O PODER POLÍTICO, OS TRIBUNAIS E A ADVOCACIA
Noticiou-se que 70% dos Advogados pretende abandonar a Advocacia, o que não nos admira.
Obviamente, não encontramos igual realidade na Magistratura: dificilmente encontraremos um Juiz ou um Procurador que pretenda adoptar a mesma solução, que tenha a mesma pretensão.
Este fenómeno social, económico, profissional e, mais que tudo, político, tem raízes muito profundas.
De facto, sabendo-se que a Licenciatura em Direito visa o recrutamento de funções nobres da Soberania e da Administração Pública, banalizou-se tal diploma no «altar da massificação e dos créditos», que suportou e suporta as universidades privadas, insolventes por tendência e financiadas pelas propinas das Humanidades.
Como se tal não bastasse, o Poder Político absorveu, sem medir as consequências, o modelo da Declaração de Bolonha, nivelando por baixo o acesso às carreiras forenses e judiciárias e, ainda não satisfeito com a sua cegueira legislativa, foi mais longe e criou a Licenciatura em Solicitadoria.
Alcançámos, hoje, o momento determinante para estancar a progressiva diluição da função simbólica dos Tribunais, pois atingimos a desautorização e deslegitimação das profissões forenses e da função soberana dos Tribunais — fenómeno que se ficou a dever a factores e causas de simples identificação, nomeadamente o abandono da administração da Justiça por parte do Poder Político (leia-se, a Presidência da República e a Assembleia da República).
Que abandono? Como se manifesta?
Analisemos as várias dimensões da Justiça.
Começarei como disse, pela sua composição subjectiva: Juízes, Procuradores, Advogados, Solicitadores, Agentes de Execução, Funcionários Judiciais.
Radiografando este magma subjectivo, o que se nos depara? Uma formação inicial deficiente logo nas Faculdades, uma formação comum para Juízes e Procuradores — gerando uma ou várias perversões no concreto quotidiano —, uma função residual da Advocacia — onde caem todos os que não tiveram o privilégio de aceder à quinta essência do poder das Magistraturas —, uma opacidade larvar do progressivo e silencioso poder da Solicitadoria, uma insuportável apreensão do poder económico e judiciário pelos Agentes de Execução.
Tudo isto é suportado, como se disse, por uma formação comum, no Centro de Estudos Judiciários (CEJ), para Juízes e Procuradores, que crescem e vivem juntos desde os «bancos da escola», relacionando-se entre si como se de um corpo único se tratasse.
A formação do CEJ e o desenho das carreiras dos Juízes e dos Procuradores geraram uma clausura e um afastamento, às vezes impregnado de profundo antagonismo, entre as Magistraturas e a Advocacia.
O Legislador, desatento, entendeu acentuar a subalternização dos Advogados no complexo orgânico das novas Comarcas, onde a Advocacia não é representada na gestão dos Tribunais e não tem sequer direito a fazer ouvir a sua voz, nem nos Conselhos Consultivos.
A tudo isto, soma-se a miríade de «governos dos agentes da Justiça», deparando-nos com um Conselho Superior da Magistratura (CSM), um Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), um Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (CSTAF), uma Ordem dos Advogado (AO), uma Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (OSAE), um Conselho dos Oficiais de Justiça (COJ), sendo por demais evidente que cada governo, de forma insularizada, assume os naturais tiques corporativos, destruindo-se, consequentemente, a sua missão auto-reguladora e, sobretudo, a sua função instrumental de revigoração da democracia judiciária, obstando-se, assim, à aproximação, quer dos cidadãos e das empresas ao universo judiciário, quer dos Tribunais aos cidadãos.
O Legislador, ou melhor, o Poder Político, está aparentemente desatento.
De facto, ao Ministério da Justiça estão cometidas — e cada vez mais — funções puramente administrativas, pintalgadas aqui e além pela iniciativa legislativa.
Mas a Presidência da República e, acima de tudo, a Assembleia da República, vivem serenamente na mais inexplicável negligência (senão dolo) quando abandonam a Justiça à sua sorte e nem sequer apreendem os sentimentos dos cidadãos e as suas necessidades, bem como os das empresas, com vista a impôr as reformas, com as quais, se empreendidas a tempo, não teríamos atingido o patamar negro da irreversibilidade de algumas metástases que nos informam.
Senão, vejamos:
1. A formação académica, como se disse, é incipiente, escolástica, desligada da realidade;
2. Formam-se licenciados em Direito em tal número que, bem sabemos, nunca serão absorvidos pelas necessidades judiciárias e forenses;
3. As opções profissionais são de duas ordens: uma pequena percentagem ingressa nas Magistraturas e os milhares que sobram caem no regaço da Ordem dos Advogados;
4, Os que alcançam o CEJ recebem o privilégio dos eleitos e o apanágio dos escolhidos;
5. Os que sobram têm um porto de abrigo, que é a Ordem dos Advogados;
6. A formação inicial do CEJ pressupõe a unção própria da virtude e da perfeição, quase eclesiástica, emprestando o dom da infalibilidade inerente ao poder absoluto de decidir, mas só para os que atingem o «sétimo céu da Judicatura», com menos de 25 anos de idade;
7. Bem ao invés, os excluídos, que são reconduzidos para o sub-mundo da Advocacia, não passam de mercenários desprovidos de cidadania judiciária, já que essa muralha é intransponível.
