Elas tiveram medo e foram e não foram, e vão

“A democracia (do grego demos, povo, e kratos, poder) é um regime social e político em que o poder de governar pertence ao povo, a todos os cidadãos”, lê-se num dos manuais de História do 7º ano adotado na escola pública em Portugal. “Mulheres, metecos e escravos estariam privados, em parte ou totalmente, de direitos”, mas “viveriam as mulheres à margem da pólis? Em parte, assim era, na verdade, visto que não tinham quaisquer direitos políticos nem gozavam de grande parte dos direitos civis. (…) E, no entanto, havia dois domínios em que a mulher grega era respeitada: a vida doméstica e a vida religiosa. No interior da sua casa, a mulher era a senhora dos escravos e a administradora dos bens familiares. (…) As mulheres mais pobres tinham os seus ofícios ou os seus pequenos negócios. Por outro lado, muitas mulheres dedicavam-se à vida religiosa.” E as mulheres escravas? E as que trabalhavam nos campos? E as que não possuíam ofícios e “pequenos negócios”? A naturalização da esfera privada às mulheres e da esfera pública a alguns homens obriga a escavar mais camadas, sobretudo quando os leitores são jovens de 12 e 13 anos que precisamos de mobilizar na luta pela igualdade.

Em tempos de pandemia, teletrabalho e escola à distância, o manual de História aqui em cima da mesa relembra que é longa a luta das mulheres para participarem em condições de igualdade na vida pública, e que os equipamentos públicos de educação e cultura têm um papel insubstituível na batalha quotidiana pela igualdade.

Desde a democracia ateniense muita coisa mudou, é certo, mas à parte a discussão entre a formalidade da lei e a desumanidade da prática de “ius primae noctis“, onde os senhores feudais violavam a esposa do vassalo na noite de núpcias, não restam dúvidas que o dia-a-dia das mulheres na Idade Média era marcado por múltiplas formas de violência.

Mesmo já no século XX, durante a 1ª República, os direitos políticos e civis eram negados às mulheres (e homens sem instrução e posses), o voto era censitário e capacitário; o sufrágio universal masculino era defendido por uma minoria, e o sufrágio universal feminino tinha apoio limitado no seio do movimento feminista.

Mulher no Estado Novo não existe

A ditadura agravou a opressão, submissão e exploração das mulheres. A Constituição de 1933 era clara no seu artigo 5.º, “a igualdade perante a lei envolve o direito de ser provido nos cargos públicos, conforme a capacidade ou serviços prestados, e a negação de qualquer privilégio de nascimento, nobreza, título nobiliárquico, sexo, ou condição social, salvas, quanto à mulher, as diferenças resultantes da sua natureza e do bem da família”. A igualdade era afastada em função “da sua natureza” inferior, a das mulheres. O ensino era separado para raparigas e rapazes, a 4ª classe apenas obrigatória para os rapazes, os conteúdos curriculares que reproduziam uma lógica de submissão à esfera do lar e ao marido, à obediência inquestionável, à menorização das capacidades intelectuais e físicas das mulheres. As enfermeiras e telefonistas do Estado eram proibidas de casar; as professoras necessitavam de autorização para casar e só a teriam caso o noivo tivesse mais rendimentos que ela; várias profissões estavam vedadas às mulheres, como a magistratura, aviação, forças de segurança. Inclusive, a dependência económica das mulheres tinha múltiplas expressões, as discriminações salariais estavam consagradas na lei; o marido podia ficar com o ordenado da mulher e até fazer cessar o contrato de trabalho da mulher proibindo-a de trabalhar. No plano dos direitos civis, em 1946, o direito de voto foi alargado às mulheres chefes de família, mas retirado às mulheres casadas; o código Civil de 1967 persistia na definição de família chefiada pelo marido; o divórcio no casamento católico era proibido; o direito a decidir sobre a vida dos filhos, era atribuído aos pais; para pedir passaporte e sair do país era necessária autorização do marido. O marido poderia matar a mulher se a apanhasse em flagrante adultério e a violência sobre as mulheres e as crianças não era criminalizada; os direitos sexuais e reprodutivos eram inexistentes, o acompanhamento durante o parto era privilégio das mulheres das classes mais favorecidas, os “15 dias de férias de parto” estavam na lei, mas nunca existiram na vida da esmagadora maioria das mulheres.

A definição de Teresa Pizarro Beleza compreende toda esta dimensão de negação e opressão: “A Mulher no Estado Novo não existe. Existiam mulheres de muito diferente condição económica, social, cultural e até sexual. Entre uma camponesa, uma empregada doméstica, uma operária, uma intelectual, uma prostituta e uma senhora mulher de um ministro do Governo de Salazar – que ministras não havia, as diferenças eram abissais. Em comum teriam apenas as limitações à sua capacidade que lhes eram impostas antes do mais pela Lei, mas também em larga medida pelos hábitos e convicções sociais dominantes, pelos quadros ideológicos que informavam o regime vigente e pela prática política e social do mesmo regime. (…) Não eram, portanto, cidadãs de pleno direito”.

