O socialismo do futuro será diferente do socialismo do passado
O projecto socialista renasceu em diferentes partes do mundo, quando se registam 30 anos sobre a implosão da União Soviética e dos países socialistas do leste europeu.
Desde então, houve uma quase generalizada passagem dos defensores do socialismo, a nível teórico, para a corrente neoliberal, que trazia já algum fôlego ainda antes de 1989. Poucos são aqueles que não renunciaram a uma perspectiva teórica do modelo socialista, tal foi o impacto produzido pelo desaparecimento da União Soviética. A nível político, no entanto, subsistiram alguns países com regimes socialistas moldados segundo os cânones que precederam o fim da guerra-fria. Cuba, Laos, Vietname, Coreia do Norte, com sistemas políticos de partido único, são alguns deles. Também se registou o desaparecimento de alguns partidos comunistas importantes, e com um registo histórico significativo, como em França e na Itália. A China é um caso especial, pois que a seguir à morte de Mao Tsé Tung, em 1976, decidiu passar a um sistema híbrido, a que chama “socialismo com características chinesas”, em que o modelo capitalista penetrou largamente no país, mas sob a supervisão e autoridade do Partido Comunista Chinês, detentor do monopólio do poder político. Consideráveis semelhanças tem este sistema com o do Vietname, que fez significativas aberturas ao capitalismo internacional, assim como internamente, embora com menos amplitude, estando o poder político controlado igualmente pelo Partido Comunista do Vietname. Sistema designado por “economia de mercado com orientação socialista”, tendo começado a ser implementado a partir de 1986. No início da primeira década do século XXI, apareceu o Socialismo Bolivariano na Venezuela, com um sistema pluripartidário. Que no entanto se transformou num quase sistema de partido único devido às várias tentativas de alguns partidos da oposição para derrubarem o regime, fomentadas e apoiadas pelos Estados Unidos da América. A maior novidade seria o aparecimento neste último país, durante a campanha presidencial de 2016, de uma corrente, personificada pelo Senador Bernie Sanders, a defender um socialismo democrático. Que em 2020 voltou em força, com milhões de apoiantes, especialmente nas camadas jovens, e o lançamento de um programa muito bem estruturado, The Green New Deal, elaborado em conjunto com a jovem Congressista Alexandria Ocasio-Cortez, que mudaria a face da América e, por essa razão, foi prontamente boicotado pela direcção do Partido Democrático.
Por fim, deverá ser realçado o resultado do Partido Trabalhista britânico nas eleições gerais de Junho de 2017, com 40% dos votos e a obtenção de mais 30 lugares no parlamento, como já não acontecia desde a vitória de Clement Attlee sobre Churchill em Junho de 1945. Momento em que é publicado o Labour Manifesto, documento com objectivos socialistas precisos, sob a sigla For the Many, not the Few. A que se seguiu o manifesto para as eleições de Dezembro de 2019, com o título Time for Real Change, com objectivos idênticos aos de 2017, mas mais radical e com aprofundamentos em alguns sectores. De que resultaria, porém, uma das maiores derrotas para o Partido Trabalhista por não ter conseguido fazer passar e integrar os objectivos desse manifesto com o desejo de saída da União Europeia de muitos dos seus eleitores habituais.
Tentarei analisar o fenómeno do ressurgimento socialista, 30 anos depois do desaparecimento da União Soviética, munindo-nos de algumas ferramentas teóricas e políticas à nossa disposição. Assim, um dos primeiros factos que salta à vista é que, a partir de 1978, quando Deng Xiaoping assume o poder e se processa igualmente a descolectivização da agricultura, a abertura ao capitalismo na China se destina a aproveitar o potencial do sistema capitalista internacional para desenvolver o país e fazê-lo crescer economicamente, que culminaria na adesão à Organização Internacional do Comércio em 2001.
É na década de 1970 que se verifica o fenómeno dos Tigres Asiáticos, Taiwan, Singapura, Coreia do Sul e Hong-Kong, todos eles com idiossincrasias não muito díspares das da China Continental. E certamente, por isso, Pequim foi influenciada por esses seus vizinhos na decisão de se abrir aos mercados internacionais.
