CAUSA E EFEITO
Segundo a reflexão do filósofo basco Daniel Innerarity sobre a atual ordem mundial e aquilo que ele caracteriza como “o ocaso da vontade política”, encontramo-nos perante “uma forma global que multiplica as liberdades individuais e restringe a liberdade política (o mundo como resultado de decisões políticas livres), que oferece uma abertura ilimitada, mas sem alternativas, que dá a palavra a todos mas recusando qualquer referência crítica, que domestica satisfazendo necessidades.”[i] O resultado último deste processo está no conformismo face à realidade e a aceitação passiva de um statu quo que se apresenta como inevitável. Sob a capa da “modernização” e da adaptação sagaz aos novos tempos, sacraliza-se uma reverência – tão arcaica, afinal – à força do destino e ao “there is no alternative” (TINA) das décadas de ferro neoliberais. Emerge o instinto de sobrevivência, o deslaçamento das solidariedades, o medo e a violência. Impõe-se o casuístico, o autorreferencial e o tribalismo político; campeiam os fenómenos identitários e populistas.
A perceção do real é sistematicamente filtrada pela alienação mediática e pela inculcação de uma ficção societária.
Não se trata de novas interpretações da realidade, nem de uma preocupação perscrutadora da sua lógica de funcionamento, mas da construção de um avatar de existência coletiva que, assente numa assunção radical da individualidade, simplifica sobremaneira a complexidade das relações sociais, construindo narrativas lineares e esquemas de explicação fáceis e que, sobretudo, falseiam os dados do problema. Sobre este aspeto, Innerarity não deixará de sublinhar que “O combate político desenrola-se sem ter a realidade pelo meio e gira em torno de ficções úteis. […] Daí a proliferação dos «relatos» e mesmo das teorias conspirativas.”, autênticas “metáforas mobilizadoras” para os populistas. O professor da Universidade de Saragoça conclui: “a verosimilhança é mais importante que o verdadeiro. Estas construções narrativas cumprem uma função semelhante à do mito nas sociedades primitivas.”[ii] A espetacularização das várias dimensões da existência individual e coletiva encontra terreno fértil nas redes sociais e nos media que, sem objetividade ou rigor – mas com extremo oportunismo – entretêm um público ávido de emoções básicas e com reduzido esforço intelectual, que uma boa história, ainda que ficcionada, pode proporcionar, em detrimento de uma história verdadeira.
Esta “era dos coletivos de solidão”, de que fala Boaventura de Sousa Santos, faz parte de um processo histórico que teve a sua origem na afirmação da sociedade civil perante o Estado, para se chegar aos dias de hoje em que a própria sociedade é contestada em nome da autonomia individual. Mas, para o jurista coimbrão, “a autonomia que proclama é uma autonomia uberizada, isto é, a autonomia de indivíduos que não têm condições para ser autónomos. A autonomia da autoescravatura.”[iii] Para Boaventura, este modelo civilizacional tem uma implicação imediata: a substituição do conceito de responsabilidade social pelo conceito de culpa. Desta forma, os problemas existentes deixam de ser questões políticas e passam a ser problemas de polícia (com a tendência crescente para a criminalização dos protestos sociais) ou terapêuticos (e daí a moda avassaladora dos expedientes self-help e a busca atormentada de uma qualquer felicidade obrigatória) traduzindo, afinal, o emergir de uma “era não relacional”. Como explica este académico, “Assim, diferenças e hierarquias, que até há pouco eram consideradas chocantes e revoltantes, tendem hoje a ser percebidos como triviais e até aceitáveis porque expressão de características inatas em relação às quais a sociedade pouco pode fazer.”[iv] É o mito do merecimento a pontuar a crescente discriminação e desigualdade sociais.
Aquilo que o célebre filósofo francês da pós-modernidade, Jean-François Lyotard, designou como “o fim das grandes narrativas”[v], e a ideia da crise de uma conceção positiva da história que, ancorada no racionalismo emancipador do Iluminismo, desembocou na busca de concretização das várias utopias sociais, do liberalismo ao comunismo – o “princípio da esperança”, invocado por Ernst Bloch – tem vindo a dissolver os ideais coletivos num individualismo desesperado e aniquilador de qualquer noção de progresso histórico. A mercantilização das existências provocou, a partir das últimas décadas do século XX, uma insidiosa assimilação da realidade pela simulação, uma metamorfose – profundamente ideológica, sublinhe-se – onde, como explica Perry Anderson, “a forma estética e a função publicitária se interpenetram naturalmente, e um artifício lúdico modela indistintamente objetos e pessoas”, a justificar o seguinte comentário deste historiador e sociólogo inglês: “Consumida a modernidade, a história atinge a sua imobilidade na dinâmica voragem de um turbilhão.”[vi] A desmoralização desta sociedade virtual reduz a indignação à dimensão da ofensa pessoal, dos “«perpetuamente ofendidos» da era das redes sociais – poderíamos também chamá-los moralistas seculares – aqueles que descobrem todos os dias que alguém disse algo, pensa algo, ou fez algo que os ofende”, na sugestiva descrição do jurista e politólogo, José Pedro Teixeira Fernandes[vii]; inquietação, porém, inócua, porque desprovida de qualquer demanda coletiva e, dessa maneira, de horizonte político. A questão ambiental e a sua perceção vulgarizada são um exemplo paradigmático de semelhante deriva.
