É preciso salvar o jornalismo para salvar a democracia
Nos últimos meses, em Portugal e no mundo, o consumo de informação cresceu significativamente e tornou-se ainda mais clara a importância do jornalismo sério e credível. Os media tradicionais reconquistaram audiência e relevância, que vinham a perder na última década, em virtude da procura por informação de confiança no contexto da crise pandémica. Isso não significou que os problemas que o setor dos media enfrenta tenham desaparecido, antes pelo contrário, mas tornou ainda mais urgente a necessidade de encontrar soluções para os vencer.
Com a sustentabilidade do negócio da comunicação social cada vez mais ameaçada, a tendência para uma ainda maior concentração dos media e a ameaça ao pluralismo que isso significa, num momento em que a extrema-direita ganha força em Portugal como nunca antes desde a revolução de Abril de 1974, este é o momento de pensar de que jornalismo precisamos para defender a democracia e a liberdade e que alternativas existem para torná-lo sustentável.
Nas últimas décadas, o digital alterou radicalmente a forma como as pessoas consomem notícias e, mais do que devia, a forma como os jornalistas produzem notícias.
A internet e as redes sociais passaram a ser a principal fonte de informação, com cada vez menos gente disponível para pagar pela informação que consome, criando uma massa de leitores acríticos e fomentando uma lógica imediatista e reativa, lavrando assim terreno fértil para a desinformação e as fake news e ameaçando a qualidade jornalística, a profundidade e a verificação de factos, de que a cobertura noticiosa da Festa do Avante, este ano, e toda a polémica gerada em seu redor, nas redes sociais, em que imperaram a raiva, o medo e uma quase irracionalidade pouco próprios do campo da informação, é o mais recente exemplo.
Para a ameaça da qualidade jornalística, da profundidade das notícias e da regra, que devia ser de ouro, da verificação de factos concorreu também o encolhimento das redações e das condições de trabalho dos jornalistas e o ritmo voraz de produção exigida pelo digital, em que as notícias são atualizadas ao minuto e a pressão constante para dar primeiro e não ficar atrás retira o tempo de pensar, verificar fontes e factos, ouvir várias partes interessadas, refletir, transformando muitas vezes os jornalistas em meros produtores de conteúdos.
No entanto, de acordo com o Digital News Report 2020 – Portugal, do Reuters Institute para o Estudo do Jornalismo e do OberCom – Observatório da Comunicação, os portugueses são unânimes no reconhecimento da centralidade do jornalismo na sociedade.
Embora estejam divididos quanto ao papel concreto que este deve ter na determinação da verdade – 44,3% consideram que, perante declarações e factos potencialmente falsos, os media devem denunciá-las, face a 43,3% que consideram que declarações duvidosas devem ser ignoradas -, sendo os que se situam politicamente à esquerda e ao centro que mais tendem a atribuir aos jornalistas um papel de maior responsabilidade na filtragem dos factos e sua veracidade enquanto os que estão à direita do espectro político tendem a achar que não cabe aos media fazer este tipo de triagem e talvez por isso demonstrem uma perceção mais permissiva da comunicação política nos media, seja na televisão ou nas redes sociais, considerando em maior proporção que os atores e partidos políticos devem poder partilhar as suas ideias nestes veículos de comunicação, em 2020, Portugal é, segundo o mesmo relatório, no conjunto dos 40 países analisados, aquele onde mais se confia em notícias, a par da Finlândia, com 56% dos portugueses a dizer confiar em notícias em geral.
Em paralelo com os índices de confiança estruturalmente altos, os portugueses revelam-se como um dos povos mais preocupados com a legitimidade de conteúdos online, com três quartos da amostra nacional a dizer-se preocupada com o que é real e falso na internet. As redes sociais, em geral, e o Facebook, em particular, revelam-se como as fontes que geram maior preocupação aos inquiridos no nosso país, sendo de destacar, num espectro mais abrangente, a desinformação proferida pelo Governo, políticos ou partidos portugueses. A desinformação oriunda de jornalistas ou órgãos de comunicação social preocupa 18,6% dos inquiridos, num quadro em que apenas 7,2% se dizem não preocupados com desinformação vinda de alguma fonte.
O Digital News Report 2020 – Portugal revela ainda que os portugueses acedem frequentemente a notícias ao longo do dia (um quarto dos inquiridos acede a notícias pelo menos 6 vezes por dia), independentemente do formato. São, também, unânimes na preferência de notícias com posicionamento neutro, isto é, que não defendem nenhum ponto de vista específico (57,4%). Não obstante, cerca de um quarto dos inquiridos dizem preferir conteúdos noticiosos que corroboram as suas opiniões pessoais (27,6%).
A televisão continua a ser a principal fonte de notícias para 55,8% dos portugueses, sendo o aumento da centralidade da internet e das redes sociais conseguido, sobretudo, à custa da perda de importância da rádio e da imprensa. Em termos gerais, o acesso a notícias online em Portugal é feito de forma indireta: em 2020, praticamente 8 em cada 10 acessos a notícias digitais é feito de outra forma que não o acesso direto a websites ou apps noticiosas, nomeadamente através de motores de busca (25,9% dos acessos) e redes sociais (25,2%). Entre as formas de acesso indireto destacam-se também as notificações móveis (13,3%) e os agregadores de notícias (6,2%).
O smartphone tornou-se, definitivamente, o dispositivo mais utilizado pelos portugueses, em termos de uso geral e para consumo de notícias, quando comparado com computador e tablet. São já 70,4% os portugueses que utilizam o smartphone em geral, face a 55,9% que dizem utilizar computador. Quanto ao pagamento por notícias online, apenas 10,1% dos portugueses o fazem, sendo Portugal um dos países onde menos se paga por notícias neste formato, “uma forte ameaça à sobrevivência do ecossistema noticioso em que os portugueses tanto dizem confiar, e que tanto utilizam de forma tão frequente ao longo do dia”, lê-se no relatório do Reuters Institute e do Observatório da Comunicação.
É caso para perguntar, como fez a jornalista Catarina Carvalho, no título de um artigo de opinião publicado em maio, no Diário de Notícias: “Já pagou pelas suas notícias hoje?”.
O jornalismo sério e de qualidade, um dos garantes da democracia, do pluralismo e da liberdade, custa dinheiro e exige investimento, seja ele do leitor, do Estado, dos privados, ou de todos. Desde que garanta a viabilidade e sobrevivência de projetos independentes e (mais) livres da influência dos poderes instalados.
É preciso pagar e essa é uma escolha que tanto os cidadãos como as sociedades terão que fazer, se querem, como parece que querem, dados os resultados do Digital News Report 2020 – Portugal, um jornalismo de qualidade, que escrutine, explique, decifre, critique, denuncie, fiscalize, verifique e seja aquilo que um dia alguém definiu como quarto poder.