Teatro em Portugal: breve contributo
O estudo do teatro e as suas condições
Para traçarmos os contornos da situação actual do teatro em Portugal e da sua evolução recente é preciso considerar várias perspectivas de abordagem do fenómeno teatral e compreender que nem sempre possuímos informação suficientemente repertoriada para o fazermos, pese embora o aumento da documentação produzida depois da Revolução de Abril de 1974 e o trabalho de análise e interpretação que vem sendo desenvolvido desde finais do século passado em centros de investigação nas universidades. Temos, pois, que começar por referir a profunda transformação trazida ao estudo do teatro pelo incremento de vozes e lugares que a ele se dedicaram e pela mudança de paradigma associada à introdução da tecnologia no tratamento de informação. Bases de dados e edição electrónica tornaram-se instrumentos desenvolvidos para coleccionar e disseminar dados e fontes recolhidas em arquivos, também estes em progressiva transformação. O facto de podermos contar hoje com uma área de estudos dinâmica e especializada cujos resultados são disseminados e reconhecidos por académicos, artistas e amadores de teatro é indissociável das próprias modificações ocorridas na prática desta arte em Portugal nos últimos trinta anos.
Herança da ditadura, conquistas da revolução
A ditadura impôs não apenas a censura das ideias e das acções, mas um modelo de teatro que servia a manutenção da organização social e política da nação: à tipologia das salas de espectáculos correspondia uma hierarquia social, uma distribuição de géneros de teatro, um modo de gerir a relação da arte com a profissão, evitando misturas, excessos e iniciativas individuais. Sociedades de actores ou empresas procuravam manter a sua actividade que estava totalmente dependente das receitas de bilheteira, ou seja, do sucesso ou insucesso dos espectáculos e dos textos que podiam levar à cena ou que os espectadores apreciariam. Um empresário dominava o mercado teatral: Vasco Morgado, figura controversa que carece de um estudo aprofundado, mas que ainda hoje, para actores desse tempo (anos 40, 50 e 60) corporizava um teatro subordinado aos interesses comerciais que não beliscava o regime e os bons costumes e impedia novas modalidades de trabalho artístico e de organização profissional.
Escrever peças de teatro, durante o longo tempo da ditadura, consistia num exercício quase marginal, de reconhecimento de um modo – o dramático – e do seu específico dispositivo retórico e poético, dentro de um conjunto de géneros ao dispor do autor: drama rústico, comédia psicológica, teatro de tese, drama histórico, farsa etc. Bernardo Santareno (A Promessa, 1957), Natália Correia (A Pécora, 1966), Luís de Sttau Monteiro (Felizmente há luar, 1962), Luiz Francisco Rebello (Os pássaros de asas cortadas, 1959), Vicente Sanches (O passado e o presente, 1964, A birra do morto, 1973), Augusto Sobral (Os degraus, 1964), Jaime Salazar Sampaio (Os visigodos, 1969), Jorge de Sena (O Indesejado, 1951), José Sasportes (Agon, 1971), Fiama Hasse Pais Brandão (Auto da Família, 1965) são autores incontornáveis de uma geração que exercitou sem descanso a escrita dramática, procurando dialogar com o palco que muitas vezes lhes estava vedado, e comunicar as suas representações do pequeno mundo que era Portugal antes de 1974.
Independentemente dos méritos e deméritos dessa dramaturgia condicionada pela dissimulação, mas que era também de resistência e, por vezes, de combate, há que reconhecer a perseverança na tentativa de ensaiar modalidades literárias diversas de uma escrita que não tinha realmente condições políticas, sociais e económicas para existir, acossada pela censura, por uma sociedade moralista e retrógrada, pelos interesses comerciais das estruturas artísticas profissionais, pelos modelos dramáticos conservadores aceites pelo público e por muitos artistas, pela concorrência das traduções dos êxitos estrangeiros, pela efemeridade das estruturas alternativas e experimentais, mais tarde pelo cinema com a sua linguagem e ficção aderente ao real. Apesar disso, essa dramaturgia é parte intrínseca de uma sociedade e da sua cultura ao longo de décadas e fala dela muito melhor do que pode parecer a uma primeira leitura. E o que trouxe a revolução de Abril de 1974?
