Alberto Ferreira: um olhar histórico-sociológico sobre o romantismo português

Para Alberto Ferreira (1920-2000), o romantismo oitocentista português é um movimento que reflecte os fluxos e refluxos no processo de implantação do liberalismo em Portugal, ao longo do século XIX, pelo que a sua compreensão implica a análise das articulações dialécticas entre o fenómeno literário e a génese e o desenvolvimento daquele movimento político, sobretudo entre 1834 e 1865. Nesta perspectiva, «o movimento romântico equivale à revolução cultural do liberalismo»[1], ou seja, o romantismo português insere-se no processo contraditório de luta do liberalismo pela implementação da modernidade contra a mentalidade arcaica e obscurantista até então dominante, tendo a sua expressão política coetânea com o advento do absolutismo miguelista (1828-1832), após as experiências liberais de 1820 e 1826, e que daria origem à guerra civil com a vitória dos liberais em 1834. Contudo, após, as iniciativas reformistas no pós-miguelismo ou as propostas de revolução cultural na educação pelos românticos liberais, num país dominado pelo analfabetismo, processa-se um retorno a práticas políticas retrógradas, como se a tradicional mentalidade casticista e caceteira continuasse a contaminar os rumos da nossa adiada modernidade: «a transformação da mentalidade que […] só muda na estrutura do tempo longo […] arrastava-se agora numa lentidão enervante, para quem sonhara um mundo novo, uma nova sociedade»[2]. Apesar das iniciativas de Garrett e Herculano, entre outros, em prol de uma revolução democrática no ensino, a aliança entre «a velha classe parasitária da fidalguia» e o «burguês liberalista» iria bloquear a instauração duma mentalidade moderna em Portugal, como é visível na manutenção de um ensino elitista e com métodos abolorecidos. Num país dominantemente rural e com cerca de 95% de analfabetos, uma herança do Antigo Regime, os nossos românticos, desde Garrett a Antero de Quental, passando por Herculano e Castilho, foram, enquanto herdeiros do iluminismo setecentista (Luís António Verney e Ribeiro Sanches), acérrimos defensores da edução e instrução pública, a fim de se criarem as condições socioculturais para que o povo pudesse passar da situação de súbdito à de cidadão. Contudo, as fracções da burguesia liberal oscilaram entre o desejo de mudança no aparelho educacional e a paralisia quando atingiam o poder. Em síntese, poderíamos reconhecer que o movimento romântico português, no essencial, surge da consciência, ora optimista ora agónica, do intervalo inevitável entre um mundo que morre (o já-não) e um mundo novo que está para nascer (o ainda-não). O presente será por isso um metafórico tempo de exílio, de inquietação esperançosa ou propiciador de uma consciência infeliz, quer pelo apelo a um mítico passado de valores e afectos, quer pela saudade da Pátria futura. Assim se compreende a oscilação romântica entre um passado idealizado (a medievalidade, em Herculano, por exemplo) e a apologia da modernidade (o culto da inovação, a reforma das mentalidades e o espírito crítico). O mal-estar romântico, vago ou objectivado, radica-se, pois, nesta tensão não superada entre os murmúrios dos fantasmas do passado e a vontade de futuro, entre o desencanto e o encantamento.

Alberto Ferreira distinguiria três fases no romantismo português, uma herdeira do Iluminismo, de feição apolínea, outra, na vizinhança do romantismo alemão, dionisíaca, privilegiando o sentimentalismo em oposição ao racionalismo e, posteriormente, uma terceira de cariz social que iria preceder o realismo, com Eça de Queirós. Na primeira, destaca a obra de Almeida Garrett, colaborador do Setembrismo, a ala radical do liberalismo, desde 1836; na segunda, Herculano que, apesar da sua postura de ruptura no plano político-cultural, manifesta na sua poesia ou no romance histórico, tal o caso de Eurico, o Presbítero (1844), uma poética romântica fundada no pessimismo agónico, na consciência infeliz, no misticismo, no pitoresco medieval e que iria inspirar posteriormente o sentimentalismo convencional dos ultra-românticos, e, na terceira, com Antero e as suas Odes Modernas (1865), uma tendência para uma literatura que, recusando o conceito de «arte pela arte», contribuísseA Poesia moderna é a voz da Revolução»), para a eclosão duma revolução cultural e política, perspectiva que se iria projectar posteriormente nas obras de Guerra Junqueiro, Guilherme de Azevedo e Gomes Leal. O romantismo português oitocentista, enquanto objecto de análise, pela sua complexidade num ciclo longo ou pelo modo contraditório como interpelou e foi interpelado pelos movimentos sociais e políticos coetâneos, implicaria, portanto, um rigor hermenêutico que tivesse em conta a dinâmica sociocultural e classista da sua gestação e história. Entre os estudiosos da cultura portuguesa, Alberto Ferreira destaca-se, por uma metodologia sociológica, integrando uma conceptualização de Gramsci (a noção de intelectual orgânico de uma classe), de Lukács (a visão do mundo inerente a um grupo social e estruturadora dum movimento estético), de Lucien Goldmann (o conceito de estrutura significativa) e optando por uma análise dialéctica do facto cultural, segundo a qual superar pressupõe simultaneamente destruir e conservar, no processo de emergência dum novo movimento cultural. Criticado por desprezar a especificidade estética duma obra, riposta, explicitando a sua perspectiva relativamente à história da cultura: «Quando me ocupo do Romantismo enquanto movimento global a obra serve-me de indicador e de exemplo, não constitui fim em si mesma. Daí que a síntese surja como forma típica do juízo»[3]. Aliás, para o autor, o Romantismo não seria apenas um movimento estético, mas um amplo fenómeno cultural (sociopolítico, pedagógico e filosófico), inevitavelmente correlacionado com a emergência da burguesia enquanto actor histórico dominante na sequência da Revolução Francesa (1789) ou, no caso português, da revolução liberal vitoriosa em 1834. Como refere, trata-se de «investigar a estrutura global em que a obra foi criada, as circunstâncias de tempo e de lugar que a influíram, as opções que se colocaram na mente dos artistas, as formas externas que agiram, para avaliar decisivamente a marcha e o resultado do processo de desenvolvimento de uma forma artística e cultural»[4].

