Por uma nova política de habitação urbana

É indesmentível haver um grave problema de habitação em Portugal, com especial incidência nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto mas a estender-se ao Algarve e às maiores cidades da malha urbana nacional.

Encontramo-nos nesta situação problemática, quarenta e cinco anos após Abril e após terem sido trilhados caminhos que poderiam ter conduzido a um quadro de resolução da questão da habitação.

A verdade é que praticámos, a seguir ao 25 de Abril, um vasto conjunto de programas de políticas de intervenção pública na área da habitação. Programas capazes de começar a solucionar os graves problemas dos bairros de barracas, da infraestruturação de enormes áreas de loteamento ilegal, de realojamento dos cerca de trezentos mil cidadãos nacionais provenientes das antigas colónias.

A verdade é que conseguimos, no curto prazo de seis anos, superar o desafio lançado no Encontro Nacional de Habitação, realizado em 1993, de construir até ao ano 2000 as quinhentas mil habitações necessárias para realojar as quinhentas mil famílias carentes de habitação. E, nesse período, foram construídas quinhentas e oitenta mil habitações.

A verdade é que o saldo do número de habitações sobre o número de famílias é largamente positivo, 5.860.000 alojamentos familiares clássicos para 3.780.000 famílias. São dados do último censo que, embora distante no tempo, 2011, não estará a este nível desajustado da realidade atual.

A verdade é que temos uma Constituição da República que incumbe ao Estado a resolução da questão da habitação.

E conseguimos, na passada legislatura, aprovar uma Lei de Bases de Habitação que, embora aquém das propostas do PS, a primeira deste Partido, do PCP e do BE, é bastante positiva.

Se tudo isto é verdade, teremos de nos interrogar acerca do que está por detrás da crise habitacional com que nos confrontamos. A resposta terá de ser encontrada na análise do processo histórico das políticas de habitação prosseguidas ao longo destes quarenta e cinco anos.

O ataque às políticas progressistas de Abril começou no primeiro governo constitucional presidido por Mário Soares que, como marca de classe, começou por extinguir o SAAL, programa que, com grande participação das populações e apostando na autoconstrução in situ, trabalhava na área dos bairros de barracas.

Mas esse foi apenas o marcador. Sucederam-se-lhe os acordos com o Fundo Monetário Internacional, também em governos presididos por Mário Soares, o primeiro acordo em 1977/8, em governos PS e PS/CDS, e o segundo em 1983/4, num governo PS/PSD.

A imposição dominante foi, como sempre, a de retirar o Estado de diversos setores da vida e da economia nacional, o chamado “menos Estado”, entregando esses setores aos interesses do capital financeiro. Para a área da habitação, foi imposto um objetivo quase exclusivo para os financiamentos públicos: desenvolvimento do mercado imobiliário privado por via da promoção para aquisição de casa própria. Tal conduziu à redução drástica dos apoios a programas de custo controlado (Contratos de Desenvolvimento para Habitação e habitação cooperativa), ao início do processo de alienação do parque habitacional público e, ao nível dos solos, à espiral especulativa na urbanização de extensas periferias.

É verdade que foram muitas as famílias que, embora com enorme esforço de endividamento, conseguiram viver em casa própria mas o principal objetivo destas políticas não estava na área da habitação. Estava na área financeira, na enorme transferência de dinheiro do Estado para a Banca, através da bonificação de juros, ajudando a reconstruir os grupos financeiros a quem estava a ser entregue a privatização da mesma.

Foram estas políticas que, exacerbadas por imposições da União Europeia e rigorosamente obedecidas por governos presididos por Cavaco Silva, acabaram por conduzir ao recente cenário de bolha imobiliária.

O resultado está bem vivo na nossa memória. Foram famílias que, incapazes de honrar os seus compromissos para com a Banca, perderam a habitação e, na maioria dos casos, continuaram devedoras. Foram as imparidades bancárias, ao nível dos falsos solos urbanos, as vastíssimas áreas de solo infraestruturado e expectante, com centenas de milhares de fogos devolutos, e os fundos públicos a resgatarem a Banca.

O capital financeiro, com a sua capacidade de fazer nascer uma crise de outra, encontrou nos governos do PS, presididos por José Sócrates, e PSD/CDS presidido por Passos Coelho, campo para aprofundar aquele que viria a ser apresentado como o novo paradigma da urbanização e da construção. Deixou de apostar nas enormes áreas destinadas à urbanização periférica e passou a apontar como prioritária a reabilitação das áreas centrais das cidades, antes em processo de degradação.

Este novo paradigma é correto. O problema é que, mais uma vez, o Estado ficou como mero facilitador do capital financeiro que domina o imobiliário. Facilitador, desde logo com Sócrates, ao criar uma nova lei do arrendamento, a de 2006, e iniciando a beneficiação fiscal dos residentes estrangeiros.

Foi apenas o início.

Com Passos Coelho, as políticas de Sócrates foram radicalizadas. Foi aprovada uma nova lei das rendas, a de 2012, muito justamente conhecida por lei dos despejos.