Quando António Guerreiro nos lembra que “Uma vez instalado este imaginário catastrofista, foram evacuadas a grande velocidade as reminiscências dos tempos modernos, que nos falavam de emancipação, progresso, liberdade, esperança”, está a alertar-nos para a circunstância cada vez mais indesmentível, segundo a qual “passámos em pouco tempo de uma política com pouquíssima ecologia a uma ecologia de boa vontade à qual falta política. E essa falta torna vãs todas as boas intenções.”[viii] O filósofo defende, nesse sentido, o que designa por ecopolítica: “Uma ecopolítica à altura dos desafios com que estamos confrontados terá de ser capaz de mostrar que as situações ecológicas, políticas, sociais, económicas, institucionais, tecnológicas e psíquicas estão em total conexão umas com as outras. Sem agir sobre todas estas dimensões, o «impasse planetário» mantém-se.”[ix] A este propósito, não deixa de ser simultaneamente caricata e esclarecedora a troca de argumentos entre Emmanuel Macron e os gilets jaunes, na tentativa por parte do primeiro-ministro francês de justificar o brutal aumento dos combustíveis em França com a necessidade de encontrar formas menos poluentes de energia, como se o próprio poder fosse exemplo de preocupações ambientais efetivas e as políticas públicas não reproduzissem diligentemente um sistema económico que perpetua a catástrofe ecológica.
Uma coisa é certa; a predação acelerada dos recursos existentes é intrínseca à lógica de exploração do capitalismo globalizado e está indissoluvelmente ligada ao agudizar das desigualdades sociais por via da obtenção desenfreada do lucro (extração da mais-valia) e da acumulação crescente do capital.
Não há nada aqui de estruturalmente novo, pelo menos desde a Revolução Industrial. Apenas o grau das assimetrias e a extensão da devastação e das alterações climáticas constituem fatores agravantes. É justamente chamando a atenção para estes constrangimentos, que o sociólogo norte-americano Jason W. Moore estabelece, desde 2013, a distinção entre uma visão demasiado anódina do que designa por “Antropoceno” – época da história da Terra a partir da qual a ação humana alterou negativa e de forma decisiva o ecossistema – para uma definição mais objetiva e consciente de “Capitaloceno”, em que “as alterações climáticas provêm de um regime económico que assenta na extração de matérias-primas e na apropriação da energia não paga, uma predação durante muito tempo considerada como natural.”[x]
Até porque o estado de “emergência ambiental” é, já hoje, vivido por centenas de milhões de indivíduos em todo o mundo: 821 milhões de pessoas subalimentadas, mil milhões sem alojamento ou instalações sanitárias condignas, 2,1 mil milhões sem fornecimento de água potável.
Daí que a questão ambiental seja indissociável das opções políticas e do cotejo dos distintos projetos de sociedade e de sustentabilidade da nossa existência na Terra. Quem não compreender isto, pouco entenderá do que se passa nos nossos dias e, sobretudo, pouca eficácia terá na sua ação em defesa do ambiente, por melhores intenções que tenha.
Ora, como afirmou o escritor libertário norte-americano e fundador da escola da ecologia social, Murray Bookchin, “É tão fácil convencer o capitalismo a limitar o crescimento como persuadir um ser humano a deixar de respirar”[xi]. Em oposição ao discurso desenvolvimentista – até porque dificilmente será possível um crescimento infinito num mundo finito – do que se trata é de promover uma economia sustentável que não pode deixar de passar por um decréscimo assinalável do consumo e dos gastos e por uma diminuição das assimetrias entre países e entre pessoas, através de um uso racional dos bens, da reutilização e reciclagem dos produtos e serviços e de uma distribuição mais igualitária da riqueza. Isto é, por uma significativa alteração dos atuais padrões de acumulação, desgaste e desperdício dos recursos disponíveis. Por isso, como justamente refere Perry Anderson, “A revolução ambiental não ocorrerá sem um novo sentido de responsabilidade igualitária.”[xii]
Discursos apocalíticos ou messiânicos resolverão verdadeiramente o problema? Estaremos eternamente condenados ao atomismo social da irresponsabilidade e da ganância? Persistiremos no caminho do abismo, ou provaremos que os ideais coletivos de justiça social e de equilíbrio ambiental constituem as duas faces da mesma moeda do nosso futuro?
Notas: [i] Ler, nº154, verão 2019, p. 80. [ii] Ibid. p. 81. [iii] Jornal de Letras, 23/10/2019. [iv] Ibid. [v] Cf. a sua mais conhecida e influente obra, A Condição Pós-Moderna, de 1979. [vi] Perry Anderson, O Fim da História: de Hegel a Fukuyama, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1993, p. 74. [vii] No artigo de opinião “O populismo ambientalista”, Público, 1/10/2019. [viii] Público/Ìpsilon, 20/10/2019. [ix] Ibid. [x] Cit. in Jean-Baptiste Malet, “O fim do mundo não vai acontecer”, Le Monde Diplomatique, ed. port., agosto de 2019. [xi] Cit. in Serge Latouche, Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno, Lisboa, Edições 70, 2012, p. 125. [xii] Op. cit., p. 127.
Hugo Fernandez
(1961)
Investigador do Centro de Investigação em Ciência Política da Universidade de Évora