O IMENSO CAMPO DE BATALHA DO MÉDIO ORIENTE – Parte II
(continuação da edição anterior)
O aparecimento de novos actores
Porém, o agravamento da crise do capitalismo na sua expressão mais ortodoxa, sobretudo a partir de 2008/2009, a entrada em cena de capacidades económicas e militares susceptíveis de pôr em causa a dominação imperial e a materialização gradual de respostas concretas à afirmação unipolar foram colocando no horizonte as perspectivas de uma ordem multipolar.
Dentro do capitalismo agravaram-se as contradições, que se reflectem na proliferação de interesses antagónicos em competição por fontes energéticas, de matérias-primas e por riquezas naturais de âmbito planetário; situação acompanhada pela diversificação de rotas estratégicas intercontinentais que procuram ser alternativas ao domínio dos mares pelas forças navais do império. O globalismo formatado em torno dos Estados Unidos e aliados projectando a sua ordem económica, financeira, política e tecnológica através do planeta começou a dissolver-se com o aparecimento de novos centros de influência assentes em estruturas próprias de desenvolvimento cada vez mais alternativas aos métodos dominantes; e perante a consolidação de organizações internacionais de cooperação descentradas da esfera atlântica.
A União Económica Euroasiática, a Organização de Cooperação de Xangai, o grupo BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), o Banco Asiático de Financiamento em Infraestruturas são instituições envolvendo numerosos países e com a presença da Rússia e da China que escapam ao eurocentrismo de índole colonial e à liderança global e imperial norte-americana. A estas organizações acresce a Iniciativa Cintura e Estrada (ICE) lançada ainda há poucos anos pela China e que se inspira na antiga Rota da Seda para ligar o Oriente ao Ocidente e a África por vias marítimas e terrestres. Trata-se de estabelecer novos e alternativos roteiros transcontinentais que se complementam de maneira integrada. Acções desenvolvidas por Pequim neste âmbito tocam mais de cem países, alguns deles membros da União Europeia e da NATO ou estreitamente ligados aos Estados Unidos, como Israel. Uma empresa estatal chinesa assumiu recentemente a gestão do importante porto israelita de Haifa.
Investimentos produtivos em vez de sanções, acordos de cooperação mutuamente vantajosos em vez de imposições, créditos ao investimento isentos de submissões políticas e económicas, desenvolvimento de indústrias civis e da inovação tecnológica no lugar da multiplicação de guerras caracterizam as novas relações e as instituições internacionais que vão surgindo com a presença da China e da Rússia; são formas de colaboração que favorecem a consolidação dessas organizações, mesmo que nelas se encontrem, por vezes, países com alguns interesses estratégicos contraditórios mas que, na circunstância, valorizam mais as convergências do que as divergências.
A desestabilização e a militarização ruinosa que se registam hoje através do mundo têm muito a ver com as tentativas para contrariar o êxito desta nova e desafiadora realidade. É a unipolaridade em guerra, na verdadeira acepção da palavra, contra as tendências para a multipolaridade. Não é por acaso que vários e importantes países submetidos à unipolaridade, como é o caso dos membros da União Europeia, enaltecem na sua propaganda uma suposta multipolaridade existente. É a maneira de tentarem fazer crer que o globalismo não é imperialista, que a ordem já é multipolar – para isolarem a China e a Rússia como inimigos – que a ordem internacional e as relações de forças não podem nem devem ser alteradas.
Capitalismo em guerra
O agravamento da situação no Médio Oriente na última década tem a ver, por maioria de razão, com este frente-a-frente que reflecte, no fundo, o aprofundamento das contradições capitalistas Não é inusitado o envolvimento da China neste cenário porque a sua acção cada vez mais expressiva na cena internacional se processa no quadro do sistema mundial de relações capitalistas. O governo de Pequim está aberto à cooperação internacional com todos os países, independentemente dos sistemas políticos e económicos que os regem.
