Sal da Terra – “Joana”

Joana vence todas as manhãs a disputa com o despertador, seis, oito, cinco minutos antes do ringtone pensado a milhares de quilómetros de distância num escritório com máquinas de vending, brinquedos, já ela se alça da cama, isso é das consumições, sussura-lhe a mãe ao telefone (tantas vezes que já enjoa, mantra de uma vida toda), e Joana nem está certa de que a palavra exista, nem sequer fica muito afobada com o assunto; afinal, é mais amiga de contas e folhas de cálculo, sabe quase tudo sobre células, somatórios e fórmulas, só a fórmula para uma vida melhor é que.

6:57 da manhã e Joana já está a pé. Os dias encavalitam-se uns por cima dos outros, fazem peso cabelos brancos pés de galinha, fazem a mossa a que Joana nem sequer dá crédito, Joana-só, Joana que se despacha, antes das 7.23 senta-se ufana em frente à tigela dos cereais que lhe deram na repartição por ocasião do último aniversário, vê lá, não comas tudo de uma vez que as solteironas nem sequer têm quem lhes dê uma palmada nas costas quando se engasgam, e Joana sorri amarelo, da cor do disco solar que acaba de levantar-se, põe-te em guarda, garota, vem aí mais uma jornada de vai-vem, labuta, respiração-aflita-logo-acima-da-linha-de-água, claro que tudo isto é metáfora, alusão, mas repisam-se as ideias à vontade da dona: Joana sente-se melhor na presença de números, “1 + 1 = 2”, sempre foi e sempre será, “solteirona não tem quem lhe grite São Brás quando o desjejum se amarfanha nos esófagos”, é matemático e tudo isto bate muito certo, melhor do que se fosse cronometrado por um relógio daqueles dos suíços, que medem Bolts e Lewis e Obikwelus, e ainda por cima este ano nem sequer há Olímpicos, entretém que tantos laços ajudou a apertar entre Joana e os sobrinhos, mais um recorde em directo na RTP2, a felicidade à distância de uma transmissão da madrugada, são 8.47 e Joana já entrou de pé esquerdo no open space de todos os dias, olha lá, mas no sítio onde tu moras há assim muitos pretos? Deixa de sorrir, como se o sol já se tivesse posto.

19.18. Joana balança na carruagem a caminho de casa. O apartamento pertence a uma terra que já não existe, foi-lhe usurpada na reorganização das freguesias, trocaram-lhe a Reboleira do Estrela, do Bingo, da Clínica de Santo António, por mais uma metáfora. Sem sair do sítio, vive hoje nas Águas Livres, um tudo-nada à margem da capital e dos seus capitais. E logo Joana, que prefere as contas acima de tudo. Ainda tem de passar no super, para comprar coisas para a sopa, se fosses orientada, fazias comida logo para a semana toda, mas eis uma mulher que não se dobra a essas consumições. Chegará o dia em que não irá pensar em farnéis calotes horas de ponta tupperwares por lavar, o dia inteiro e limpo, de inicial terá pouco porque Joana pensa nele a todas as horas, a todas as células de somar. E há-de ser assim para todos, é a primeira frase que lhe ouvimos neste relato. A repartição faz-se riso escarninho, mas por dentro. É uma forma como outra qualquer de apodrecer.

Iniciada, no número de Inverno de 2019, a presente rubrica visa, mediante solicitação, a
colaboração de escritores e poetas com pequenas crónicas/apontamentos do quotidiano.
A Redacção