De facto, os estudos sobre arte ora se orientam para a análise da especificidade estética de cada obra, apagando-se ou menorizando as relações contextuais socioculturais e políticas em que se insere, enquanto factor significante para a sua compreensão, ora, pelo contrário, tendem para a sobrevalorização das condições socioculturais e políticas que estiveram na génese e desenvolvimento do facto estético. Em Portugal, desde a revolução liberal de 1820 até à Regeneração (1851), período em que se dilui a oposição entre moderados (cartistas) e radicais (setembristas), culminando no rotativismo e no fontismo, o horizonte de expectativas numa sociedade mais justa e igualitária, implícita nas rebeliões populares reprimidas da Maria da Fonte e da Patuleia, em 1846-47, e que inspirara alguns intelectuais do movimento romântico, declinou e converteu-se por isso num desencanto que teria expressão literária. O fim do Antigo Regime não acabou com os privilégios de uma minoria, apenas alterou a sua composição social com os novos «barões», financeiros, agiotas e políticos corruptos, ou uma grande burguesia que beneficiou dos bens nacionalizados de instituições que foram o esteio do Antigo Regime, tal o caso das suprimidas Ordens Religiosas (1834), vendidos em hasta pública. Garrett, um esclarecido ideólogo da classe média, embora sendo contra o nivelamento social, nos seus discursos parlamentares, em 1837, no período Setembrista, não deixa de alertar para a perversão do ideário liberal, se persistisse na perpetuação dos privilégios típicos da antiga aristocracia, pois ao povo seria indiferente ser explorado pelos fidalgos do absolutismo ou pelas elites liberais. Esta crítica será retomada, de um modo ainda mais radical, com laivos anti-capitalistas, em Viagens na minha Terra (1846): «Andai, ganha-pães, andai; reduzi tudo a cifras, todas as considerações deste mundo a equações de interesse a equações de interesse corporal, comprai, vendei, agiotai. – No fundo de tudo isto, o que lucrou a espécie humana? Que há mais umas poucas de dúzias de homens ricos. E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico?»[5].

Mesmo os propósitos de reforma democrática do ensino ou a instauração do plebiscito universal, na herança do vintismo, seriam contrariados pelas fracções da burguesia liberal quando instaladas no poder. Alberto Ferreira, ao estudar a génese do nosso romantismo, a partir da revolução vintista, destaca Almeida Garrett, pela sua defesa duma arte comprometida com a acção política e pela sua acção pedagógica na criação duma nova mentalidade «democrática». Por outro lado, ao recusar a oposição dogmática entre o Classicismo (a razão) e o Romantismo (o sentimento) e ao combiná-los dialecticamente, Garrett seria o paradigma dum «romantismo iluminista», pois embora aberto à nova sensibilidade romântica a que não seriam alheios os seus dois exílios em França e em Inglaterra, na fase de ascensão do miguelismo, não abdica nunca da racionalidade instrumental das «Luzes». Seria tanto o intelectual orgânico de uma burguesia ascendente, interessado na consolidação duma elite intelectual alternativa à aristocrática, como um contraditor dos objectivos burgueses meramente orientados por valores argentários ou pelo exercício autoritário do poder, enquanto factores de reprodução duma nova oligarquia, desvirtuando a ética liberal, tal como se ia verificando, após a queda do Setembrismo. Por outro lado, o seu nacionalismo estético, que se manifestou tanto na defesa duma literatura inspirada na nossa poesia popular de tradição oral, de que a publicação do Romanceiro (1843 e 1850), foi um elemento relevante, como na sua actividade para a refundação dum Teatro Nacional, seria, tal como labor historiográfico de Herculano, a tradução no plano cultural da noção política liberal de «soberania da nação».

