Conhecimento e decisão política – relação difícil, mas indispensável. A propósito da pandemia em curso.
Um vírus novo, o vírus pandémico, expande-se mais depressa que o conhecimento sobre ele. Apesar disso é necessário atuar – tomar medidas para o conter.
Sabe-se que a relação entre o conhecimento e a decisão política é difícil.
A melhor forma de fazer com que essas dificuldades não resultem em decisões deletérias para a saúde pública, é assegurar a transparência de um processo de decisão que incorpora o melhor que o conhecimento pode oferecer.
Da China até Portugal – incertezas sobre o comportamento do vírus
Em 31 de Dezembro o governo chinês informou a Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre 44 casos de uma doença respiratória aguda e grave, diagnosticados na cidade de Wuhan. Possivelmente, essa informação foi excessivamente tardia. Contudo a China atuou rápida e eficazmente para identificar o vírus e delimitar o surto. Apesar disso, o novo coronavírus (SARS-CoV-2) transpôs as fronteiras da China e iniciou a sua expansão global.
A 23 de Janeiro a OMS convoca o seu Comité de Emergência para aconselhar o Diretor-Geral da organização sobre a necessidade de se declarar o “Estado de Emergência de Saúde Pública de Caráter Internacional”. Recordando experiências anteriores recentes e sabendo que essa declaração poderia ter implicações económicas globais, o Comité teve dificuldade em chegar a um consenso. Consegui-o, sob pressão, ao fim de uma semana.
Viajando de avião, o novo coronavírus chega à Europa. Na terceira semana de Fevereiro a epidemia “incendeia” o norte da Itália. As intensas relações económicas entre o norte da Itália e a China, associadas à cultura gregária e de proximidade física dos povos do sul da Europa e às características do vírus em causa, contribuíram para isso.
A 18 e 19 de Fevereiro, poucos dias antes da aceleração da epidemia no norte de Itália, o ECDC reuniu o seu habitual dispositivo de aconselhamento, para apreciar o risco epidémico na Europa do novo coronavírus. O consenso foi, que no imediato, o risco era moderado. Não o era. Este conservadorismo, tal como acontecera com o Comité de Emergência da OMS, tem sido também atribuído às previsões excessivas sobre a forma com haveria de evoluir a SARS em 2002/3 e a Gripe A em 2009.
No início da segunda semana de Março, esboça-se uma segunda vaga de expansão da COVID-19 na Europa – a situação agrava-se em França, Alemanha, Reino Unido e, principalmente, em Espanha. A OMS emite sinais, ainda não muito explícitos, no sentido em que o modelo tradicional de respostas às pandemias gripais (primeiro uma fase de contenção, para evitar que os vírus importados se disseminem no país, seguida de uma fase de mitigação, quando é necessário minimizar os efeitos de uma expansão é inevitável) poderia não se aplicar a este coronavírus.
A preocupação em Portugal aumenta. Registam-se os primeiros casos importados e as primeiras cadeias de transmissão no país. A primeira mulher infetada foi uma professora numa escola da Amadora. Manifestações de preocupação com a transmissão nas escolas acentuam-se rapidamente.
Contudo, o Conselho Nacional de Saúde Pública, quando consultado a 11 de Março sobre a necessidade de um fecho generalizado das escolas responde de forma conservadora, em função do modelo de resposta à pandemia, em vigor, baseado na experiência das gripes pandémicas (ver explicação mais detalhada abaixo). Recomendou que o fecho das escolas devia ter lugar caso a caso, por indicação da Direção Geral da Saúde (DGS), face às situações epidemiológicas locais. Ao fazê-lo, contrariou as expetativas sociais e as do governo.
No dia seguinte, 12 de Março, quinta-feira, o governo anuncia um amplo conjunto de mediadas de distanciamento social, que inclui o fecho generalizado das escolas.
Portugal, beneficiado por ter ficado na 3ª vaga de expansão europeia da pandemia, não desperdiça essa vantagem. O governo recorre ao princípio da precaução e mesmo sem uma base científica consolidada para a decisão, atua rapidamente, com bons resultados.
No dia 16, segunda-feira, data prevista para entrarem em vigor, em Portugal, as medidas adotadas no dia 12, a equipa de Neil Ferguson, do Imperial College de Londres, publica um trabalho no qual propõe um modelo de resposta a esta pandemia, alternativo ao da gripe: para evitar uma mortalidade elevada, é necessário uma resposta mais radical – já não se trata de mitigar a transmissão, mas sim tentar suprimi-la. Era preciso confinar – “ficar em casa”!