Vive-se então o começo da glorificação do capitalismo neoliberal, que prega a desregulamentação geral da economia, a retirada do Estado e o maior número possível de privatizações das empresas mais importantes. No final da década de 1980, a implosão da União Soviética e do seu sistema socialista vem coroar e justificar a linha seguida de implementação de um capitalismo chinês, sem abdicar do monopólio do poder político pelo partido comunista. É de salientar que dos quatro Tigres Asiáticos só Hong-Kong, então ainda colónia inglesa, não era politicamente um sistema autoritário de direita. Todos os outros o eram. Na altura, especulou-se precisamente sobre o facto de regimes autoritários de direita também terem potencial para crescer economicamente com sucesso, e não apenas as democracias liberais.
O centro e as periferias
Samir Amin, um dos mais categorizados analistas dos problemas dos países em desenvolvimento, desaparecido em Agosto de 2018, faz no seu estudo Revolución de Norte a Sur, publicado na revista espanhola EL VIEJO TOPO em Janeiro de 2018, uma análise pormenorizada da actual globalização neoliberal. Inspirado na teoria Sistema-Mundo de Immanuel Wallerstein, falecido exactamente um ano depois, que constatara o início do sistema capitalista de trocas comerciais mundiais a partir das viagens dos navegadores ibéricos no século XVI, criadoras de um centro euro-americano de grandes potências marítimas com as respectivas periferias, Samir Amin designa esse facto como auto legitimador de um eurocentrismo sinónimo de modernidade e progresso. Os povos desses centros imperiais foram persuadidos da sua superioridade e do seu direito preferencial pelas riquezas do mundo, que viriam a ser exploradas mais intensamente, a partir do começo da Revolução Industrial, em finais do século XVIII, nas colónias americanas, africanas e asiáticas. De que resulta, na história do desenvolvimento capitalista, o conflito entre o Norte e o Sul, o centro e as periferias. O despertar dos povos do Sul dá-se essencialmente no século XX, antecedido pela revolução socialista russa, numa semiperiferia, seguida pelos movimentos independentistas na Ásia e África, e pelas revoluções socialistas periféricas na China, Vietname e Cuba, acompanhadas pelas lutas dos povos da América Latina, cujas independências no século XIX tinham sido o resultado da tomada do poder pelas burguesias coloniais de origem europeia, (acrescento meu).
A implantação de regimes socialistas deu-se até agora nas periferias, se exceptuarmos os da Europa de Leste que resultaram de condições especiais derivadas da Segunda Guerra Mundial e do começo da guerra-fria. E por isso tiveram sempre a oposição dos centros imperiais.
E Samir Amin acrescenta: “nenhum socialismo é imaginável fora do universalismo que implica a igualdade dos povos”. E ainda, “nos países do Sul a maioria do povo é vítima do sistema, enquanto nos do Norte as maiorias são as beneficiárias”. Por essa razão, a mudança do sistema no Norte não está na ordem do dia, mas no Sul existem revoltas frequentes que podem transformar-se em revoluções.
Esta análise permite-nos compreender por que razão as revoltas nos grandes centros do Norte, como no Maio de 68 em França, na Alemanha e nos Estados Unidos depois do assassinato de Martin Luther King, nesse mesmo ano, não resultaram em verdadeiras revoluções que pudessem pôr em causa a ordem estabelecida, uma vez que não estavam relacionadas com o subdesenvolvimento, como no sul, mas com a segregação racial e razões culturais que levaram à revolta dos estudantes, também em outros pontos da Europa e mesmo fora dela.
A tradição socialista da Segunda Internacional, (1889-1916), segundo Amin, considerava a expansão capitalista homogeneizadora e por isso não combatia o colonialismo, que achava positivo. Só mais tarde, com as revoluções desencadeadas na Rússia, China, Vietname e Cuba, se verificou que a expansão capitalista era polarizadora, entre o Norte e o Sul, os centros e as periferias. E a oposição entre os centros e as periferias, interrompida durante a Segunda Guerra Mundial, aquando da aliança entre Estados Unidos, Grã-Bretanha e União Soviética contra o nazi-fascismo, viria a confirmar-se no futuro e no final da guerra pela ruptura abrupta dos americanos com a URSS, que daria início à guerra-fria.