A revolução fez, desde logo, desaparecer a censura e em liberdade poem-se em cena textos proibidos (Brecht, Sartre, Weiss, Claudel, Handke, entre outros) e vão coexistir práticas teatrais convencionais a par de outras que rompem com modalidades de trabalho artístico subjugadas aos interesses comerciais e aos resultados da bilheteira, acabando com a figura do empresário e experimentando formas de organização colectivas ou cooperativas, sem hierarquia ou diferenças funcionais e salariais.
O financiamento da actividade das companhias pelo Estado assenta no princípio, consignado na Constituição portuguesa, do teatro como serviço público, mas os critérios da atribuição de subsídios inicialmente respondendo à necessidade de construção e fortalecimento do tecido teatral vão sofrer grandes mudanças desde então e passaram a ser o instrumento de triagem, manutenção ou renovação dos projectos artísticos ao dispor dos sucessivos governos e suas políticas.
Um estudo sistemático cruzando legislação e apoios concretos aos agentes teatrais virá provavelmente revelar-nos duas coisas: a estagnação do investimento no teatro nestas quase cinco décadas (apesar das afirmações públicas e das demonstrações contabilísticas[i]) e as consequências reais dos critérios de atribuição de apoios na configuração do campo teatral, rarefazendo o número de grupos e companhias activas, mantendo algumas numa existência precária através de apoios pontuais e intervindo directa ou indirectamente na definição de uma ideia de teatro português. Com excepções, naturalmente, o teatro que tivemos foi aquele que uma nem sempre assumida política para a cultura possibilitou ou impulsionou.
Até ao final dos anos 70, novos grupos de teatro disputarão os recém-criados subsídios do Estado às companhias que, para além do Teatro Nacional D. Maria II, concessionado a Amélia Rey Colaço, e do teatro de revista, então existem – Comuna, Teatro da Cornucópia, o Bando, Grupo 4, A Barraca, Teatro de Campolide, Teatro Experimental de Cascais, Seiva Trupe, Teatro Experimental do Porto – companhias desde então chamadas “independentes”, isto é, sem empresário e com uma forte identidade associada às opções estéticas e artísticas dos seus mentores/encenadores, fossem elas a ligação às comunidades, a intervenção política e a revisitação da nossa História, a centralidade da dimensão plástica do espectáculo, a selecção e interpretação dos melhores textos do reportório mundial, a exploração da corporalidade do actor e a inspiração ritualista, a preferência pela dramaturgia das vanguardas europeias. A falta de espaços para desenvolver actividade regular foi um problema (até hoje) mal resolvido através da ocupação e transformação de lugares devolutos como o casarão cor-de-rosa ocupado pela Comuna, armazéns, lugares não convencionais públicos e privados que faziam apelo à criatividade e permitiam novas relações de maior proximidade com um público renovado e cúmplice. Foram tempos de todas as experimentações, da proliferação de grupos em permanente reconfiguração e de lugares onde se cruzavam experiências vindas do teatro universitário[ii], de amadores e profissional.
É também o momento, já vivido noutras paragens, de um descentramento do texto a favor da encenação, de o conceber como partitura, sistema de signos a ser interpretado pela figura do encenador que “assina” o espectáculo, através do qual texto e espectáculo desvendam uma proposta artística, comunicam o posicionamento de cada companhia perante a transformação histórica da sociedade portuguesa ou, noutros casos, experimentam modelos de teatro e de literatura dramática arredados até aí dos nossos palcos. É sobretudo o tempo de levar à cena os grandes textos clássicos e de recuperar o que estivera proibido, mais do que de acompanhar as vanguardas internacionais na viragem para a performance, no entanto experimentada em Portugal desde a década de 60.[iii] A crítica nos jornais ganha um novo fôlego e dialoga na esfera pública com os artistas a propósito das suas criações e com os agentes de organismos do Estado acerca das acções politico-legais da reforma em curso.