A partir daqui o confinamento generalizado foi adotado pela grande maioria dos países. Resultou, no que diz respeito à transmissão da doença, mas a um preço muito elevado. Em Portugal, em fins de Abril, a incidência da COVID-19 diminuiu o suficiente para se pensar em iniciar o pós-confinamento.
Do confinamento ao pós-confinamento – novos desafios
Desconfinar é difícil. Nunca se tinha confinado e desconfinado antes assim, na história moderna da Saúde Pública. O tempo de preparação era escasso, e abundavam outras preocupações imediatas. Por outro lado, o Estado tem reduzidas competências em planeamento estratégico (incluindo na Saúde). Esta reconhecida debilidade potencia-se quando associada a um modelo de aconselhamento científico ainda mal resolvido. Uma coisa e outra são requisitos essenciais para gerir, de uma forma atempada e articulada, situações particularmente complexas: antecipar a diferenciação local na resposta aos surtos epidémicos, com todas as suas consequências; atuar expeditamente face ao agravamento na área metropolitana de Lisboa; responder ao desafio da proteção aos mais idosos, particularmente nos lares de 3ª idade; evitar as anomalias na resposta do SNS às situações não-COVID; prestar atenção aos “movimentos de verão” e ao regresso das férias e às aulas; preparar o Outono e o Inverno.
Aconselhamento científico, planeamento estratégico e decisão política
Durante os últimos meses assistimos a três versões diferentes da ilusão de aconselhamento científico para as decisões políticas, em matéria de COVID-19.
Modalidade 1: Conselho Nacional de Saúde Pública (CNSP)
Este Conselho é, por lei de 2009, o órgão formal de aconselhamento científico para situações de emergência de Saúde Pública. É constituído por 22 elementos de competências diversas, escolhidos pelo Ministro da Saúde. Dadas as suas dimensões e a pluralidade na sua constituição, segundo a lei, o CNSP conta com duas comissões coordenadoras que devem proporcionar ao Conselho os pareceres técnicos para discussão, validação e enquadramento estratégico.
No dia 11 de Março o CNSP reúne por solicitação do governo, essencialmente, para responder à questão de saber se, dada a situação epidemiológica no país, se justificava o encerramento generalizado das escolas.
Para responder a esta questão o CNSP experimentou dois tipos de dificuldades:
Incertezas teóricas: A 11 de Março, o modelo de resposta à pandemia continuava a ser o da gripe – as medidas de distanciamento social, incluindo o encerramento das escolas, só se justificavam quando houvesse sinais claros de que o vírus já se transmitia, de uma forma sustentada, na comunidade. Segundo a DGS, isso não estava ainda a acontecer. Contudo, havia já nessa altura sinais de que o modelo de resposta à gripe pandémica poderia não ser adequado face a este vírus pandémico. Face a esta possibilidade, poderia ser necessário antecipar as medidas e distanciamento social previstas para a fase de mitigação. O problema para este ponto de vista, não tinha, naquela altura, sustentação teórica convincente. Teve-o, cinco dias depois.
Dificuldades operacionais: As comissões coordenadoras do CNSP, não foram ativadas. Isso obrigou o Conselho, num período de tempo necessariamente limitado, a tentar ele próprio iniciar o processo para encontrar uma resposta tecnicamente sustentada para responder à solicitação do Governo.
Ambas estas dificuldades contribuíram para a resposta frugal e conservadora do Conselho. Não tornou a ser convocado pelo Governo, a partir de meados de Março. Tornou-se, assim, irrecuperável.
Modalidade 2: Reuniões no INFARMED
Na segunda metade de Março, o Governo instituiu reuniões regulares no INFARMED em que participaram técnicos e investigadores em domínios associados à pandemia, por um lado, e os principais atores políticos do país, por outro. Esta modalidade, teve tanto aspetos muito meritórios, como deu origem a situações problemáticas:
Aspetos meritórios: A partilha de informação que essas sessões permitiram, contribuíram substancialmente para o alinhamento e coesão, observada em grande parte do sistema político português, face à ameaça pandémica. Ao mesmo tempo constituiu um estímulo importante para os investigadores portugueses apresentarem, diretamente aos decisores políticos, os resultados dos seus trabalhos.
