CAPITALISMO E DEMOCRACIA – Breves Anotações

Não existe espaço para a cidadania num sistema social que se funda na desigualdade e se auto reproduz gerando desigualdades, cada vez mais violentas e insuportáveis. De facto, o mundo capitalista tem das relações sociais uma visão instrumental, quer dizer, submete toda a sociabilidade humana aos desígnios de uma ficção, um ídolo dos tempos modernos – o mercado, ou, se se preferir, a moeda – projecção abstracta de todas as relações mercantis e medida de equivalência do valor das diversas mercadorias em circulação.

Num mundo concebido para glorificação da “mercadoria” e do “mercado”, ou seja, um sistema social concebido e estruturado para servir a permanente transmutação e hipervalorização dos bens transacionáveis, cujo valor de uso e a sua utilidade se evaporam na voragem do mercado, num mundo estrategicamente calculado e administrado para a acumulação permanente, toda e qualquer pulsão humana é sacrificada no altar do lucro e da autorreprodução do sistema, em que os indivíduos são moldados e reduzidos à condição unidimensional de produtores/consumidores.

De facto, o modo de produção capitalista não admite qualquer outro desígnio que não seja a sua própria reprodução e acumulação de “mais-valia”, em cujo processo produtivo milhares de seres humanos são reduzidos à condição de objectos ou coisas e as relações sociais estratificadas e “coisificadas”. Uma única verdade é possível – a verdade do mercado.

Por outro lado, é cada vez mais evidente que o neoliberalismo económico e o conservadorismo sociais, que, após o colapso da União Soviética, ganharam novo fôlego, representam, não a “modernização” da sociedade, como seus ideólogos propagandeiam, mas, pelo contrário, constituiu ambicioso processo de reversão da queda da taxa de lucro, de que resultou um brutal agravamento de problemas sociais, quer dizer, mais fome, mais pobreza, mais desemprego, maior concentração de riqueza e mais elevados níveis de desigualdade.

Pode dizer-se, assim, que nas últimas décadas, o capitalismo tem vindo a assumir uma das suas formas mais destrutivas e regressivas, com custos humanos cada vez mais elevados; e, ao que tudo indica, continuará, em escala cada vez maior, a alimentar-se do sacrifício da vida de milhões de cidadãos. Em verdade, pode afirmar-se que o capitalismo contemporâneo personifica o retrocesso social e a barbárie.

E, no entanto, nunca, como no presente tempo, a Humanidade, esteve tão dotada de meios de conhecimento e capacidades técnicas tão notáveis…

Porém, a ciência e a técnica estão, elas próprias, capturadas, ao serviço da taxa de lucro, imprimindo maior eficiência ao processo produtivo e ao funcionamento do sistema e, desta forma, a contribuir para a “legitimação” política do sistema. Esclareça-se que a ciência e a técnica funcionam também como ideologia – a ideologia tecnocrática – fazendo propagar a ideia de que apenas em instância técnica as grandes questões poderão ser resolvidas, face a cada vez maior complexidade das sociedades modernas.

E, na medida em que tal programa de hegemonia tecnocrática for realizado, quer dizer, quanto mais qualificada for a contribuição da técnica para o desempenho da economia, mais justificada fica a usurpação do poder pelas elites tecnocráticas e financeiras, que serão tanto mais aceites pelas camadas populares (em contramão com os seus verdadeiros interesses), quanto maior o sucesso económico.

Por outras palavras, desde que a economia garanta um relativo bem-estar material, a exploração estará plenamente justificada, face às determinações da economia e da técnica e o sistema capitalista legitimado, em nome da eficácia administrativa e da eficiência económica, promovendo, desta maneira, o amorfismo político e desvalorizando os conflitos de classe, as lutas político-partidárias e, de uma maneira geral, a própria actividade política.

No entanto, por maiores que sejam os sofismas, o sistema capitalista não consegue disfarçar o mal-estar real das sociedades “modernas”, confinadas nos seus dogmas e espartilhadas no seu processo de alienação ideológica, subjugando as consciências, incapazes de conhecerem e reagirem ao processo da sua própria exploração e alienação.

Vejamos.

Como Marx nos esclarece, o homem contemporâneo padece de um mal-estar congénito, ou seja, de uma falsa sensação de liberdade, cujas causas remontam à natureza da sociedade capitalista e à separação que estabelece entre sociedade e indivíduo, entre sociedade civil e Estado e entre direito e política. No entanto, a proclamada separação entre sociedade e indivíduo, sociedade civil e Estado, ou entre direito e política é mera aparência, ou, se se preferir, uma artimanha da mercadoria, a engendrar a forma como a sociedade capitalista se revê a si própria, iludindo o facto determinante de que a estrutura económica constitui o fundamento base da sociedade.

Nesta ordem de ideias, importa salientar que, na concepção do sistema capitalista, o domínio da política, desenrola-se fundamentalmente na esfera do Estado e das suas instituições e a economia e o mercado constituem realidades da esfera privada dos cidadãos; porém, para o pensamento marxista não é apenas político aquilo que é rotulado pelo sistema capitalista como político e há mais vida política, para além daquilo que o sistema capitalista deixa perceber.

É certo que, no capitalismo, a produção, a distribuição e a alocação de bens e recursos económicos, ou seja, o funcionamento da economia e do mercado, integram, como ficou referido, o domínio da propriedade privada e, em consequência, são alegadamente separados do Estado e de seus mecanismos de deliberação e legitimação. E não deixa de ser irónico e um pouco intrigante que, pertencendo a economia à esfera privada dos cidadãos e, portanto, imune à “contaminação” da política, a economia e o mercado constituam um imenso poder, tão grande que lhe permite definir a configuração da própria sociedade.