A crise do sistema neoliberal
Poderão as várias crises do capitalismo neoliberal que se têm sucedido nas últimas décadas, praticamente em todos os continentes e com ciclos cada vez mais curtos, apontar para um fim previsível do capitalismo? Alguns autores o têm referido. Aquando da grande crise de 2008, Immanuel Wallerstein publicou um artigo no Le Monde com o sugestivo título Le capitalisme touche à sa fin. Outros como Joseph Stiglitz e Thomas Pikkety, e alguns mais, têm tratado do mesmo tema. Num artigo recente na Social Europe Stiglitz escrevia que no final da guerra-fria, com o entusiasmo no mundo ocidental pela extinção da União Soviética, acompanhado pela proclamação de Francis Fukuyama de que o mundo passaria a reger-se pelos princípios da democracia liberal e da economia de mercado, os defensores do neoliberalismo reforçaram a sua promessa de um crescimento maior e mais rápido, que iria beneficiar toda a gente, incluindo os pobres. Passados 40 anos da adopção desse sistema (e do colapso do comunismo) o que se verifica é, pelo contrário, a descredibilização do mesmo com a aplicação de políticas de austeridade, a desregulação financeira, a ditadura dos mercados, com consequências desastrosas para os países que sigam o diktat de Wall Street. E Stiglitz conclui: como poderão as políticas de retenção dos salários levar a mais altos patamares de conforto e condições de vida?
O crescimento económico também diminuiu nos últimos 40 anos e os seus frutos foram para uma reduzida minoria no topo da pirâmide social, que além disso beneficia regularmente de avultados cortes nos seus impostos.
Os movimentos de milhares e milhares de pessoas manifestando-se recentemente em vários países da América Latina contra estas políticas são a prova de que o sistema neoliberal faliu. E ainda mais num dos primeiros países onde foi posto em prática: o Chile de Pinochet. Que em Setembro de 1973 rompeu militarmente com três anos de um socialismo pluripartidário, implantado após eleições livres com a participação da grande maioria do povo chileno.
Nessa área do mundo, com a utilização de outras tácticas, têm sido dados golpes palacianos para destituir ou aniquilar leaders carismáticos, como Chavez, Lula, Correa e Morales, que muito fizeram para tirar centenas de milhões de pobres da miséria, aplicando políticas contrárias à cartilha neoliberal. Sendo substituídos por outros, prontos a reimplantar, sem quaisquer reservas, as políticas que levam as pessoas a enfrentar os canhões de água e as balas de borracha e reais da polícia.
A destruição ambiental, o COVID-19 e o socialismo do futuro
É um facto que o capitalismo industrial e financeiro tem conseguido sobreviver, desde há 200 anos, a todas as crises que enfrentou. A sua natureza auto-destruidora (e capacidade para renascer das cinzas renovando-se) concretizou-se em conflitos entre potências imperialistas rivais disputando centros importantes de matérias-primas e de mão-de-obra, no século XIX, culminando em duas guerras mundiais devastadoras no século seguinte. A sua natureza consumista e productivista parece estar, ao que tudo indica, a pôr em perigo a existência do próprio planeta. Todos os estudos científicos credíveis o mostram, se não fora a simples observação do degelo dos glaciares nos polos e na Groenlândia, a destruição de vários litorais pela subida das águas e os fogos na Califórnia e na Austrália, com consequências catastróficas. E, actualmente, a devastadora crise sanitária do COVID-19, que se propagou por todo o mundo, com centenas de milhares de mortos, não é senão a resultante também das políticas de exploração intensiva dos recursos ambientais, do aquecimento global, da destruição dos ecossistemas, florestas, flora e fauna, de inúmeras espécies, pelo predador capitalismo neoliberal, que alguns cientistas já tinham pré-anunciado.
Parece pois de bom senso afirmar que só um outro sistema não inimigo do ambiente poderá facultar a sobrevivência do planeta e de todas as espécies que nele vivem, aproveitando todos os avanços tecnológicos alcançados para possibilitar uma organização da vida humana que tenha como objectivo o bem-estar de todos os seres vivos e banir de vez um sistema em que o lucro é a chave e a finalidade do progresso tecnológico, incluindo a guerra para benefício de muitos.
Alguns autores chamam-lhe ecosocialismo. Um socialismo renovado, em relação aos que foram desenvolvidos em várias paragens durante o século XX. Naturalmente pluripartidário e com liberdades individuais. Mas com o propósito de impedir que se voltem a repetir os passos dados até chegar ao estado actual de quase destruição do planeta e da sustentabilidade da vida na terra. Em que as instituições das Nações Unidas existentes, ou a criar, deverão ter um papel determinante.
José Pereira da Costa
(1945)
Doutorado em Relações Internacionais, Universidade Nova de Lisboa/Universidade Livre de Bruxelas