompendo o discurso em latim, a sua língua materna para expressar a profundidade da dor que o tomava. A sua língua afectiva era o galaico-português. Afonso VI era avô de D. Afonso Henriques, e esta terá sido a primeira vez que um rei, em público, utiliza o português arcaico para dizer a dor. Sabemos hoje que esta nossa língua serve, como poucas, para dizer o trágico, os amores perdidos e a saudade.

Mas, D. Diniz, seguindo a herança dos trovadores provençais, veio provar-nos que esta língua aparentemente pouco moldável, também conseguia expressar o amor nos seus mais altos significados, como era, e é, capaz de brincar com as paixões, troçar dos incapazes a quem a mulher trai, da abjecção, do mal e outras humanas fraquezas. Com Gil Vicente, esta nossa fala comum ergueu-se à Fé e seus caminhos, criticou a corte avara, os imbecis, os coitados que partiam para a Índia em busca de fama e abastança e deixavam por cá as mulheres à solta e a usar o leito nupcial para tudo, e até para dormir; língua solta a zurzir em anjos e demónios, em velhos mordidos pela luxúria, judeus agiotas, velhas bêbedas. Com Camões a língua descobriu-se épica, límpida e universal, cantando a gesta lusitana e o seu peito ilustre, e disse do amor o fogo que arde sem se ver, esse enigma que só a grande poesia pode, metaforicamente, revelar.

A poesia, e a Literatura em geral, esteve sempre à frente do seu tempo. Quando Pessoa define os contornos biográficos de Álvaro de Campos, Portugal era um pobre país analfabeto e rural, com uma guerra infame às costas, com fome, com a tísica a cavalgar os lares mais pobres (mas também os da burguesia), as febres que dizimavam aldeias inteiras. No entanto, Pessoa cria um heterónimo para que, na poesia, espelhasse a civilização industrial que se começava a formar, da nova era da máquina, a qual, em alguns países da Europa, ia criando uma estrutura de movimento cultural influente e autónomo face às heranças do século anterior. Álvaro de Campos, exprimiria, de forma genial, muito para além do seu tempo, essa nova derivante poética.

Sei que vivemos tempos sem tempo para as palavras altas e necessárias, vivemos o aturdimento das simulações electrónicas que não nos deixa saborear um verso, reflectir sobre o coração que freme no corpo de um poema; sei que vivemos tempos estranhos (mas é o nosso tempo, e cabe-nos vivê-lo e tentar transformá-lo), tempos em que a usura e a competição se tornaram regras e a febre do dinheiro se transmudou ideologia quase dominante. A poesia, que é a arte suprema da palavra, precisa de serenidade e espaço de reflexão, não campeia na vertigem hodierna, neste voo cego a nada em que temos a vertigem de tudo possuir, de tudo viver, agora e depressa. Manuel Veiga não pode ser esse poeta da inconsistência do ser, do vazio existencial. A sua poética traz-nos os agitados rumores do silêncio, a introspecção metafísica e sensitiva da paixão e do desejo, a claridade de quem está vivo e traz para a poesia esse sentido amplo, consciente e comprometido com essa efemeridade. O poeta sabe que viver é um verbo transitivo e que a poesia serve, também, para fixar os instantes, o intenso clamor dessa passagem.

Os poetas são gente resistente, sonhadores de utopias, mesmo no território insano da distopia contemporânea. Diz Manuel Veiga neste Perfil dos Dias, que são Esquivas as palavras/o tempo fugidio/e os olhos/ mágoas. Mesmo quando sabemos do tempo que se esvai, da ruga que na almofada amanhece e com ela mais um sinal da brevidade da vida, o poeta estará atento a esse rumor ácido que pontua os dias e saberá sempre, na luminosidade de um verso, ultrapassar o instante porque Soberbos, porém, os dias/Assim cativos de pedras/e de medos, hão-de transfigurar-se e criar raízes nesse território fértil, incontaminado das palavras.

Um tempo em que o poeta regressará aos itinerários da chuva, a soletrar estrelas, a olhar o cristal da Lua reflectido nos lagos; retornará às coisas simples e perenes, ao lugar secreto, inviolável, da nossa humanidade, a esse território efémero e líquido, à Pradaria em chamas/E potros dentro.

