América Latina em luta – Resistir na adversidade

A brutal contra-ofensiva movida pelos EUA com o respaldo serventuário e furioso das oligarquias nacionais continua a marcar negativamente o rumo da evolução da situação na América Latina. O acosso reaccionário que interrompeu década e meia de excepcionais avanços progressistas na região foi mais longe no ano transacto ao lograr derrotar nas urnas os governos de esquerda da FMLN em El Salvador e da Frente Ampla no Uruguai e executar o golpe de Estado na Bolívia que destituiu o presidente Evo Morales. Acovardado golpe mascarado de “legalidade” que rompeu com os 13 anos de governo do MAS, pautados por impressivas realizações económicas e sociais num dos países mais empobrecidos da América do Sul, subvertendo os resultados das eleições gerais de 20 de Outubro. Recorde-se que o triunfo de Morales com mais de 10 pontos percentuais e a consequente reeleição à primeira volta do primeiro presidente indígena da história boliviana acabou por ser literalmente impugnada pela OEA, cuja ingerência insidiosa no processo eleitoral e democrático interno – através do ardil da realização de uma auditoria à qual as autoridades em La Paz deram um fatal aval – forneceu cobertura à operação terrorista lançada pela direita boliviana e os seus grupos de choque. Acção consumada com a traição da cúpula das Forças Armadas e da Polícia, ditando o derrube de Morales e a sua saída forçada para o exílio no México (e, posteriormente, Argentina).

Com a exumação da famigerada doutrina Monroe, despudoradamente reconvertida em política de Estado para as Américas, Washington intensificou a ingerência e desestabilização contra Cuba, Venezuela e Nicarágua, procurando desabridamente furar a “última” linha de resistência da luta pela soberania nacional e a emancipação dos povos no subcontinente.

Cabe aqui assinalar o endurecimento do bloqueio económico e financeiro dos EUA contra Cuba socialista que dura há já quase 60 anos e a reversão significativa dos limitados avanços diplomáticos na relação bilateral com Havana. No mesmo molde, incrementaram-se as pressões e medidas punitivas contra o governo da FSLN na Nicarágua, no rescaldo da campanha de violência de 2018, sem paralelo desde os tempos da guerra dos “contras” à revolução sandinista instigada pela Administração Reagan.

Mas é na Venezuela bolivariana e no seu ordenamento constitucional que o imperialismo concentrou o principal foco desestabilizador, aplicando os manuais da guerra híbrida. É neste âmbito que emerge a monumental impostura de Guaidó como novo patamar do assalto que pretende destruir o legado libertador de Chávez e instalar em Miraflores um poder fantoche que permitisse aos EUA voltar a apropriar-se das riquezas naturais venezuelanas. Sem contemplações, a Casa Branca assume o papel de timoneiro da infrene espiral golpista, desenrolada a par da cruel guerra económica visando paralisar e asfixiar a Venezuela boliviariana. Não se escamoteiam as duríssimas consequências para o povo venezuelano de uma campanha que emprega um vasto arsenal de medidas de coacção. Desde o bloqueio financeiro e as sanções, ilegais à luz do direito internacional, o roubo descarado de activos do estado venezuelano (a que Portugal também ignominiosamente se associou com o congelamento de mais de 1500 milhões de euros de depósitos no Novo Banco) até à multiplicação das provocações militares de intensidade e alcance variável. Torrente golpista que conta com a especial cumplicidade operacional do governo de extrema-direita de Ivan Duque na vizinha Colômbia. Em todo o descarado processo criminoso, Trump e os altos-representantes da Administração norte-americana não se coíbem de repetir que «todas as possibilidades estão em cima da mesa», insinuando a ameaça de uma intervenção militar directa. A actual mobilização de vastos meios navais do Comando Sul do Pentágono, sob o infame pretexto do combate ao narcotráfico, configura uma clara ameaça à soberania e integridade territoriais venezuelanas e um ensaio da imposição de um bloqueio naval ao país. Se de narcotráfico efectivamente se tratasse, seria de elementar justiça apontar os EUA e a Colômbia, respectivamente, como o principal destino e fornecedor do seu circuito. Contudo, na campanha contra a Revolução Bolivariana, os EUA e seus aliados, em que se inclui a UE, contam com o suporte de uma gigantesca e sistemática campanha de intoxicação mediática que segue as máximas goebbelianas da mentira e manipulação aliadas à omissão informativa. Contudo, a revolução venezuelana continua a contar com a mobilização do seu núcleo popular, o qualificado e transcendente apoio de Cuba e a solidariedade activa dos povos. O envio pelo Irão de peças para reactivar as refinarias e combustível para reforçar o mercado interno constitui um acto corajoso de defesa da legalidade internacional e solidariedade com Caracas. A iniciativa de Teerão mereceu o suporte da China e Rússia.