Por tudo isto, e apesar de isto tudo

Por tudo isto, e apesar de isto tudo, a resistência desenvolvida pelas mulheres durante o fascismo, em múltiplas frentes, tem uma importância e um significado inequívoco. Das marchas pelo pão contra a fome e a miséria; por trabalho e melhores jornas, por melhores condições de vida, melhores salários e direitos; pela participação como candidatas e apoiantes nos “processos eleitorais”; pela sua libertação, pela libertação dos companheiros, das mães e dos pais, das amigas; pelo fim da guerra colonial; pelo direito a estudar, a escrever e a sonhar; pelo direito a falar e a participar nas assembleias de estudantes; por direitos sexuais e reprodutivos, pelo direito ao prazer. E a repressão teve também uma dimensão de género, muitas mulheres foram presas pela PIDE e pela GNR com os filhos, torturadas e ameaçadas sobre a sua vida, ofendidas e impedidas de estabelecer qualquer contacto com eles. Muitas mulheres contaram a forma como eram humilhadas, na tortura e durante os interrogatórios.

A partir do mês de abril, poderá ser visitada no Museu do Aljube Resistência e Liberdade, a exposição temporária Novas Cartas Portuguesas e outras lutas – mulheres e resistência, que pretende revelar e relevar o contributo inestimável de tantas mulheres, com origens e percursos de vida diferentes, que desde os anos 30 até 1974, inventaram e corajosamente concretizaram batalhas tão importantes pelos seus direitos, pela justiça social e pela liberdade.

A natureza das lutas pode ter sido diferente no tempo e no espaço, as motivações específicas e as formas de resistência também, mas todas são parte integrante do incrível processo de resistência ao fascismo e de luta pela liberdade. E mais do que ponto de chegada são ponto de partida para a conquista de direitos após o 25 de Abril de 1974, e ninguém como Maria Velho da Costa o escreveu de forma tão lúcida: “Elas fizeram greves de braços caídos. Elas brigaram em casa para ir ao sindicato e à junta. Elas gritaram à vizinha que era fascista. Elas souberam dizer salário igual e creches e cantinas. Elas vieram para a rua de encarnado. Elas foram pedir para ali uma estrada de alcatrão e canos de água. Elas gritaram muito. Elas encheram as ruas de cravos. Elas disseram à mãe e à sogra que isso era dantes.”

A mulher como sujeito jurídico, torna-se uma realidade pela primeira vez na história do nosso país com a instauração do regime democrático, as profundas transformações económicas e sociais tiveram um impacto muito profundo na condição das mulheres: o sufrágio universal, o direito à greve, salário igual/trabalho igual, igualdade no acesso a todas as profissões, o divórcio, a escola pública e o acesso às universidades, o Serviço Nacional de Saúde, direitos de maternidade. Logo em 1976, a Constituição consagra o princípio da igualdade e outros direitos fundamentais, individuais e coletivos. Muito caminho foi feito desde então, é inegável, mas muito caminho falta fazer para que a igualdade que existe na lei, exista na vida de todas as mulheres no nosso país.

Longo caminho feito, tanto por fazer

Em pleno século XXI, vinte e seis séculos depois da “mulher à margem da pólis”, tudo o que foi feito não afasta antigas, novas e múltiplas formas de discriminação e violência contra as mulheres.

As condições de participação em igualdade ainda esbarram em obstáculos formais e informais, em estereótipos e papéis de género reproduzidos na família, na escola, nos media, nas organizações.

A independência económica das mulheres ainda é negada por um modelo económico assente na desvalorização e exploração do trabalho das mulheres. Elas estão na linha da frente dos baixos salários, da precariedade, do subemprego, do desemprego, da pobreza. As discriminações salariais indiretas persistem, a violação de direitos de maternidade e paternidade, o despedimento de trabalhadoras grávidas. Apesar de avanços, o trabalho não remunerado continua a ter um impacto muito superior nas mulheres, continua a exigir muita energia e tempo, dificultando a participação das mulheres na vida pública, nas mais variadas dimensões. A pandemia agravou condições estruturais de desigualdade e discriminação.

A proteção das mulheres e crianças vítimas de múltiplas formas de violência ainda é insuficiente, a violência doméstica continua a ser assustadoramente grave, a revitimização persiste e a degradação dos serviços públicos de saúde, justiça, segurança social e educação, agrava essa vulnerabilidade.

A luta pela igualdade é de uma atualidade imensa, uma responsabilidade de cada uma e de todas, e todos, e na qual, os equipamentos públicos de educação e cultura têm, à luz da Constituição, responsabilidade redobrada neste objetivo. Os direitos das mulheres são uma dimensão fundamental da democracia, sem eles ela não existe, e nestes tempos em que está ameaçada continuemos, com passo firme e constante, a sua defesa. E a de todas nós, e com isso, a de todos.