O que tornou o Médio Oriente diferente, ainda para pior, foram as guerras desencadeadas pelos Estados Unidos e o seu braço imperial atlantista desde o início do século, mas também as descontroladas respostas norte-americanas à entrada em força da China e da Rússia na região – de que é exemplo o que está a acontecer em relação ao Irão e ao Iraque.
A posição de Moscovo e Pequim na região alterou-se significativamente a partir de 2011, quando os Estados Unidos e a NATO usaram abusivamente uma resolução das Nações Unidas para destruírem a Líbia apoiando-se no terrorismo islâmico.
Daí em diante, a Rússia e a China, claramente enganados na boa-fé com que tinham permitido a aprovação da resolução, passaram a usar o direito de veto no Conselho de Segurança das Nações Unidas sempre que os Estados Unidos e aliados tentaram distorcer o direito internacional para desencadear acções ilegais, sobretudo contra a Síria e contra o Irão.
A entrada militar russa na guerra da Síria, a pedido do governo legítimo de Damasco, foi um dado qualitativamente novo na região e que, além das consequências que permitiram travar parcialmente os objectivos destruidores dos agressores, pôs a nu as cumplicidades dos Estados Unidos, da NATO e de Israel com o terrorismo identificado com a al-Qaida e o Estado Islâmico. O assassínio do general iraniano Qasem Soleimani, por ordem directa de Donald Trump, acabou com as dúvidas que ainda poderiam subsistir quanto a essa colaboração que desmascara de vez a “guerra contra o terrorismo”: Soleimani era conhecido como o mais conceituado e bem-sucedido estratego do combate contra a al-Qaida e o Isis ou Estado Islâmico.
Acresce que a Rússia e a China colaboram institucionalmente com o Irão, tanto a nível bilateral como no âmbito das organizações internacionais em desenvolvimento.
Pequim compra petróleo ao Irão afrontando as sanções decretadas pelos Estados Unidos; no âmbito da Iniciativa Cintura e Estrada, empresas chinesas estão a modernizar toda a estrutura iraniana de transportes – terrestres e marítimos – o que corresponde a um gigantesco investimento. Este manancial de relações económicas e comerciais desenvolve-se ignorando completamente o dólar, outro aspecto básico da multipolaridade em ascensão que deixa Washington em sobressalto.
Ao mesmo tempo, a China assumiu recentemente um acordo com o Iraque para reconstruir as infraestruturas do país – e também no âmbito da Iniciativa Cintura e Estrada.
O Iraque, o Irão e a Síria são fulcrais para este projecto de origem chinesa – mais um motivo para a oposição dos Estados Unidos através dos únicos métodos a que recorre nas relações internacionais: a chantagem, a desestabilização e a guerra.
As enormes manifestações contra o governo do Iraque, e que podem degenerar em guerra civil, são provocadas por intervenção norte-americana, como revelou Donald Trump às autoridades de Bagdade. A violência e a presença de tropas norte-americanas no Iraque manter-se-ão até que seja revogado o acordo com a China, segundo comunicação transmitida ao primeiro-ministro iraquiano pelo presidente dos Estados Unidos. Em alternativa, Washington compromete-se a reconstruir as infraestruturas que as tropas norte-americanas destruíram em troca dos direitos sobre metade de todo o petróleo iraquiano.
Estas novas realidades agudizaram ainda mais o clima de confrontação através de todo o Médio Oriente alargado. É visível que os Estados Unidos, contando para isso com a NATO, não querem partilhar o controlo da região com interesses que não coincidam com os seus. Admiti-lo seria um passo determinante no sentido da multipolaridade internacional – uma inflexão perfeitamente contrária ao espírito imperial. As razões de ser do projecto Rumsfeld-Cebrowski continuam, por isso, bem vivas em Washington.
A História diz-nos, por outro lado, que ao longo dos tempos nem a força bruta conseguiu salvar impérios.