Mas o verdadeiro desafio era outro: fazer existir um teatro novo, moderno e democraticamente acessível a todos os portugueses. Traduzia-se, por exemplo, em levar o teatro a todo o país através da implantação do modelo francês da descentralização, criando centros culturais (Centro Cultural de Évora/CENDREV, 1975, GICC/Teatro das Beiras, 1976, CENA/Companhia Teatral de Braga, 1980, etc.), e definindo um novo quadro legal para a actividade profissional. Por entre contestações à legislação e apelos ao controle dos meios de produção, a década de 70 foi vivida sob a pressão de uma situação económica e financeira de um país que tinha de fazer face à perda das receitas das ex-colónias e ao aumento das despesas com as reformas sociais então criadas, mas com um desejo de uma abertura à modernidade (modos de vida, consumo, acesso a informação, abertura de fronteiras) que exigia mudanças na educação dos jovens.
Um aspecto que merece, por isso, ser referido, ainda que muito brevemente, respeita à reforma do ensino artístico do Conservatório Nacional iniciada em 1971 no âmbito da reforma do sistema educativo promovida pelo ministro Veiga Simão, de que foi encarregue uma Comissão Orientadora para a Reforma do Conservatório Nacional que contou com a intervenção de Madalena Perdigão, Mário Barradas, Peter Brook, João Mota, entre outros artistas, pedagogos e intelectuais. Do Conservatório fez então parte o Curso de Educação pela Arte que aí funcionou 10 anos e contribuiu para as mudanças que foram sendo introduzidas na legislação e nas práticas do ensino das expressões artísticas em escolas pelo país. Cabe também apontar a influência da Fundação Calouste Gulbenkian, a partir dos anos 60, ao promover e apoiar a educação artística através de alguns dos seus Serviços (e do Centro Artístico Infantil, com intervenção em praticamente todo o país). Assim, para além de se estimular a discussão sobre a relação entre educação e arte, de se produzir a legislação necessária à transformação do ensino artístico e à introdução das expressões artísticas nos novos currículos, o final dos anos 70 (o Plano Nacional de Educação Artística, da iniciativa de Madalena Perdigão então no Ministério da Educação) e a década de 80 (Lei de Bases do Sistema Educativo) serão o embrião de uma nova relação dos jovens com as artes. Os efeitos far-se-ão sentir nos anos 90, contribuindo para o sentimento de exclusão e claustrofobia vivido e manifestado pelos criadores mais jovens.
Crises e resistência nos anos 80 e 90
Não espanta que os anseios de um novo público e as necessidades desses jovens criadores impulsionem múltiplas iniciativas[iv] (festivais, exposições, mostras, associações) e justifiquem um evento marcante na década de 80 (1984-1989) como foi a criação do ACARTE (Serviço de Animação, Criação Artística e Educação pela Arte) no Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian. O seu papel junto dos jovens criadores, nomeadamente através dos Encontros ACARTE,[v] montra do que se considerava fazer falta às artes e cultura do Portugal europeu, não pode ser desligado das aspirações da sociedade portuguesa alimentadas pela preparação (1977) e posterior admissão à Comunidade Europeia (1986), e materializadas na década de 90 em momentos oficiais de exibição da cultura portuguesa (Europália, em 1991, Lisboa 94 Capital da Cultura e Expo 98), através dos quais se foi apagando a dinâmica revolucionária e as suas utopias, abrindo espaço para “normalizar” práticas e adoptar os valores neo-liberais. Esta progressiva entrada de modelos artísticos já consagrados na Europa onde os cruzamentos de linguagens e, sobretudo, a centralidade artística do corpo e da dimensão performativa dominavam a criação (Jan Fabre, Pina Bausch, Anne Teresa de Keersmaeker, Tadeuz Kantor, Joseph Nadj, Marina Abramovic) veio confrontar uma nova geração (Rui Horta, Vera Mantero, Clara Andermatt, Francisco Camacho, João Fiadeiro, entre outros) com a tradição da, entre nós frágil, dança clássica e do teatro de texto, com o comprometimento político do teatro como serviço público e com a necessidade de sacudir estes modelos e valores para, em contrapartida, afirmar corporalidades apagadas por décadas de fascismo e para sustentar o impulso criativo colocado no presente da realidade vivida e na utopia de existências libertas do peso do passado. Isto para mencionar apenas alguns aspectos de uma realidade complexa ainda por estudar e onde a dança[vi] assumiu um papel pioneiro e fecundo.
