O carácter experimental da obra gravada de José de Guimarães

O artista nasceu em Guimarães a 25 de Novembro de 1939¹, onde viveu até ir estudar para Lisboa aos 17 anos, adoptando em 1961 o nome artístico José de Guimarães, em referência à sua cidade.

A partir de 1958 frequentou a Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses, onde estudou gravura com Teresa de Sousa². A GRAVURA editou-lhe as águas-tintas, Tocador de Flauta, em 1962, e Composição com letra D II, em 1969.

Em 1964 frequentou em Paris, no atelier de Stanley Hayter, o curso de gravura em metal¹.

Segundo o artista², as viagens que realizou pela Europa, sendo a primeira em 1961 a Paris, foram fundamentais para a sua formação artística, permitindo-lhe ver obras fundamentais da História da Arte e contactar com o panorama atual da arte contemporânea.

Neste contacto com a arte contemporânea pôde absorver uma nova linha de conceitos e realizações para além da utilização dos suportes tradicionais, facto determinante no desenvolvimento da sua linguagem plástica e da introdução da componente experimental na sua obra.

Ao longo do seu percurso, José de Guimarães vai sempre para lá do convencional na utilização das técnicas de gravura, ficando a obtenção de uma edição convencional como objectivo final do processo para segundo plano, afirmando a este propósito:

A maior parte das minhas gravuras, são gravuras de tiragens muito pequenas, muitas vezes são provas, quase direi únicas, porque as minhas edições, são edições realizadas por mim, são edições experimentais².

Muito importante também para a sua prática experimental, foi o facto de José de Guimarães ser desde o início, autónomo em termos de meios de impressão, a começar pelo prelo adquirido num ferro velho², com que imprimiu a sua primeira Xilogravura, pela prensa de rolos adquirida na GRAVURA, a qual sempre o acompanhou e ainda hoje utiliza¹, e pela montagem dum atelier de serigrafia², quando ganhou em 1977 uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian por dois anos, para estudar fotografia e serigrafia.

A escassez de meios foi outro factor importante como refere:

…estimulou a minha componente experimental porque a escassez de meios forçou-me ao improviso e ao aproveitamento de materiais não convencionais²…

São exemplos disso, as gravuras em alumínio que realizou em Angola, devido à escassez dos materiais convencionais, o zinco e o cobre. Consciente da desadequação do alumínio por este ser muito macio, e por isso difícil de controlar a sua mordedura na tina dos ácidos, em vez de desistir, o artista insistiu na sua utilização fazendo várias gravuras neste material, ciente do potencial expressivo único, que esta particularidade do alumínio comportava².

No processo criativo de José de Guimarães, na qual a gravura é estruturante², a componente experimental constitui a força motriz na sua evolução como artista, levando-o a um processo evolutivo ao longo da sua obra, resultante da sua disponibilidade para a versatilidade na utilização das técnicas e dos materiais que usa, apostando na variação de possibilidades ao nível da impressão, fazendo tiragens não ortodoxas nas quais, a partir da mesma matriz experimenta vários tipos de tintagens, gravura cega (impressão sem tinta), ex. Labirinto, água-forte de 1966, e utilização de variantes cromáticas de prova para prova, obtendo desta forma obras únicas e um leque mais abrangente de soluções formais a partir das matrizes, em oposição à repetição de imagens iguais obtidas na tiragem convencional.

Constituem também exemplos, as águas-fortes, Composição com Círculos, de 1968, Os Espiões, de 1966/67 e Que mar a pique ou luz, de 1968.

Na série Homenagem a Picasso, de 1973, as águas-fortes são tintadas pelo artista a rolo, obtendo imagens negativas (forma a branco sobre fundo preto), em oposição à imagem em positivo (forma a preto sobre fundo branco) obtida na tintagem convencional. Para além disso, José de Guimarães usa rolos macios para tintar as partes mais profundas da gravação pelos ácidos na matriz, e rolos duros para as partes não gravadas², possibilitando-lhe a obtenção de provas com duas cores, recusando a utilização da tintagem habitual à boneca.

Na série México-China, o artista utiliza água-forte e água-tinta através de spit bite, sobre cobre, obtendo, subtis nuances nas manchas das imagens das gravuras, intervencionando a prova México-China V, de 1997, de cariz erótico, pintando a vulva da mulher com tinta vermelha, após a impressão.

A gravura é utilizada pelo artista como uma forma de expressão artística autónoma, e nunca de forma subsidiária em relação às outras formas de expressão plástica em que se expressa, resultando esta autonomia do seu perfeito entendimento das capacidades expressivas dos materiais inerentes a cada técnica, e da sua pesquisa constante de novas soluções formais e respectivas inovações técnicas, assim como da utilização de materiais adequados à sua concretização, muitas vezes não convencionais, como é o caso da edição de imagens produzidas com recurso ao stencil/escantilhão³ com impressão direta a rolo, ex. “A” verde-azul, de 1968.

