No Centenário de Amália, uma Mulher da Cultura

Na amurada dum veleiro, na boca dum marinheiro, que estando triste cantava. Assim nasceu o fado, na versão poética de José Régio, mais uma de tantas outras, populares ou de aparato académico, todas elas tão exactas quanto improváveis. Talvez seja mais acertado dizer que o fado não nasceu, que o fado foi nascendo ao correr dos séculos: moço de bordo nos baldões das caravelas, proleta de ponta e mola, galego de carvoeiro, fidalgo afiambrado, vadio na meia-luz das tabuinhas… – até chegar, respeitável, a património da Humanidade.

Mas se o peditório para a genealogia do fado continua em aberto, no seu lugar cimeiro, inexpugnável, continua o nome de Amália: Amália, a voz do fado, por quem o tempo não passa, venha o centenário, venham novas edições, ela ressurge sempre como a maior, sempre melhor. Contra ventos e marés, Amália deu, como mais ninguém, para esse peditório de uma forma de cultura popular urbana, numa sociedade que, entre a reserva e a adesão entusiástica, nunca lhe passou ao lado.

Pela língua comum, pelos laços históricos e afectivos, pela óbvia existência de um público mais próximo e interessado, foi pelo Brasil que o fado saltou as suas fronteiras originais, no final da Segunda Guerra Mundial, com Amália como sua figura de proa. Fatal como é próprio do fado, o êxito internacional, ao abrir-lhe novos horizontes, trouxe-lhe outras responsabilidades, quer na arte quer nas relações sociais, sem esquecer as teias de um regime que já em 1940, como se deixasse a política à parte, buscara o melhor que havia no país (arquitectos, engenheiros, pintores, escultores…) para, na Exposição do Mundo Português, afirmar a grandeza do Império e levar a água ao moinho da sua propaganda.

O equilíbrio nesse delicado fio da navalha, entre a fidelidade a um passado de origens populares e a permanente exposição pública que esse novo estatuto de estrela impunha, pôs-lhe à prova um jeito de que Amália soube valer-se para manter uma equidistância que não era fácil de gerir. Sirva de exemplo dessa dificuldade a pequena história de um dos serões que, em sua casa, Amália proporcionava a amigos, artistas e convidados, nos quais se incluíam por vezes convidados de entidades oficiais, mas não das suas relações pessoais. Eram os anos sessenta, já com a Guerra Colonial a marcar a vida política do país. Alain Oulman chamara-lhe a atenção para um guitarrista discreto, alheio ao circuito do fado, compositor e intérprete de outro mundo. Amália convidou-o então para num desses serões mostrar a sua arte. Carlos Paredes chegou, com a sua guitarra e a sua modéstia, que era também a firmeza das convicções por que penara já nas cadeias da PIDE, acusado de pertencer ao PCP. Foi assim que, ao chegar, Carlos Paredes se apercebeu de que o convidado especial dessa noite, para quem se iria exibir, era o jornalista Carlos Lacerda, empenhado defensor oficioso das políticas do governo de Salazar na imprensa brasileira, e que, a convite de tal governo, se deslocava a Lisboa com frequência. Não foi necessário entrar na sala, para Carlos Paredes informar Amália da sua recusa em participar numa festa com semelhante conviva, lamentar o equívoco e chamar um táxi. Amália não apreciou o gesto e reprovou-o, sem êxito. Mas nesse não! – o momento da grande recusa, il gran rifiuto de Kavafis, com que algum dia acabamos por nos confrontar – Carlos Paredes era mais livre do que Amália.

Nesses anos sessenta, mercê de um exigente padrão de bom gosto e qualidade imposto por Alain Oulman ao conteúdo musical e lírico do seu canto, Amália cede as tradicionais letras populares (de que era, aliás, excelente cultora) para abrir o fado à voz de poetas com a primazia de Camões. Era a grande recusa a uma tradição gasta e a abertura à cultura de um tempo novo, com a poesia e a música buscando outros caminhos.

A qualidade humana e artística de Amália pairou sempre acima dos propósitos de quem quis usá-la para fins alheios à sua arte e a ela própria. Fez o que tinha que fazer, ainda que à custa da incompreensão de alguns que, ao sopro de novos ventos, quiseram exigir-lhe contas que ela, em boa consciência, não tinha que dar. No centenário do seu nascimento a Seara Nova recorda Amália como símbolo de uma Cultura que, antes de património da Humanidade, é património do nosso Povo.