No mesmo momento em que se abrem as portas da Europa, e se pratica ainda a ideia de teatro como serviço público através das subvenções do Estado, o quadro neo-liberal das regras europeias originou formas de institucionalização da relação do Estado e seus tecnocratas com as companhias que geraram, por seu turno, mecanismos de gestão e controlo (do nº de espectadores, nº de representações, digressões, espaços de representação equipados, progressivo aumento de prestação de contas).
Esta opção foi-se acentuando, embora ganhando diversas configurações, à medida que se discute politicamente o direito ao acesso à cultura e a obrigação de subvencionar os agentes teatrais, com posições a favor e contra e decisões tendentes a consolidar uma indústria do espectáculo no interior da “normalização” liberal e dentro das práticas democráticas institucionais. A padronização da acção dos organismos estatais e a influência dos modelos europeus são acompanhadas pela valorização da construção de uma identidade cultural consensual que concilie identidade nacional e modernidade, quando governantes e governados aspiram à integração na Europa política e económica. Mas, se as companhias de teatro dito independente pareciam ter ganho um estatuto privilegiado pela regularidade do apoio que recebiam, representando o teatro moderno e de qualidade referido ao pós-25 de Abril, um movimento permanente em busca de meios de existência e de afirmação de singularidades artísticas não deixará de existir nestas décadas[vii].
Para além dos textos escritos e publicados – e a edição de teatro funcionara para muitos deles durante a ditadura como alternativa à encenação – surge um número importante de textos resultantes da montagem ou da reescrita de outros, assim como adaptações de obras consagradas (romance e poesia) que integram espectáculos e se afirmam como uma alternativa à tradicional relação da cena com o texto dramático. Este modo de relação livre com a matéria textual a par da produção de textos a partir da improvisação colectiva criou uma tensão entre escritores com actividade antes e depois de 1974 e uma geração recém-chegada à escrita que está ainda nos anos 80 em transição entre modalidades mais conservadoras ou mais revolucionarias de escrever para os palcos[viii].
É impossível não referir a importância de iniciativas como o Dramat[ix] (Centro de Dramaturgias Contemporâneas, criado em 1999 no Porto), a regular promoção de oficinas de escrita, agregadas aos teatros nacionais ou municipais, e as experiências de uma dramaturgia pós-moderna e pós-dramática daí resultante, inspiradas por exemplos da escrita anglo-saxónica (Harold Pinter, Ravenhill, Howard Barker, Enda Walsh, Simon Stephens, Brian Friel, etc.), alemã (Botho Strauss, Tankred Dorst, von Mayenburg, etc.) e francesa (Koltès, Lagarce, Olivier Py, Valletti, etc.). E em 1995, antecedendo a criação dos Artistas Unidos, companhia criada por Jorge Silva Melo, co-fundador do Teatro da Cornucópia, acontece uma oficina de escrita para a produção do já mítico espectáculo António um rapaz de Lisboa, que reunirá muitos dos jovens actores e escritores que sucederam à geração de 90 e criaram as suas próprias estruturas de produção, como veremos. Aos Artistas Unidos se deve, entre outras práticas renovadoras, um impulso para a transformação das condições de escrita para a cena.