Mas, em sistema capitalista, não é concebível que a economia possa ser exercitada mediante voto popular, nem que possa existir capitalismo em que a vontade do povo prevaleça sobre o imperativo do lucro e da acumulação, pois que, na realidade, não existe outro objectivo que não seja a maximização do lucro, em cujo altar são sacrificadas as mais básicas necessidades dos cidadãos.

Outra, porém, é a visão da teoria marxista, abertamente contrária à ideia de que a política se resume ao âmbito do Estado. Não passa de uma fantasia imaginar que o poder político está concentrado no Estado, pois que semelhantes formulações iludem a questão de que poder económico, em grande medida, determina o rumo das escolhas políticas e da sociedade.

O capitalismo é estruturalmente estranho à ideia de democracia. Não presta contas e revê-se na sua impunidade. E proclama permanentemente a sua “inocência” política. Eu não sou político! – é a declaração habitual que sai da boca das elites económicas, lamentavelmente, seguidas por tantos outros que lhe imitam os tiques e as palavras.  Porém, não consta que exista sociedade capitalista em que a riqueza não tenha acesso privilegiado e promíscuo com poder político e, em especial, com o poder de Estado e suas instituições.

Na realidade, é da natureza do sistema capitalista e condição da sua existência, a circunstância de as mais básicas condições de vida, ou as exigências mais simples de reprodução social, serem forçosamente submetidas aos ditames da acumulação de capital e às “leis” do mercado.

E, neste desígnio de reprodução capitalista, o Estado e a política realizam-se.

Não cabe no âmbito destas linhas esclarecer todas as implicações que estão presentes na articulação da economia e a política, mas julgo que se justificam duas ou três observações muito breves para melhor entendimento desta complexa questão.

Assim, importará dizer, em primeiro lugar, que no sistema capitalista “o mercado é lugar de verdade”[i], obedecendo a mecanismos espontâneos, dir-se-ia “naturais”, cujo “funcionamento”, permite ligar a produção às necessidades e a oferta à procura e, através da troca, estabelecer o “preço natural”, ou o “valor” de cada mercadoria, de tal forma que, no dizer do autor citado, o mercado “se constitui como lugar de veridicção, ou seja, um lugar de verificação-falsificação para as práticas governamentais”; em consequência, é “o mercado que vai fazer com que o bom governo, para ser bom governo deve funcionar com verdade (…)”, ou seja, a verdade do mercado.

Assim, se bem compreendemos, o papel de privilégio da economia na sociedade decorre não tanto por ser o mercado a ditar aquilo que é “um bom tipo de comportamento” (do Estado), isto é, as práticas governativas, como acontecia no capitalismo dos séculos anteriores, mas, sobretudo, o papel determinante da economia reside na dupla articulação orgânica mercado/Estado e no papel de “veridicção” da verdade (passe a redundância) por parte do mercado.

Diz o autor citado, “o mercado deve proclamar a verdade”. Urbe et orbe, presume-se, qual Deus ex-machina! E dizer a verdade também relativamente à prática governativa. “É seu papel de veridicção – acentua o autor – que vai agora, de uma forma secundária (dir-se-ia difusa, sem nos darmos conta), comandar, ditar, prescrever os mecanismos jurisdicionais ou a ausência deles” com os quais o mercado se articula.

Coisa “natural”, portanto, esta dupla articulação. Mais do que explicitamente almejada e perseguida, esta imbricação das forças do mercado e a política apresenta-se como um dado de facto, que apenas, num segundo nível de análise, se pode compreender e denunciar.

Deve ainda referir-se que, também para Marx, ao contrário de Rousseau, para quem o exercício da soberania popular de alguma forma condiciona da esfera privada dos cidadãos, a tensão entre o público (Estado) e o privado (mercado) não pressupõe a supremacia de uma dessas esferas sobre a outra.

Efectivamente, para Marx, a questão da superação entre público e privado, economia e política ou Estado e sociedade, funda-se na necessidade de uma nova formação social (outra sociedade) em que o particular e o geral apresentem o mesmo desígnio e apontem na mesma direção, em suma, uma outra sociedade em que “o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”.

Daí que, aos olhos de Marx, “a liberdade consiste em converter o Estado, de órgão que subordina a sociedade em órgão totalmente subordinado a ela”, quer dizer, a superação da alienação e o retomar um controle sobre a vida política, de modo que ela não seja guiada por interesses particulares (a verdade do mercado), mas pela vontade geral, pública, dos homens.

Aliás, como é bem conhecido, apenas numa sociedade livre de exploração económica este desígnio é possível. Sem propriedade privada, a razão fundamental dos conflitos e da exploração, não será possível aos interesses de cada indivíduo privado entrarem em choque com os interesses da coletividade e, consequentemente, apenas num contexto de abolição da exploração, a ideia de vontade geral se poderá realizar.

Não nos iludamos, porém. A sociedade capitalista nunca, por si mesma, se desvencilhará das suas contradições e das suas “verdades universais”. Assim, procurar ultrapassar a divisão artificiosa entre sociedade e indivíduo, sociedade civil e Estado, ou entre direito e política, representa, audacioso desígnio revolucionário, com o objectivo de transpor historicamente a sociedade capitalista.

Bibliografia:
- Michel Foucault, “Nascimento da Biopolítica”, Edições 70
- Mozart Silvano Pereira, “Democracia, Legitimidade e Capitalismo”, Universidade Federal do Paraná – Brasil
Notas:
[i] M. Foucault – Nascimento da Biopolítica