Neste novo livro de Manuel Veiga coexiste uma contenção sintáctica, uma simplicidade discursiva tocante, em que a metáfora (Anti-Metáfora, titula o autor) se dilui na própria construção do poema. O poema flui, mesmo quando os versos contêm, na sua mancha gráfica, não mais de oito sílabas e o comum dessa geografia se mantém ordenada por três versos de puro ordenamento sintáctico.

Em Perfil dos Dias, encontramos a voz mais íntima e mais fragmentada, buscando a matéria perecível dos dias e da conjunção com o outro, porque ninguém viaja sozinho pela vida, sem a sombra existencial, ora obsessivamente desejada, ora apenas intuída, ora indispensável como respirar, do outro. Pelo meio desta complexa gramática do corpo e dos afectos, existe a pertinência da busca de sentidos para o absurdo existencial, o cosmos como um derivativo de absolutos, em que a esperança, apesar dos pesares, se inscreve: Deslizam as águas em rios secos/Até à raiz do nada.(…) Ou reserva de vida/Preservada: cópula de sol/E gota de água/E a ansiada/Espera…

O que é a matéria da vida? Essa Gota de água ou cópula de sol, esse húmus que nos conduz a uma contínua angustiante perplexidade, a extensão dos sonhos, a capacidade de, apesar dos pesares, linimentos de um corpo em lenta combustão, conseguirmos reflectir, intuir sobre os sortilégios elementares, sobre o modo (modos extensos, diversos, intemporais) de estar vivo neste avassalador sufoco do tempo, que a contemporaneidade, mesmo quando o poeta dela se resguarda (Lá fora o Mundo./Dentro o sopro de uma sonata), convoca e limita?

A matéria essencial (as palavras) sobre que especula Manuel Veiga, a construção da palavra(s) com que ergue os poemas, e neles tenta redescobrir a Vida, traçar o perfil dos dias que lhe coube (cabe) viver e o que à volta dela mais o amargura, seduz, estremece e, a espaços, num indelével fulgor, vertigem dúctil, extasia: o sexo, as paisagens, a literatura, as aves, os sonhos e a sua argila. Essas nebulosas que a memória atrai, esse íman perene, são a matéria da escrita, as palavras com que o poeta urde signos e os tenta libertar do seu caos imanente, desse obscuro, telúrico chão, dessa massa que fecunda o fogo.

De tudo isto, penetrando o sensitivo orgânico desta matéria elementar, da “loucura portátil” que é escrever, de que nos conta Enrique Vila-Matas, que vem de muito longe e carregou muitas febres, muito lixo, muita guerrilha de palavras, também muita veia exposta, nos fala por vezes, mesmo quando algum hermetismo percorre o seu corpo diegético, Perfil dos Dias. Porque essa fala essencial é herança antiga, mas nossa. E fá-lo, nos momentos mais conseguidos deste livro, numa escrita serena, atenta às íntimas reverberações do léxico, fala expressiva e, a espaços, solar, A abrir-se na caligrafia muda das coisas/e no mistério delas, percorrida por requebros discursivos de pura inspiração, numa sonoridade vibrátil, sensível e ressumante de múltiplos aromas, de dias inconsuteis, dias sôfregos nessa mordente A inquietação dos anjos/E o seio do barro redentor// E se glorifica eterna/ Na fusão do sonho/E mágoa, dado que A liberdade é essa chama, que o poeta, incessantemente, almeja, mas também a dor rasa de Afonso VI, de Castela, o humor ácido de Mindinho, o lírico de Camões, a tradição dos românticos, a modernidade de Pessoa, a inquietação social de Carlos de Oliveira.

Mesmo olhando o mundo, passeando essa “loucura portátil”, Manuel Veiga não deixa de trazer ao discurso a diversidade conjuntiva com que esta fala se ergue e se constrói, é nesse fulgor, nesse delta de raízes, que estes versos nos arrebatam em sua contínua transfiguração. Porque, afinal, só conseguimos traçar, dos dias que vivemos, o perfil, se usarmos as palavras justas e delas a essência, como acontece neste livro.

[1] In Ultimatum, de Álvaro de Campos