Partindo duma investigação aprofundada sobre a chamada polémica do «Bom Senso e Bom Gosto» ou «Questão Coimbrã» (1865-1866), Alberto Ferreira publicou 4 volumes, entre 1966 e 1970, com os textos fundamentais desse evento, em colaboração com Maria José Marinho, tendo realçado que esta polémica teria aberto as portas da nossa contemporaneidade. Neste confronto entre a juvenília rebelde de Antero de Quental e Teófilo Braga e a teocracia literária de António Feliciano de Castilho com a sua «Escola do Elogio Mútuo», um liberal acomodado às benesses da Regeneração, ou seja, um antagonismo extremado entre aqueles que queriam inovar crítica e criativamente a literatura romântica e os que, sitiados na fortaleza oficiosa do regime, procuravam bloquear qualquer alteração significativa no statu quo cultural, assente nos rituais burgueses do sentimentalismo romântico, a puxar a lágrima fácil das damas, nos saraus burgueses, no dramalhão histórico, na morbidez convencional dos temas macabros e no melodrama. Enfim, tudo aquilo que havia tonificado o espírito romântico, enquanto expressão cultural do movimento liberal, resvalava para formas estagnadas e vazias de conteúdo. A contracorrente desta literatura, que exprimia a paz podre da Regeneração, as Odes Modernas surgiam como uma tempestade nas águas pantanosas da cultura protocolar do regime vigente.

A segunda geração romântica, na década de 40, destacou-se, em relação à anterior, por um enfeudamento a um medievismo cenográfico, inspirado em Herculano, pela exacerbação dum sentimentalismo retórico, ao pessimismo e à patética atracção pelo funéreo. A partir da Regeneração a acomodação político-cultural ir-se-á acentuando, oscilando a literatura entre os saraus burgueses com xácaras e solaus e o dramalhão miserabilista, fruto de uma filantropia piegas. Como afirma Alberto Ferreira, estamos na época do pranto. Os escritores românticos perdem a sua dimensão de cidadania, que fora cara à primeira geração liberal, e tornam-se figuras servis em relação ao poder político da Regeneração que lhes retribui simbólica e materialmente. Neste contexto de quietação e acomodação culturais cria-se uma teia de cumplicidades entre os escritores oficiais do regime, regida pela figura emblemática de Castilho, cujo capital simbólico era uma condição sine qua non para a promoção dos noveis escritores. É neste ambiente de bloqueamento cultural e obscurantismo que despontará a geração rebelde de 65, através da qual o Romantismo se torna social, implicando uma arte que consubstanciasse a dimensão futurante de uma sociedade mais justa e igualitária, superando o «filantropismo piedoso» do ideário socialista da década de 50. Antero defenderá a independência do escritor, o espírito crítico, a liberdade criativa e a «missão revolucionária da poesia», atmosfera que irá culminar nas «Conferências Democráticas do Casino» (1871), onde Eça assinala já a emergência do Realismo. Mas, para Alberto Ferreira, os limites desta geração de ruptura eram balizados pelo atraso das nossas forças produtivas, um proletariado diminuto, a ruralidade ou o analfabetismo.

Alberto Ferreira foi, portanto, um autor empenhado em desmontar, através dos seus estudos oitocentistas, as forças materiais e mentais de bloqueio obscurantista que impediram, desde a revolução liberal até ao 25 de Abril de 1974, uma verdadeira cultura de cidadania democrática.

Daí também o seu esforço no levantamento do material pedagógico do século XIX, como modo de explanar os desfasamentos entre os múltiplos projectos educativos para reformar o ensino e a sua execução. A leitura da sua obra sobre a cultura oitocentista não é, assim, um mero exercício de erudição, mas, como realçou, um modo do passado nos interpelar no presente, pois o que poderia ter sido no passado, enquanto projecto progressista, é sempre uma potência futurante.

Notas:
[1] Pensar Portugal na objectividade da sua História Cultural, Separata da Revista Economia e Socialismo, Junho, 1979, p. 12.
[2] Ibid., p. 17.
[3] «Cem anos depois… (1865-1969)», Bom Senso e Bom Gosto, vol. III, 2ª ed. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, p. 16.
[4] Estudos de Cultura Portuguesa – Século XIX, Lisboa, 2ª ed., Litexa, 1998, pp. 77-78.
[5] Viagens na minha terra, Lisboa, Estampa, 1977, p. 96.