Testemunhos da História – Caminhos da Liberdade: Um percurso histórico

Em memória:
Francisco Salgado Zenha

A ignorância e o medo: dois pilares em que, na década de 1930, Salazar e a sua gente haviam de assentar a governação da Pátria durante perto de meio século. A miséria contentinha, vigiada, de uma casa portuguesa, com certeza. Por um lado, a força do desconhecimento da realidade do país, com a censura de todos os meios de informação pública. Por outro, o controlo da vida social, por um eficiente aparelho policial, com um modelo nuclear oriundo da Alemanha nazi, “legalizado” ad hoc: a polícia política majestática, com tribunais e cárceres privativos, as penas maiores com a prisão preventiva contada apenas por metade, as medidas de segurança de internamento indefinidamente prorrogáveis, o desterro, o mundo concentracionário dos tarrafais africanos. Todo um arbítrio institucionalizado, na pirâmide de uma justiça política que tinha por vértice, até ao final da Segunda Guerra Mundial (1945), tribunais militares especiais em Lisboa e no Porto, e, a partir de Outubro de 1945 até ao fim do regime (Abril 1974), tribunais especiais, civis, os tribunais plenários criminais, com legislação que expressamente lhes era destinada ou adaptada das leis gerais, que funcionavam naquelas duas comarcas (Boa Hora e São João Novo) e que integravam o sistema de justiça privativo da polícia política (PVDE/PIDE/DGS).

A questão do indivíduo perante o Estado, quanto à sua liberdade de movimentos e à restrição ou privação destes, regeu-se desde sempre, no nosso direito, pelo princípio de que essa liberdade só podia ser limitada por ordem de um juiz. No entanto, à obvia consequência do poder absoluto que o rei detinha sobre os seus súbditos, no absolutismo monárquico, foram acrescendo as disposições especiais em que a intervenção do juiz era substituída por averiguações policiais ou administrativas. Até se chegar à criação da Polícia de Estado, a todo-poderosa Intendência da Polícia da Corte e do Reino do Marquês de Pombal, de Pina Manique e de Dom José, em 1760.

A instrução criminal, na medida em que é a fase processual na qual se procede à recolha da prova, se apuram os indícios de culpa, constitui a pedra de toque da justiça penal, condicionando todo o processo e a decisão final. É natural, portanto, que as leis do processo penal vão reflectindo os avanços e recuos que a sociedade vai conhecendo, e que elas constituam até um alvo privilegiado de combate político, como foi acontecendo entre nós no século XIX, com a manifesta oscilação, no controlo do poder sobre a instrução criminal, entre o modelo judicializado e o modelo policializado, ou seja, entre o juiz e o polícia. E que culminou já na transição para o século XX, com a criação do Juízo de Instrução Criminal (JIC) pela Ditadura de João Franco, porta escancarada à substituição do juiz pelo polícia – com a reação pública e os danos colaterais que se conhecem, o desfecho trágico para a família real e o fim do regime monárquico.

A tortura como meio de prova

No Antigo Regime, na Europa Continental, a regra na instrução do processo penal era o uso da tortura judiciária, regulamentada por lei (que, entre nós, se lhe referia como tormentos, ou tratos do corpo, donde os maus tratos), para conseguir a confissão do suspeito, a rainha das provas, fossem as culpas confessadas verdadeiras ou inventadas. Era assim que os juízes reais, os da justiça comum, podiam mandar torturar os presos, sem problemas de consciência, porque era a própria lei que o prescrevia. Quanto aos juízes eclesiásticos, todos temos uma ideia do seu modus operandi, que se estendia, além da instrução, até à fase da execução da sentença: pertence-nos a vileza de, pela via do Santo Ofício, termos legado ao património judiciário da Humanidade a expressão Auto da Fé, em que valia tudo, até deixar em brasa o corpo do supliciado, numa morte assistida por multidões.

A Grande Revolução Francesa e os Direitos Humanos

A partir de finais do século XVIII, porém, com a Grande Revolução Francesa e o liberalismo ascendente, as relações do indivíduo, agora cidadão, com o Estado conheceram, como é sabido, substanciais alterações, desde logo na instrução dos processos criminais, com a tortura a ser declarada ilegal. Era a questão da liberdade individual e das liberdades públicas, o primeiro dos objectivos da famosa trilogia dos revolucionários de 1789.

Entretanto, a Inglaterra soprava-nos o exemplo a seguir: uma instrução contraditória, civilizada, oral e pública – em que o juiz se limitava a arbitrar e julgar – de todo alheia à instrução que, no Continente, era inquisitória, escrita e secreta. Mas ainda foi necessário que passassem cem anos para que o arguido pudesse ter conhecimento do processo escrito e constituir advogado, com a possibilidade de contraditar o Ministério Público, senhor absoluto dos autos. Uma longa e áspera luta na defesa de direitos que hoje temos por adquiridos e irrenunciáveis.

As novas ideias que nos chegavam de França, nas mochilas dos soldados napoleónicos, condicionaram o processo penal do liberalismo, logo na Reforma Judiciária de Mouzinho da Silveira, ainda nos Açores (1832), e depois (1841) na Novíssima Reforma Judiciária, que se manteve até 1929. Sem atingir o grau de isenção que o sistema inglês permitia, o processo penal napoleónico introduziu a figura do juiz de instrução, cuja independência visava garantir, desde logo, que a tortura não era utilizada, cabendo a decisão da matéria de facto a um júri, num julgamento em que o juiz instrutor não tinha qualquer intervenção.

A dignificação da instrução criminal, resgatando-a do modelo policial do Juízo de Instrução Criminal franquista, com a reanimação da instituição do júri, foi o objectivo da República, em 1910, no que ao processo penal respeita – embora logo em 1918 tenha havido uma recaída, a favor do modelo policial, com a Ditadura de Sidónio Pais.

A derrapagem para a Ditadura e o Fascismo

O movimento militar de 28 de Maio de 1926 esteve na origem do regime que, na década de 1930, sob os ventos que sopravam da Alemanha nazi e da Itália fascista, impôs, mediante o reforço dos poderes das polícias e a domesticação dos tribunais, o modelo autoritário que se manteve até Abril de 1974. Militarizou a justiça política, incumbindo um tribunal de excepção, o Tribunal Militar Especial, do julgamento dos processos de conteúdo político e social cuja instrução cabia a polícias ad hoc, que se completavam “na sua acção de defesa da sociedade organizada e do Estado”. São desse tempo as frequentes penas de desterro com prisão no lugar do desterro, por largos anos, assim como a criação do Tarrafal, a deportação para Timor e outras colónias, a Revolta dos Marinheiros por ocasião da guerra de Espanha, as greves da Marinha Grande.

Em Outubro de 1945, finda a Segunda Guerra Mundial, o sistema repressivo da justiça política foi reformulado: o Tribunal Militar Especial foi substituído por um outro tribunal especial, o Plenário Criminal, funcionando em Lisboa e no Porto na orgânica dos tribunais criminais comuns. No entanto, regendo-se por legislação própria, ou adaptada da legislação comum, o Plenário passou a ser a antena judiciária do vasto sistema de justiça privativa da polícia política, constituído pelo aparelho repressivo legislativo e judiciário, que perseguia, julgava e condenava os resistentes ao regime ditatorial que durou até 25 de Abril de 1974.