Situações problemáticas: Com estas reuniões o governo criou a ilusão de continuar a contar com um processo adequado de aconselhamento científico. A experiência demonstrou rapidamente que não era assim. À saída das reuniões, os atores políticos presentes, começaram a oferecer as suas próprias conclusões e sínteses em relação àquilo que tinham ouvido. Não só tais sínteses não são uma arte própria da política, como elas começaram a ser claramente discrepantes: A 26 de Junho o Presidente da República repetiu a ideia de que a “situação em Lisboa estava controlada”, enquanto um deputado da oposição afirmava que “tinha começado a segunda onda”. Em meados de Julho estas reuniões são descontinuadas, com a intenção expressa de encontrar uma outra forma de manter os aspetos meritórios acima enunciados.
Modalidade 3: Consulta Técnica ocasional através de grupos de trabalho específicos
A 14 de Julho a Academia de Ciências Médicas Britânica, publica as suas recomendações sobre a resposta à pandemia no próximo Outono/Inverno; a 27 do mesmo mês o Conselho Científico COVID-19 francês faz o mesmo. Em Portugal, a 10 de Agosto, a Ordem dos Médicos divulga as 6 principais preocupações que devem informar aquela resposta. O Ministério da Saúde convida, para 14 de Agosto, 72 profissionais e investigadores para se debruçarem sobre a mesma temática, numa sessão de trabalho de algumas horas.
Méritos: O Ministério da Saúde propôs-se ouvir um extenso número de profissionais e investigadores de reconhecido mérito sobre temáticas relevantes na preparação do Outono/Inverno;
Limitações: Não é seguro que a abordagem adotada (4 grupos de trabalho, com 18 participantes cada) seja eficaz em tirar proveito do grande número e diversidade de competências convidadas. Esta consulta técnica ocasional não está articulada com um processo continuado de aconselhamento científico.
Aconselhamento científico (AC) para as políticas públicas não se faz por perguntas e respostas. Para ser útil e minimizar as tensões naturais entre “conhecimento” e “política” o AC terá que constituir um processo formal, contínuo, transparente, de aprendizagem mútua, independente dos poderes “estabelecidos” e necessariamente mediado por dispositivos de planeamento estratégico.
Ora a noção de planeamento estratégico é habitualmente mal compreendida. Simplificando, ela incorpora os seguintes elementos:
(a) uma conceção partilhada, o mais amplamente possível, sobre a forma como se pode fazer evoluir o país (e o seu sistema de saúde), na base de uma relação equilibrada entre as nossas aspirações e os riscos a que nos expomos (conhecimento estratégico);
(b) objetivos concretos em domínios específicos de ação prioritária (conhecimento substantivo);
(c) uma compreensão detalhada das agendas dos atores sociais mais influentes – incluindo profissionais de saúde e professores – que possa resultar em indispensáveis iniciativas colaborativas (“boa governança”);
(d) inovação técnica e tecnológica disponível que permita realizar mais facilmente os objetivos em vista (diagnóstico da infeção, medicação, vacina);
(e) a especificação dos instrumentos de gestão da mudança necessários para que as coisas aconteçam.
A recente proposta de António Costa Silva para o desenvolvimento do país, na próxima década, é um bom incitamento ao planeamento estratégico no âmbito das políticas públicas. E enfatiza, bem, a importância para o país em acrescentar às múltiplas competências funcionais que abundam, competências institucionais que rareiam.
Não há que tomar como definitivas as vantagens ocasionais da agilidade das decisões políticas imediatas sobre a prudência dos processos associados ao conhecimento e à sabedoria sobre aquilo que “faz mover o mundo”. Não há soluções simples. Na Inglaterra critica-se a composição do dispositivo de AC (“faltam competências estratégicas”); em Espanha um político afirmou publicamente que “nós já pedimos desculpa, mas eles (os que nos aconselham) ainda não”; a Suécia é um “caso de estudo”; os Estados Unidos e o Brasil expõem distopias extraordinárias.
As implicações sanitárias, sociais e económicasda pandemia são uma oportunidade para um salto qualitativo que supere o distanciamento, a fragmentação sectorial, e o foco no curto prazo, tão prevalentes na ação governativa.
Precisamos de um fio condutor tangível que nos proteja das fortes correntes circunstanciais que nos levam sem destino. Precisamos da ideia, não tanto da ilusão, que de alguma forma, fazemos parte de uma promessa de futuro.
Constantino Sakellarides
(1941)
Professor Catedrático Jubilado, Escola Nacional de Saúde Pública, Universidade Nova de Lisboa