De facto, o Tribunal é o Juiz e o Juiz é o Tribunal, sendo o Ministério Público o parceiro pensador que acompanha o dono da verdade e o monopólio do poder.
À Advocacia é oferecida a sua «uberização», por via de um modelo degradado e degradante de apoio judiciário, alimentado por espúrias Direcções da OA, que se serviram desta nova geração de empregados do Estado para fins eleitorais.
Mas nem tudo acaba aqui…
Como disse, o Poder Político — repetimos: a Assembleia da República e a Presidência da República — abandonou a Justiça à sua sorte, invocando, pela via errada, a estafada separação de poderes e, assim, desresponsabilizando-se perante o Povo, que olha para a Justiça com justificada desconfiança face aos seus agentes, ao fim e ao cabo, os que pouca responsabilidade podem assumir pelo estado em que ela se encontra.
De facto, se o Povo estivesse informado, indagaria junto do Parlamento sobre as causas da sua aversão aos Tribunais e à Justiça.
E colocaria, pelo menos, as seguintes questões:
1. A formação académica em Direito continuará a observar o modelo de Bolonha?
2. Vai manter-se a produção em massa de licenciados em Direito?
3. A formação de Juízes e Procuradores continuará a ser a mesma, no CEJ? E manterá o mesmo pendor ideológico e confessional?
4. As carreiras das Magistraturas manter-se-ão paralelas ou opta-se pela retoma das carreiras vestibulares para aceder à Judicatura?
5. O perverso e insuportável modelo de privatização da acção executiva é para manter?
6. Os Solicitadores e os Agentes de Execução manterão o estatuto político e judiciário que lhes permite apropriarem-se, pelo menos, economicamente, da Justiça?
7. Os Estatutos Deontológicos das Magistraturas continuarão vazios de conteúdo?
8. A tributação dos actos judiciários manter-se-á insuportavelmente inibidora do acesso ao Direito e à Justiça?
9. O sistema de acesso ao Direito persistirá na proletarização e «uberização» da Advocacia face ao Estado? Para quando um sistema de efectiva prestação de informação, consulta e patrocínios, aliás já desenhado em 2003/2004 e destruída pelas incompetentes direcções da OA, que se seguiram a essas datas?
10. No processo-crime, a função da fase de Instrução e o papel do MP vai manter-se?
11. O CSM, o CSMP, o CSTAF, a OA, a OSAE, o COJ manter-se-ão insularizados, sem prestarem contas ao Poder Político? Até onde vai o auto-governo? Quais os limites políticos da auto-determinação?
12. A organização judiciária manter-se-á desligada da justiça de proximidade, ou seja, o modelo esclerosado de Julgados de Paz não poderá ser substituído por Tribunais Municipais com competência cível e contra-ordenacional para as pequenas causas?
13. Não chegou a hora de impedir a evasão fiscal e a lentidão do contencioso administrativo, criando Tribunais Administrativos e Fiscais em cada capital de Distrito?
Em Conclusão
Podemos, em suma, sumariar as grandes questões que se colocam no Poder Político.
A primeira, como se viu, prende-se com o governo da Justiça, afigurando-se evidente que a Assembleia da República é o único Órgão de Soberania hábil para a interpelação dos Agentes da Justiça e dos seus organismos públicos e privados.
A segunda equação é preenchida pela organização judiciária e pelo apuramento da sua proximidade e adequação às necessidades dos Cidadãos e das empresas.
Parece-nos evidente que a actual organização judiciária não satisfaz a pequena e média conflitualidade o que urge colmatar, por exemplo, por via dos tribunais municipais e pôr termo ao modelo dos Juízes de Paz que, manifestamente, soçobraram perante a inércia do legislador.
A terceira via a percorrer entronca do acesso ao direito e à justiça, sendo claro que o Artigo 20.º da CRP está longe de ser cumprido e, neste particular ingrediente, é o próprio regime democrático que está em causa.
A quarta prioridade remete-nos para a formação inicial e permanente de todos os agentes da Justiça, pois o modelo actual da formação académica, da formação inicial, da habilitação, da investidura e da progressão nas carreiras não é compatível com uma moderna, elástica e responsabilizável Democracia Judiciária.
Todas as reformas são possíveis.
Faltam densidade, autoridade e clarividência aos nossos responsáveis corporativos, sindicais e políticos.
Haveremos de lá chegar.