Ao mesmo tempo, ao longo do arco de países palco, num passado recente, de importantes processos democráticos e progressistas não cessa a sanha revanchista neoliberal e perigosa deriva antidemocrática, confirmando o quadro geral dominante adverso aos interesses populares e soberania dos estados.

Destaque especial para a grave situação no Brasil, convertido em laboratório da destruição de direitos sociais e judicialização da política, num cenário em que se adensam os riscos de uma “transição” de cariz neofascista, apesar do crescente desgaste de Bolsonaro e do cavar das divisões e guerra intestina no bloco golpista que levou a cabo o golpe institucional que depôs a presidente Dilma Rousseff e prendeu Lula da Silva, afastando-o do pleito de 2018, em que se perfilava como favorito à vitória. A situação no gigante latino-americano agravou-se ainda mais face ao surto epidémico, displicentemente tratado por Bolsonaro como «gripezinha». No país que ostenta dos maiores níveis de desigualdade no mundo e experimentou desde 2016 uma forte degradação dos níveis de pobreza e dos principais indicadores económicos, a última projecção do PIB para 2020 prevê uma contracção de cerca de seis por cento.

Globalmente, a ONU prevê cerca de 30 milhões de novos pobres no final do ano na América Latina, elevando o seu número total para cima dos 210 milhões.

Os exemplos que caracterizam o actual quadro regional são abundantes. É o caso do dramático retrocesso do Equador resultante da traição em toda a linha do presidente Moreno ao programa da Aliança País (AP), a formação política pela qual foi eleito. Aqui a restauração neoliberal foi em grande facilitada pela grotesca instrumentalização da justiça, abrindo caminho à criminalização de praticamente toda a direcção da AP que se manteve fiel ao legado de uma década do processo da “revolução cidadã”. Entre as deploráveis decisões de Moreno contam-se a saída do Equador da ALBA e a punhalada na UNASUR, cuja sede construída de raiz em Quito durante a presidência de Rafael Correa foi alienada, precipitando o fim da organização multilateral sul-americana.

Estes são tempos negros e anacrónicos para a unidade e cooperação latino-americana, em que de novo a OEA – à frente da qual foi recentemente reconduzido Almagro, figura que ilumina a sordidez da actual política latino-americana de subserviência ao grande capital – assume o velho papel de “ministério das colónias”. Sob a sua égide, foi constituído o designado grupo de Lima, reunindo os vassalos regionais dos EUA, com a pérfida missão de coadjuvar e escorar diplomaticamente a actividade golpista visando a Venezuela.

Há, porém, que salientar que a investida oligárquica na América Latina não fez esmorecer a luta popular. Na frente eleitoral, 2019 fica também marcado pela derrota de Macri nas presidenciais na Argentina e o regresso dos representantes peronistas à Casa Rosada, com a ex-presidente Cristina Kirchner eleita vice-presidente, mercê de uma ampla e heterogénea coligação de forças de esquerda e progressistas argentinas. A correlação de forças é, contudo, hoje diferente dos anos em que o malogrado Nestor Kirchner acolheu a cimeira que enterrou o projecto imperial da ALCA (2005), juntamente com Lula e Chávez. O mandato de Macri fez regressar a Argentina ao jugo da dívida e à implacável usura dos “fundos abutres”. O país só agora reinicia o incontornável, mas tormentoso, caminho de reestruturação da dívida e resgate dos instrumentos de soberania… Antes, no final de 2018, Lopez Obrador assumiu a presidência no México, em contra-ciclo à tendência geral por ora dominante. O novo governo da esquerda mexicana assumiu a presidência rotativa da mais representativa organização de cooperação da América Latina e Caraíbas, a CELAC, acolhendo com êxito a cimeira anual no início de 2020. CELAC, cuja fundação em 2011 foi considerado um marco histórico na luta pela verdadeira independência e emancipação latino-americano e caribenha.

Desafiando o peso da dominação neocolonial e imperialista as forças políticas e sociais avançadas latino-americanas entraram numa nova fase de resistência e acumulação de forças. Do Chile à Colômbia os últimos meses são testemunho de uma significativa activação da luta de massas e protesto social, desafiando a tenaz das políticas de empobrecimento e polarização da riqueza e da crescente repressão e agenda antidemocrática. As sombras de um novo Plano Condor assomam de novo na região. Num momento agreste e de exigentes desafios, caberá às diversas forças revolucionárias e anti-imperialistas também tirar as lições da rica experiência recente de avanços e transformações no subcontinente, dos seus acertos e desacertos, debilidades e limitações, reflectindo sobre as condições que impediram a sua consolidação e aprofundamento. Com a certeza de que, em estreita articulação com o movimento popular, mais cedo do que tarde novas conquistas libertadoras aguardam a América Latina, num tempo histórico inexoravelmente moldado à escala internacional pela estagnação sistémica e o aprofundamento da crise estrutural do capitalismo.