Radical no conteúdo e ampla na forma: como a esquerda precisa enfrentar o bolsonarismo
O maior desafio da esquerda é construir discurso e programa capazes de conquistar maiorias sociais e políticas. Esta tarefa exige romper com o que Roberto Mangabeira Unger identifica como “ditadura da falta de alternativas”[1]: a crise programática engendrada pela adesão da esquerda ao programa econômico de seus adversários, que assim assumiu contornos de necessidade incontornável além da política. Ao se render ao neoliberalismo, a esquerda abdicou das condições para agregar politicamente as classes médias e as classes populares. Os países que conseguiram esta coalisão política foram os que rejeitaram o conformismo à ortodoxia neoliberal, rompendo com a miragem mágica de conseguir o progresso social por meio da confiança dos mercados financeiros internacionais.
A subserviência progressista foi merecidamente punida pelos eleitores em várias partes do mundo. No Brasil não foi diferente. A fórmula geral da punição foi a implosão da âncora centrista com a qual contava a esquerda, o desmonte do “neoliberalismo progressista”[2]. No processo de adesão ao programa de seus adversários, a esquerda buscou e ainda busca o centro político como lugar de apagamento e moderação das principais diferenças na política econômica. Este seria o único caminho para unir os pobres e a classe média em torno de uma agenda comum. Na prática, o que faz a esquerda ao adotar este centrismo rendido é desconectar a agenda da inclusão social e da redistribuição de renda da agenda da mudança da política econômica, combinando política identitária para minorias, política compensatória de transferência monetária para os pobres e política regulatória de serviços privados de educação e saúde para a classe média, ao preço de executar e ampliar a política rentista das oligarquias financeiras. Tudo isso na esperança de que a água morna centrista fosse acalmar os ânimos para sempre. Só que não foi assim. A classe média, ameaçada pela decadência social, se revoltou mais uma vez, restando para a esquerda, no caso do Brasil, parcela das classes populares politicamente desorganizadas e por isso incapazes de conduzir aglutinação da maioria em torno de seus interesses, definidos quase exclusivamente no curto prazo. A situação social desta parcela das classes populares que restou para a esquerda, marcada pela desorganização e pela visão de curto prazo, facilita a cooptação pelo bolsonarismo, o que torna o quadro ainda mais calamitoso.
As pesquisas de opinião mais recentes[3] indicam que esta cooptação está ocorrendo. Ao mesmo tempo em que perde apoio nas classes média e alta, o presidente ganha apoio entre os pobres. Parece haver uma mudança na estrutura social de apoio ao presidente, que migra dos mais ricos para os mais pobres. Como a maioria destes “novos apoiadores” recebeu o auxílio emergencial[4] implantado na pandemia da Covid-19, a hipótese de que a transferência de renda é o principal fator explicativo para esta mudança é muito plausível. De acordo com as análises do sociólogo Rogério Barbosa[5], o benefício foi responsável por uma tendência inusitada, embora “artificialmente” criada: a partir de maio de 2020 houve um ganho de renda domiciliar per capita entre aqueles de menor renda, garantido pelo auxílio emergencial, enquanto nas faixas de renda mais elevada houve perda em relação ao ano passado. Com o auxílio emergencial, estamos vivendo uma queda da pobreza e da desigualdade em função do auxílio emergencial, capaz de garantir um “mínimo existencial” que o Bolsa Família já não assegurava. A consolidação deste realinhamento social do apoio a Bolsonaro parece depender da manutenção desta tendência de aumento da renda dos mais pobres, o que obriga o governo a reorientar a política econômica e social e a abandonar a “guerra cultural” como eixo principal de seu funcionamento.
O bolsonarismo é um fenômeno complexo que precisa ser analisado a partir dos próximos ciclos eleitorais, inclusive para definir sua base social, que está se alterando. É cedo para definir o fenômeno. No entanto, algumas de suas principais características já se mostram evidentes desde o processo eleitoral de 2018, quando foi vitorioso colocando a “guerra cultural” como eixo principal da disputa. Me parece convincente a interpretação de alguns analistas[6] que entendem a “guerra cultural” como característica definidora do que o bolsonarismo tem sido até aqui. No entanto, como decorrência da pandemia, é visível o crescimento da legitimidade do Estado de bem-estar social e da intervenção estatal na economia, o que pode levar a um deslocamento da “guerra cultural” do centro do sistema político. Se isto ocorrer, a política econômica e a política social podem retomar o lugar da “guerra cultural” como eixo principal da disputa política e eleitoral.
Mas o possível arrefecimento da “guerra cultural” não garante que a esquerda estará em melhores condições para enfrentar Bolsonaro. Não é improvável que o realinhamento eleitoral impulsionado pelo auxílio emergencial se torne prioridade para o governo e que Bolsonaro assuma o papel de um novo “pai dos pobres”, superando o lulismo em matéria de transferência de renda e conquistando parte decisiva de sua base social. Se estiver restrita a este redistributivismo marginal, a esquerda corre o risco de ficar sem base e sem discurso. A tarefa crucial para enfrentar Bolsonaro é superar o discurso redistributivo superficial que não leva em conta a necessidade de superar o subdesenvolvimento e o primitivismo econômico.
