A prostituição e as maneiras de combatê-la
Em 1921, Alexandra Kollontai, na Terceira Conferência de toda Rússia de Líderes dos Departamentos Regionais das Mulheres, proferiu um importante discurso sobre a prostituição e as maneiras de combatê-la.
É um texto de grande interesse sobretudo pela espantosa atualidade da análise sobre as causas deste flagelo que se abate, por tempos imemoriais, sobre os corpos e as vidas das meninas e das mulheres.
Hoje, como ontem, a questão de fundo mantém-se inalterada: como combater a prostituição? Como enfrentar e abolir esta expressão lacerante de exercício de violência?
A prostituição tem rosto feminino e de classe. São as mulheres e as meninas a esmagadora maioria das pessoas prostituídas. Estima-se que em todo o mundo existam entre 40 a 42 milhões de pessoas na prostituição, incluindo mais de 2 milhões de crianças. Na sua grande maioria (80%) são mulheres e raparigas menores. 75% têm entre 13 e 25 anos. 90 a 95% são dependentes de um proxeneta, e os clientes são quase todos homens.
Na Europa Ocidental, 1 a 2 milhões de pessoas envolvidas na prostituição, na sua maioria migrantes, são vítimas de tráfico de seres humanos. O tráfico de pessoas também se escreve sobretudo no feminino. 2/3 das vítimas são mulheres e raparigas, traficadas sobretudo para exploração sexual e prostituição (98%). 50% das vítimas são menores de idade. Só para a Europa ocidental estima-se que sejam traficadas anualmente 1 milhão de novas mulheres e jovens passando 90% delas por bordeis em Espanha, Itália, Grécia, Alemanha, Bélgica, Holanda, Suíça e Portugal.
Estes números e factos dão-nos uma ideia vagamente aproximada do significado deste sistema organizado de exploração, mas ainda assim ficam aquém da sua verdadeira dimensão.
Este é um negócio em franca expansão. Não sendo novo apresenta hoje características que derivam das profundas alterações ocorridas no sistema capitalista nas últimas décadas: na verdade desde a década de 90 do século passado, a prostituição e o tráfico de mulheres e crianças para esse fim começou a assumir proporções de grande escala na sequência da industrialização e globalização da exploração sexual. Se quisermos, e citando Richard Poulin, o triunfo das políticas e dos valores neoliberais no quadro do atual processo de globalização é responsável pelo desenvolvimento da indústria do sexo e pelas suas consequências.
O sistema da prostituição, desumano e predador foi definitivamente submetido às regras do mercado: massificou-se, diversificou-se, expandiu-se e adaptou-se às novas tecnologias.
Transformou-se num negócio global altamente lucrativo cujos lucros estimados, segundo o parlamento europeu, rondam os 186 mil milhões de euros, um montante mais elevado do que a totalidade das despesas militares mundiais. Na Europa, cada mulher pode render a um proxeneta 100 mil euros anuais. Um negócio apetecível, portanto, com muitas possibilidades de crescimento, que tem servido para o branqueamento de capitais e para alimentar a tríade dos negócios criminosos, muito especialmente o crime de tráfico de pessoas.
Os corpos das mulheres e meninas foram assim reduzidos à condição de produto, de mercadoria, que pode ser comprado, vendido, trocado, revendido, descartado. São a matéria prima, acessível, barata e em quantidade q.b. que alimentam este negócio. Provém de contextos socioeconómicos, culturais e pessoais marcados pela pobreza e a fome, o desemprego e a precariedade, a insegurança e a dependência económica, a falta de oportunidades no acesso à educação e à formação profissional, a migração e o racismo, a desigualdade e as práticas discriminatórias contra as mulheres, o abuso sexual, as agressões físicas, entre outros.
Esta é a verdade que muitos procuram esconder. Conhecê-la destrói as teorizações que procuram convencer a opinião publica de que estamos perante uma “profissão” que não bastava dizerem ser “a mais velha do mundo” para ser ainda uma como outra qualquer.
Em Portugal vai-se fazendo despudoradamente o caminho da regulamentação da prostituição de forma organizada e coordenada. Um verdadeiro “lobby” pró-proxenetismo procura alargar a sua teia de influência – dizem – em nome dos direitos humanos dos “trabalhadores do sexo”.
Exigem que a “prostituição deve ser reconhecida como profissão com os direitos consignados ao mundo do trabalho” e fazem-no na base de uma única proposta: a alteração do enquadramento jurídico português (artigo 169º do Código Penal) no sentido da regulamentação da prostituição.
Os argumentos em presença não são novos, nem avançados, nem progressistas, mesmo quando trasvestidos de um certo modernismo. São os mesmos usados em todo o mundo com os mesmíssimos resultados: mãos livres para os proxenetas e para os traficantes de pessoas. São argumentos que tratam no essencial de branquear o carácter intrinsecamente violento da prostituição, glamorizando-a, tornando-a inócua e, portanto, aceitável. Fazem-no introduzindo novos nomes para as coisas: a prostituição é agora “trabalho sexual”; as pessoas prostituídas são “trabalhadores e trabalhadoras do sexo”, da mesma forma, os proxenetas e donos de bordeis são “proprietários de negócios” e “parceiros comerciais”. Só os clientes se mantêm assim mesmo, esses eternos desconhecidos nunca responsabilizados.