Foram criados os vistos gold, praticamente usados apenas na aquisição de habitação, foi levada a extremos a beneficiação fiscal para residentes estrangeiros.

Em consequência, temos aumentos de renda, no país, de 68% em cinco anos (2013 a 2018), sendo que, em Lisboa e Porto, o aumento foi de 25% num só ano (2018). E, quanto aos preços de venda de habitação, temos Lisboa acima de Roma ou Bruxelas e ao nível de Oslo, Copenhaga ou Amesterdão.

É assim que chegamos à atual carência habitacional, estimada em duzentos mil fogos. É assim que milhares de famílias mantêm em casa os filhos que não ganham o suficiente para adquirir ou alugar casa e realojam os pais que são despejados das casas em que sempre viveram e onde esperavam ter um resto de vida minimamente seguro.

O anterior e o atual governos do PS gizam as suas políticas de habitação num conjunto de programas, denominado Nova Geração de Políticas de Habitação, cuja matriz essencial não difere do praticado anteriormente, no que se refere a não beliscar no mercado e ao passar para os municípios as responsabilidades das políticas de habitação, destinadas a estratos empobrecidos ou intermédios da população.

É assim com os programas “porta de entrada” ou “1º direito” onde o maior esforço financeiro é transferido do Estado – onde deveria estar, por imperativo constitucional e por força da lei de bases da habitação – para os municípios.

Nos programas já negociados, ao Estado cabe, em média, 33% do investimento e aos municípios 77%.

É assim com a continuada oferta de património habitacional do Estado, em venda pelo fundo ESTAMO, possibilitando chorudas mais-valias a fundos privados. Esse património falta a programas de promoção pública e é essencial para a criação de uma bolsa pública de habitação.

É assim com a continuada entrega dos fundos do IFRRU (Instrumento Financeiro para a Reabilitação e Revitalização Urbanas) a projetos de índole habitacional turística e especulativa, num lançar de combustível alimentador da espiral especulativa.

É assim com os programas ditos de renda acessível em que o Estado se limita a prescindir de parte da coleta, exigindo ao mercado que baixe o valor da renda em 20%. Como é óbvio, na escalada especulativa em que se encontra o mercado de arrendamento, as rendas acessíveis, assim calculadas, continuam a atingir valores dissonantes face aos rendimentos da maioria das famílias.

A legislação portuguesa de renda acessível copia a existente no Reino Unido, considerada, pela imprensa britânica, como responsável pela expulsão dos londrinos de Londres. São modelos de desresponsabilização do Estado que aceita a especulação imobiliária e a tornam referente para políticas governamentais de habitação.

O Município de Lisboa também anunciou o seu programa de renda acessível. E agora o de renda segura, parecendo destinar-se este a encontrar no mercado os fogos que a Câmara não conseguiu construir para o anterior programa. Ambos apresentam valores de renda significativamente mais baixos do que as do programa do Governo.

O programa municipal de renda acessível que, segundo o Presidente da CML, iria levar à construção de 7000 fogos, dos quais estariam concluídos 120 em 2019, não terá, afinal, avançado tão rapidamente, por problemas de interpretação jurídica ao nível do Tribunal de Contas. Se o município tivesse avançado com a construção de fogos de custos controlados, em vez de entregar a privados estes programas habitacionais, teria ganho tempo e já teria alguns fogos construídos. E teria, inclusive, uma ótima oportunidade de relançar, em termos corretos, o movimento cooperativo habitacional.

A continuada vontade política de entregar todos os programas de renda acessível ao capital financeiro, ignorando o programa de custos controlados e a consequente renda condicionada, não sujeita a regras de mercado, começa a definir um tabu: a questão dos solos. É que os programas de custos controlados são os únicos em que o valor do solo não é definido pelas regras do mercado.

Algumas medidas positivas vertidas na recente Lei do Orçamento do Estado, tais como o terminar dos vistos gold, em Lisboa e Porto, e a penalização fiscal do alojamento local em áreas onde o excesso de oferta leva à contenção do mesmo, são meros paliativos incapazes de melhorar a oferta para arrendamento ou baixar o custo das habitações.

O mercado continuará a dominar e as leis da oferta e da procura continuarão a definir preços, quer de venda quer sobretudo de renda, muito acima do aceitável para os rendimentos dos portugueses.

A solução passará necessariamente pelo aumento da promoção pública de habitação para estratos carentes e intermédios da sociedade. Promoção pública para aumento do parque habitacional público e, inclusive, para propriedade cooperativa ou mesmo privada de custos controlados e renda condicionada.

A solução passará necessariamente por uma nova legislação de arrendamento que respeite o direito à segurança dos arrendatários e dos pequenos e médios proprietários e contrarie as lógicas de rapina dos fundos imobiliários.

A solução está no respeito pela Constituição da República Portuguesa e numa correta regulamentação da Lei de Bases da Habitação.