O TEMPO E AS ARTES

A ideia de que se vive cada vez mais numa civilização tecnológica, com grande incidência nas artes, corresponde aproximadamente à realidade que nos rodeia e às concepções estruturantes dos meios operativos disponíveis. O paradigma do tempo encurtado, de uma espécie de urgência em queimar etapas, em vencer cada vez maior quantidade de obstáculos, alcançou grandeza desmesurada sobretudo a partir da «revolução industrial», na presumível necessidade de crescer, de crescer muito, rasgando-se vias de comunicação e unidades fabris de larga escala. A concentração imediatista em torno das matérias combustíveis, madeiras, carvão, derivados de produtos fósseis, apontou, apesar de todos os investimentos necessários, no sentido de muitos caminhos facilitistas, e dessa forma acelerou os processos de produção, concentrações urbanas, novas exigências, abuso do trabalho em massa, desmultiplicação intensiva, enfim, de objectos com as mais diversas características e funções. Do fazer artesanal, e quase bruscamente, passou-se para a produção em série, desde os utensílios mais comuns aos primeiros automóveis. Tudo isto veio alterar as estruturas sociais, a ocupação e ordenamento do território, a velocidade das deslocações e tratamento de projectos, a própria escrita quotidiana ou comercial com o advento da máquina de escrever. Sob o impulso do teclado, a ordem linguística estabelecida teve de adaptar-se a imperativos temporais, consoante os ramos de actividade e um certo sentido alucinatório para cumprir uma melhor e mais rápida resolução na troca de informações.

Esta realidade, como aparentemente não podia deixar de ser, florescia num grande número de frentes, incluindo as vastas mutações das artes plásticas, entretanto vitimizadas por supostas novidades que levaram ao desaparecimento do próprio quadro. Falou-se inclusivamente na morte de quase toda a arte. Até os espaços de montagem tridimensional e icónica foram absorvidos por novas fontes de criação.

A escrita iniciada por cada um de nós, à mão ou com máquina, desde há muito documenta um oceano de iniciativas, entre a edificação urbana, os polos industriais, comerciais, de serviço e ainda redes de contacto capazes de acelerarem as aprendizagens e a cada vez maior complexidade da vida humana.

Alguém disse que o destino das palavras manuscritas tem os dias contados. Dantes havia o ritmo da escrita, procurava-se o ritmo e a vida quase autónoma da palavra, quer através dos mais diversos tipos de canetas, quer no perfeccionismo resultante do uso de máquinas electrónicas. Hoje o computador engole tudo, alinha tudo, caligrafia, temperamento gráfico, vitalidade das palavras. A palavra deixou de ser uma afirmação de gosto e ritmo, tornou-se inerte e funcional.

Não penso assim. Desde logo, a palavra é agente estruturante e estrutural de várias linguagens: olhada ou falada, é intrinsecamente ritmo. Cada palavra, feita de caracteres e sílabas, forma um corpo melódico, sacudido ou ondulante, é espaço de notas, frase ela mesma, frase com outras em raccord de som e sentido. É arte. É a invenção que salva o Homem do silêncio, da solidão e da mudez do cosmos. O ritmo dessa articulação criadora de sentidos faz parte das artes e do comportamento. E, em boa verdade, não existe expressão (comunicação) sem os encaixes dos meios e dos modos, entre o pequenino seixo rolado no rio (a coisa) e as mitologias que vamos tecendo em jeito de tapeçaria. O seixo rola, bate nos outros, em movimento e som, enquanto os dedos dedilham a teia do tear e batem a lã, em baixo, com um largo pente de ferro. São palavras (que reconhecem as coisas e as nomeiam), que se descrevem com outras, simulando o bater nas pedras e no cume da tecelagem. Os mudos e os surdos ouvem melhor essas palavras do que nós, a cada gesto pensando adjectivos. Aliás, e para os nossos companheiros que perderam a audição, a fala gestual, indiciando situações, ilustrando realidades, exprimindo conceitos, são bem a alma rítmica das palavras. E o mesmo acontece com o bailado doce dos dedos dos cegos lendo em silêncio, por sistema Braille, palavras, umas após outras e vendo através dessa textura.

E não nos esqueçamos: a palavra, pelos significados que desperta e pelo ritmo que modela, tanto no sentido caligráfico como na conjugação das sílabas, é inerente à criação artística em vários níveis. Não há construção das artes, nem das que contêm o tempo como sua estrutura ou o sugerem, sem a palavra, base civilizacional.