As prioridades devem ser a reconstrução de nossas estruturas econômicas, a elevação de nosso padrão de produção de riqueza, o desenvolvimento de nossas forças produtivas e a difusão dos ganhos de produtividade para todos os setores da economia.
Isto exige reconectar a agenda da inclusão social e da redistribuição de renda com uma agenda de mudança da política econômica em um projeto nacional de desenvolvimento centrado na soberania nacional. A reconexão entre política econômica nacionalista e política social universalista consiste em mudanças sociais induzidas pelo sistema político no sentido de construir solidariedade complexa no plano nacional, oferecendo programa e discurso que façam o que chamo de fusão política majoritária de interesses sociais distintos em interesses políticos comuns, responsável pela criação de identificações coletivas suficientemente amplas e coesas parra sustentar decisões políticas. Na política social, esta solidariedade complexa requer a ruptura com a fragmentação entre política compensatória de transferência marginal de renda para os pobres e política regulatória de serviços privados para a classe média. A tarefa é atrair a classe média para os serviços públicos, para a escola pública, para o SUS. Na política econômica, o desafio é romper com o abismo institucional entre produção desigual e redistribuição marginal da riqueza. É preciso reinventar a receita do bolo, de modo que produção e distribuição não sejam momentos e processos desconectados, mas sim correlatos. A esquerda não pode se contentar em redistribuir parte marginal da riqueza produzida e apropriada de modo desigual no sistema econômico. É preciso transformar as estruturas sociais da economia. É preciso transformar e diversificar as formas de propriedade, recolocando a questão do controle dos meios de produção e da relação entre o capital e o trabalho no centro da agenda. O trabalho assalariado não serve mais como horizonte absoluto de trabalho livre garantidor de cidadania para todos.
Formas alternativas de produção, consumo e financiamento como o trabalho cooperativo, que no século XIX figuravam como opções para superar a julgo do trabalho pelo capital, devem ser recuperadas e reformuladas à luz dos novos desafios.
A inovação jurídica, especialmente nos direitos de propriedade, deve estar na ordem do dia.
É preciso admitir que a moderação programática é parte do problema e desfazer a confusão entre ser radical e ser sectário: a premissa equivocada de que um programa político radical, ousado, que busque soluções estruturais para problemas estruturais, é sempre sectário e estreito no espectro dos grupos e classes sociais que lhe dão sustentação. Esta confusão pode e deve ser desfeita, pois ser radical na dimensão programática não significa necessariamente sectarismo. Programas rebeldes de desenvolvimento nacional foram sempre radicais e contaram com ampla base de apoio envolvendo setores populares e médios. Quando não contaram com o apoio de setores burgueses, o apoio da classe média e dos setores populares garantiu, muitas vezes, as condições para a coerção política da minoria dissidente e entreguista. Não há lei social ou política que faça da classe média a linha de frente da burguesia antinacional e antipopular. Por mais que esta seja a configuração atual, não foi sempre assim.
É preciso recuperar as nuances e contradições da história política e a contingência das estruturas da ação social. A classe média está em disputa, como sempre esteve. É preciso ser radical no programa e amplo nas alianças. Radical no conteúdo e amplo na forma da comunicação política. O centro político perdido era um centro amorfo, marcado pelo “neoliberalismo progressista” e pelo rebaixamento de expectativas. O centro precisa ser reconquistado e reconstruído como centro radical. Uma esquerda em busca do centro não precisa ser uma esquerda rendida. Creio que o oposto é que vale: a esquerda só conseguirá reconquistar o centro perdido se for radical no que interessa às maiorias, e ampla na forma da comunicação e da organização política para aglutiná-las.
Notas: [1]http://www.robertounger.com/pt/wp-content/uploads/2017/01/o-que-a-esquerda-deve-propor.pdf [2]https://diplomatique.org.br/nancy-fraser-o-neoliberalismo-nao-se-legitima-mais/ [3]https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/06/aprovacao-de-bolsonaro-segue-estavel-apos-prisao-de-queiroz-aponta-datafolha.shtml e https://veja.abril.com.br/politica/pesquisa-bolsonaro-cresce-no-nordeste-em-aprovacao-e-intencoes-de-voto/ [4]O auxílio emergencial é um programa governamental de transferência de renda para o período da pandemia da covid-19. Até o momento, está prevista a transferência de 5 (cinco) parcelas de R$ 600, 00 (seissentos reais). Até o fim do mês de junho, mais de 60 milhões de brasileiros haviam recebido pelo menos uma parcela do benefício. [5]https://twitter.com/antrologos/status/1275898884850622466 [6]https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-revolta-conservadora/
Roberto Dutra
(1981)
Doutor em sociologia pela Humboldt Universität zu Berlin. Professor do Laboratório de Gestão e Políticas Públicas (LGPP) da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), Rio de Janeiro, Brasil