Numa constante procura por novas soluções, recorre à técnica dos boulders, na qual a matriz de manzonite é trabalhada com máquinas industriais, sendo as formas recortadas, texturadas e tintadas com tinta litográfica, e montadas novamente para a impressão. Mais uma vez, o artista inova aplicando manualmente confétis de carnaval na tinta, editando em Paris as séries dos Fétiches, em 1995 e a série Cartago, em 2002, sendo o único artista português a utilizar esta técnica originária da América, segundo nos afirmou².

Na técnica dos boulders, a textura e a cor estão a par em toda a superfície da peça, o que constitui uma exceção na obra do artista.

Na Série Brazil, litografias de 2008, as provas assumem carácter único ao serem tintadas, com cores diferentes em cada impressão. Mais recentemente, nos “monótipos” que mais tarde designará por provas únicas², o artista altera a matriz física e formalmente, de prova para prova, furando-a, reforçando assim duplamente as formas negativas obtidas, que vai acrescentando, o seu caráter único ao serem também pintadas/intervencionadas à mão após a impressão da matriz, com a utilização de materiais não convencionais, como tinta de impressão aquosa e de vidro moído para proceder à intervenção das provas², nas séries, Negreiros e Guaranis, de 2010/2011, nas séries Tatuagens, de 2014, e na série Nómadas e Migrantes, de 2018.

 José de Guimarães recorre à forma recortada, e às cores planas próprias da linguagem da xilogravura e da serigrafia, à fragmentação, à simplificação², mas também à acentuação da forma para criar as suas soluções formais, independentemente, da temática.

A paleta cromática do artista, varia entre o preto e branco, e uma exuberância cromática de cores planas saturadas, ex. Circo II, serigrafia s/tela de 2000, as quais para além de alguma influência da Pop Art, o artista afirma remontarem à sua infância e juventude no Minho: …das romarias e das mulheres todas enfeitadas com os trajes tradicionais… as cidades eram engalanadas, com ornamentações coloridas de papel recortado, e electrificadas já nessa altura, e portanto, eu creio que, essa força da cor vem dessa vivência, vem daí, porque eu só fui para África em 1967².

As suas formas metamórficas, são zoomorfismos e antropomorfismos, nos quais o artista numa atitude experimental, a exemplo de Picasso e da arte africana, mexicana, chinesa e japonesa, procede a reformulações formais, da estrutura da forma humana, animal, das letras e dos números observados nos caixotes em África³, dos automóveis, dos monstros e dos restantes elementos que incorpora na sua iconografia.

O seu vocabulário formal resulta inicialmente das influências do Movimento Die Brucke, de Rouault, de Picasso, da Pop Art e ganha um novo fôlego com a descoberta da linguagem pictográfica da tribo Ngoio de Cabinda, que o levou à criação do alfabeto africano:

Isto para um artista plástico era o ideal, quer dizer, estava aí encontrada uma fórmula, uma espécie de ovo de Colombo que eu depois desenvolvi à saciedade até hoje… incorporando gradualmente elementos de outras culturas, a mexicana, a japonesa e a chinesa¹.

Este alfabeto, e os subsequentes, resultam não duma subordinação formal, mas duma apropriação e reformulação experimental desses pictogramas, sendo o seu processo criativo baseado na incorporação incessante de elementos da arte das civilizações não ocidentais acima referidas, resultado das suas viagens e da sua faceta de colecionador desde 1980².

Tudo isto se pôde constatar recentemente na exposição Volta ao Mundo, realizada na Biblioteca Nacional em 2019/2020, cujo conteúdo resulta das sucessivas doações do artista à BNP, tendo englobado para além das obras, matrizes de algumas gravuras e peças de várias culturas da coleção do autor, o que constituiu uma dupla contextualização, enriquecedora para o entendimento das obras expostas, e cujo título reflete a abrangência de influências culturais e geográficas da sua obra.

Referências Bibliográficas:
¹Contador, A. (2017). Entrevista a José de Guimarães, 4 setembro 2017. Artistes portugais - une histoire orale. Lisboa, Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian. [Online]. [Acedido, 2020-03-07]. Disponível em: https://gulbenkian.pt/paris/histoire-orale/
²Guimarães, José. (2020) Entrevista por António Canau, 21 de Fevereiro de 2020. Lisboa, Portugal. Registo áudio em formato digital.
³Guimarães, J., Faria, N. (2016). P de POP Pintura Poster: José de Guimarães. Lisboa, Portugal: Sistema Solar (Documenta).
José de Guimarães: obra gráfica, 1962-1998. (2000). Lisboa, Portugal: Biblioteca Nacional / Quetzal Editores.
José de Guimarães: volta ao mundo. Obra gráfica. (2019). Lisboa, Portugal: Imprensa Nacional – Casa da Moeda/Bibioteca Nacional.
José de Guimarães - Provas de contacto. Do Stencil ao digital: processos de transferência de imagem. (2014). Guimarães, Portugal: A Oficina, CIPRL.