Sal da Terra – “O ROSTO DAS MULHERES”

O Livro do Eclesiastes é comummente considerado como uma das mais belas peças literárias alguma vez escritas, quer pela acepção poética das imagens quer pelo alcance da sabedoria existencial que encerra. Aquilo que o seu autor, que se diz experimentado, filho de rei e pregador, tinha para aconselhar era muito belo e profundo. Nesse breve livro, que definiu o afã da vida como vaidade das vaidades, tudo é vaidade, estão condensados pensamentos sobre a conduta humana que vieram a moldar a Cultura Ocidental ao longo de mais de vinte e cinco séculos. Mas no meio das sábias frases sobre a conduta dos homens, quando se pensava que o Eclesiastes falava para o género humano, descobrimos que estávamos enganados, o filho do rei estava a dirigir-se apenas a uma parte da Humanidade.

Só descobrimos essa exclusão quando se atinge o versículo 26 do Capítulo Sétimo, e percebemos que afinal, até aí tinha havido uma omissão paradoxal, tão opaca quanto ofensiva, porque as mulheres não eram destinatárias do seu discurso. Chegado à enumeração dos grandes embates dos homens com a busca da razão das coisas, escreve o Eclesiastes sobre os motivos do desconcerto do mundo: “Achei que a mulher é coisa mais amarga do que a morte, porque ela é um laço e o seu coração uma rede, e as suas mãos umas cadeias. Aquele que é agradável a Deus, fugirá dela, mas o pecador será assaltado por ela…” Prosseguindo, até ao versículo 29, não restam dúvidas, a mulher, nas palavras do rei sábio, não passa de uma de entre as várias perversões que assaltam a vida dos homens.

Estamos a falar de um texto que provém da Idade do Bronze, cuja beleza não se discute, mas a filosofia de género provém do mundo arcaico da antiga pastorícia. Hoje, em pleno século XXI, estamos a anos luz de distância em relação às condições antropológicas, sociais, económicas, políticas, desses tempos em que os pastores falavam directamente com Deus e os anjos. As populações sedentarizaram-se, entregaram-se ao cultivo da Terra, sulcaram os mares e descobriram novos continentes, criaram civilizações mercantis, sociedades industriais, atingiram um conhecimento assinalável do corpo humano e dos comportamentos do espírito, descobriram mesmo que é difícil distinguir onde começa um e outro, aprenderam a ler, descreram em Deus, colocaram o rosto e o poder dos seres humanos no centro do Universo. Nos dias que passam, estamos mesmo à beira de um salto civilizacional mais prodigioso do que a passagem da cultura arcaica da pastorícia ao mundo que criou a imprensa, as enciclopédias e as vacinas, e se prepara para partir para o Espaço. E, no entanto, o olhar do Eclesiastes sobre as mulheres só se alterou, gradualmente, e por lutas titânicas das sufragistas e feministas, desde há um século. A História recente ensina que a sua emancipação foi gémea da libertação dos escravos. Honra lhes seja feita.

Por isso, hoje, é uma alegria ver como em amplas regiões da Terra as mulheres conseguiram quebrar as cadeias da invisibilidade, como se fazem respeitar, honrar, como interpretam as tarefas da vida em igualdade com os homens. Mas é recente, longe de estar generalizada essa conquista, e, sobretudo, existe o longínquo olhar do Eclesiastes que ainda se prolonga, de forma subterrânea. O caminho é para diante. Louis Aragon dizia que a mulher seria o futuro do homem. Hoje podemos dizer que só haverá futuro se ambos o fizerem de olhos nos olhos, e de mãos dadas. Ambos sabem porquê.

Iniciada, no número de Inverno de 2019, a presente rubrica visa, mediante solicitação, a
colaboração de escritores e poetas com pequenas crónicas/apontamentos do quotidiano.
A Redacção