Como recentemente se veio a provar pela entrada na Assembleia da República da Petição nº18/XIV/1ª – «Legalização da Prostituição em Portugal e/ou Despenalização de Lenocínio, desde que este não seja por coação», é claro e inequívoco que o que se pretende não é qualquer proteção das pessoas prostituídas. Antes as usa, e usa a sua condição, como instrumento ao serviço dos proxenetas para o transformar numa atividade legítima descriminalizando o lenocínio. É, aliás, uma realidade que a 1ª peticionária não esconde, ao assumir a sua condição de proxeneta.
Não esqueçamos que em Portugal a prostituição não é ilegal. Qualquer pessoa se pode prostituir sendo que sobre ela não recai qualquer penalização. Ao evocar nesta petição a «legalização da prostituição» significa tão só legalizar o lenocínio. O quadro jurídico português, inspirado nos princípios abolicionistas, não criminaliza a conduta das pessoas prostituídas, mas o lenocínio, ou seja, “quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomente, favoreça ou facilite o exercício da prostituição por outra pessoa.
O MDM – Movimento Democrático de Mulheres enviou à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e à Comissão de Trabalho e Segurança Social da Assembleia da República a sua posição sobre o objeto da referida petição, sua proposta de articulado para uma iniciativa legislativa, e relação com os comentários e informações dadas pela 1ª peticionária, na audição a 4 de junho de 2020 na 1ª Comissão. O documento pode ser consultado em https://www.mdm.org.pt/mdm-envia-ar-posicao-sobre-o-lenocinio-face-peticao-que-reclama-sua-despenalizacao/. Nele o MDM faz a denúncia, desmonta os argumentos dos proxenetas e insta o Parlamento a decidir a favor das mulheres e não dos proxenetas. A sua leitura é imprescindível.
Os últimos anos foram marcados por uma profunda crise económica e social sem precedentes e também sem precedente foi o crescimento do número de mulheres e jovens na prostituição.
O atual contexto da pandemia Covid-19 está a ter um impacto terrível e desproporcional na vida das mulheres, tornando-as extremamente vulneráveis a múltiplas formas de violência na família, no trabalho e na sociedade.
Muitas organizações alertam para o expectável aumento da prostituição e do tráfico de mulheres.
As mulheres não podem esperar mais cem anos.
É preciso agir já combatendo o sistema prostitucional em todas as suas redes e impedindo a adoção no nosso País de quaisquer políticas de descriminalização do lenocínio.
Exigindo que a prostituição seja assumida como uma forma de violência, reconhecendo que esta é uma realidade indissociável das desigualdades sociais e das desigualdades entre mulheres e homens que persistem na sociedade e que são causadoras de intoleráveis formas de violência, opressão e agressão da dignidade e dos direitos das mulheres e das crianças.
Cumprindo a Constituição da República que garante a todas as pessoas o direito à dignidade, saúde, segurança social e igualdade e, como tal, o tráfico de pessoas e o dito “trabalho sexual” não é compatível com tais direitos fundamentais nem com as convenções ratificadas pelo Estado Português, que claramente sancionam a exploração na prostituição.
Estendendo à prostituição a determinação da não valorização do consentimento tal como existe em matéria de tráfico de pessoas, ou da violência doméstica.
Exigindo políticas comprometidas com o objetivo do combate à prostituição nas suas causas, na penalização do crime e no apoio e proteção às vítimas. Políticas que promovam a autonomia e emancipação das mulheres, desde logo o acesso ao trabalho com direitos e a salário igual.
Criando um Plano de Combate à Exploração na Prostituição, que garanta, nomeadamente, o acesso imediato das pessoas prostituídas a apoios que lhes permitam a reinserção social, profissional e o acolhimento dos filhos, abrigo, proteção e assistência psicológica, médica, social e jurídica.
Dizendo aos homens prostituidores de mulheres, que o dinheiro que pagam não lhes retira a responsabilidade da violência que estão a praticar. Eles também são culpados do drama que se abate sobre estas mulheres. Como Kollontai tão bem descreveu “Um homem que compra os favores de uma mulher não a vê como camarada ou pessoa com direitos iguais. Ele vê-a como uma criatura desigual de uma ordem inferior que vale menos. O desprezo que ele tem por ela afeta sua atitude com todas as mulheres“.
As mulheres não estão sós
Em todo o mundo cresce o movimento abolicionista. Em Portugal o Movimento Democrático de Mulheres tem dado um combate, histórico, corajoso e eficaz às tentativas de normalização e regulamentação da prostituição no nosso País. Tem sido capaz de ampliar a frente abolicionista, mobilizar forças e gerar unidade em torno da defesa dos direitos e da dignidade das mulheres. De todas as mulheres, prostituídas ou não. E prosseguirá esta luta, não obstante o silenciamento cúmplice que lhe é imposto.
Porque este é o caminho e o combate que, não sendo fácil, é justo, necessário e urgente.
Por ele vale a pena lutar.