Desafios para a Justiça em tempos de pandemia

A crise provocada pela designada pandemia Covid 19, em toda a sua abrangência e com consequências, na sua maioria, ainda desconhecidas, vem suscitando múltiplas e variadas reflexões, mais ou menos profundas, sobre diversas áreas do nosso viver comunitário.

Tem sido escasso, contudo, o pensamento sobre a Justiça e os Tribunais, ultrapassado pela urgência do imediato imposto pela necessidade da sobrevivência.

No reconhecimento de que o futuro será sempre um novo tempo, a exigir de todos como que uma reinvenção, também institucional, importa não esquecer a essencialidade dos direitos humanos e dos valores fundamentais do Estado de Direito Democrático em que escolhemos viver.

E se nestes tempos de crise a importância do Estado se revelou imprescindível, há que não olvidar a função essencial dos Tribunais como pilar essencial do Estado de Direito, no reafirmar dos direitos e defesa dos cidadãos.

A todas as instituições da Justiça e a todos os seus profissionais se colocam, assim, desafios, que urgem ser pensados. Poucos serão novos. Mas todos, mais ou menos recentes, exigirão uma distinta abordagem.

Relembremos somente alguns deles.

A urgência das respostas ao imediatismo e inesperado da realidade da crise da Covid 19 colocou os governos perante opções perigosamente limitativas de direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, sem respeito pelas competências dos devidos órgãos de poder.

O conflito entre direitos fundamentais, designadamente entre a liberdade e a segurança ou entre a liberdade e a privacidade, já latente anteriormente face a realidades como o terrorismo, apresenta-se-nos agora como uma das mais prementes questões das democracias modernas.

A excecionalidade das situações não pode legitimar soluções que extravasem as normas constitucionais e a limitação de direitos fundamentais em nome de outros direitos, própria de estados de exceção, não pode transformar-se numa nova normalidade eivada de autoritarismo e aceite como inevitável em nome da segurança.

O recurso ao uso intensivo dos meios digitais e tecnológicos, que em muito foi acelerado por esta crise da Covid 19, colocou-nos perante novas formas de comunicação e relacionamento interpessoal, com alterações no viver quotidiano, em que as linhas entre o público e o privado e entre o individual e o comunitário familiar se diluem e cujas consequências só em parte se vislumbram. Mas produziu, igualmente, alterações no modo de organização das relações laborais, que exigem uma especial atenção ao necessário reequilíbrio que assegure a igualdade e os direitos dos mais vulneráveis, agora confrontados com a fragilidade advinda da sua iliteracia digital, para além da sua, muitas vezes difícil, situação económica e social.

Por outro lado, e positivamente, o rápido e inevitável desenvolvimento das tecnologias digitais interpelou as instituições para novas fórmulas e metodologias organizativas que permitam responder em tempo e eficazmente às solicitações dos cidadãos. E nessa medida não podem deixar de ser perspetivados como instrumentos do reafirmar dos direitos fundamentais, o que necessariamente exigirá uma profunda atenção aos conflitos de direitos relativos à privacidade e à segurança dos sistemas de informação.

A centralidade das alterações climáticas e das questões ambientais, aparentemente ultrapassada pelas preocupações da crise da Covid 19, não pode ser esquecida pela importância determinante e essencial que mantém no devir da humanidade.

As respostas que vamos dando a esta crise, quer as mais imediatas, quer as de longo prazo, não poderão deixar de ser pensadas sob a perspetiva ambiental, com a consequente densificação jurídica e interiorização cidadã dos direitos comunitários e coletivos e dos interesses difusos enquanto direitos fundamentais.

Optámos por estes três temas como dos mais significativos, não deixando os mesmos, no entanto, de ser, também, exemplificativos dos demais já conhecidos problemas da Justiça, que sabemos complexos e a exigir um esforço coletivo.

Todos eles, no entanto, exigem soluções cuja enunciação e concretização não podem ser esquecidos pelos planos nacionais que se encontram em preparação como resposta aos problemas, catalizados pela crise da Covid 19, das sociedades atuais.

Importa que a Justiça seja assumida como uma questão de Estado e, enquanto tal, como uma responsabilidade de todos os órgãos do poder democrático, designadamente dos imediatamente representativos da vontade popular, mediante a elaboração de um plano nacional estratégico que pense a justiça de uma forma integrada.

Tal estratégia nacional, a elaborar e concretizar com a colaboração imprescindível de todas as instituições e profissionais do sistema de justiça, sempre no respeito do princípio da separação de poderes, baseado nos pressupostos da independência do Tribunal e na autonomia do Ministério Público, deverá contudo assentar numa modernização que privilegie a ideia da justiça como um serviço ao cidadão e à concretização dos seus direitos.

A informatização e digitalização de todo o sistema e de todas as fases processuais torna-se imprescindível para a concretização de uma justiça célere, eficiente e eficaz, promovendo a simplificação procedimental e novas metodologias de trabalho, e constituindo-se como um fator decisivo da transparência, da prestação de contas e, consequentemente, do acesso do cidadão à justiça.

Facilitará, por outro lado, a flexibilidade da adequação de resposta organizativa face a crises imprevisíveis como a da Covid 19, com os consequentes aumentos de surtos processuais em determinadas jurisdições.

Reforçará, também, os princípios da reserva e do segredo de justiça. E poderá ser um poderoso instrumento na investigação e julgamento de complexos fenómenos criminais como a corrupção e o branqueamento de capitais.

Tal pressupõe, contudo, uma clara definição do sistema de proteção de dados e da “propriedade” e gestão das respetivas bases, que não poderá olvidar o princípio da separação de poderes, bem como um forte sistema de segurança.

E pressupõe, igualmente, a promoção do conhecimento e da literacia digital dos cidadãos que lhes permitam o efetivo acesso ao direito e à justiça.

Finalmente, há que dar a atenção devida à formação de todos os profissionais da justiça, Magistrados, Advogados e Funcionários, para além da necessária capacitação informática e preparação para a utilização das plataformas digitais.

O investimento na formação das instituições e dos seus profissionais para um adequado tratamento das questões ambientais torna-se imprescindível. Principalmente para o Ministério Público, magistratura de iniciativa, a quem a lei atribui competências de promoção e defesa dos direitos coletivos e dos interesses difusos, constitucionalmente consagrados.

A complexidade das questões das sociedades modernas, e os conflitos de direitos daí imanentes, exigem profissionais bem preparados tecnicamente, informados, abertos aos problemas do mundo e com uma esclarecida cultura dos direitos humanos e fundamentais.

Mas, principalmente, exigem Magistrados com uma forte preparação ético-deontológica, com coragem e um rigoroso sentido de isenção e independência.