Surgem nestas décadas os primeiros exemplos de uma escrita liberta do padrão dramático e literário anteriormente assente no conflito, na personagem e na metáfora, uma escrita que nasce da dinâmica da própria criação[x], assumindo-se por vezes como guião de acções cénicas dentro de projectos criados pelos jovens finalistas da ESTC (Escola Superior de Teatro e Cinema), formados por João Mota, Jorge Listopad, Glicínia Quartin, Eugénia Vasques, João Brites, José Peixoto, desafiando (mas também sendo desafiados por) as companhias “estáveis”, por onde muitos passarão e farão os seus começos profissionais. Um bom exemplo deste sinal de ruptura é dado pelo Teatro da Garagem (1989). Este grupo de jovens actores forma-se em torno de Carlos J. Pessoa que escreve e encena textos produzidos colaborativamente e ligados à cena de forma tão intrínseca que só anos mais tarde ganharão a assinatura autoral e a materialidade do livro. Mas é preciso referir também outros casos que emanaram da reformada formação de actores e que marcaram de facto uma viragem na relação entre escrita e cena em prol de uma ideia de teatro onde o corpo do actor, a espacialidade alternativa aos palcos à italiana, a perfomatividade das criações cénicas e a inventividade da escrita de/para palco determinaram novas estéticas: o Teatro do Século (1990) criado por Inês Câmara Pestana numa sala do ex-jornal O Século para produzir um reportório de textos contemporâneos; a Sensurround liderada pela perfomer Lúcia Sigalho (1997) um projecto de expansão do teatro como manifesto na esfera pública, o Olho criado por João Garcia Miguel (1993) explorando a dimensão física do teatro, o Útero dirigido por Miguel Moreira (1998), onde se desafiava a relação com o público, maioritariamente jovem também ele, a Casa Conveniente, projecto de Monica Calle (1992) concebido a partir do próprio espaço e comunidade em que se inseriu (Cais do Sodré), O Teatro Meridional com dupla direcção de Natália Luiza e Miguel Seabra (1992) que desde cedo concilia a centralidade do trabalho do actor com o trabalho dramatúrgico a partir do texto literário, a Escola de Mulheres (1995), cuja fundadora foi a já consagrada actriz e encenadora Fernanda Lapa, para tornar visível a presença das mulheres no teatro. No Porto, o movimento de alargamento da formação de actores da ESMAE (Escola Superior de Música e Artes do espectáculo) para escolas privadas como a Academia Contemporânea do Espectáculo – Escola de Artes (1990) e o Balleteatro (1989) vai potenciar o surgimento de um tecido artístico jovem, criativo e revitalizador de espaços e públicos da cidade. Surgem várias companhias como Assédio, As Boas Raparigas Vão Para o Céu, as Más Para Todo o Lado, Teatro Bruto, Ao Cabo Teatro, entre várias outras. A criação do Teatro Nacional de S. João servirá de plataforma giratória de muitos destes jovens artistas e dos seus projectos, sobretudo a partir da direcção do encenador Ricardo Pais, também ele impulsionador desde as suas primeiras criativas encenações nos anos 80 com os Cómicos, por exemplo, da modernização e internacionalização do nosso teatro.[xi]
Situação actual
Esta viagem necessariamente incompleta e a pedir vários excursos para aprofundamentos a partir de leituras complementares, traz-nos até à actualidade. A situação das artes e dos artistas tem entrado pelas nossas casas através de notícias e imagens preocupantes, porque o confinamento e consequente interrupção da actividade provocados pela pandemia do Covid 19[xii] veio exacerbar a precariedade do trabalho artístico já sentida na primeira década do milénio. Desde então agravou-se o retrato que tenho vindo a traçar, particularmente devido à crise económica de 2008, com mais uma intervenção internacional em 2011 (Troika), impondo austeridade e corte das condições para a manutenção do tecido artístico, resultando no acentuar da precarização do trabalho através da prática consentida pelo Estado de generalizada desregulação: ausência de legislação protectora, generalização de vínculos precários, redução permanente das estruturas apoiadas pelo Estado, perenização da lógica dos projectos e apoios pontuais, condições de trabalho dependentes de co-produções com programadores ou instituições nacionais, municipais ou privadas detentoras dos principais financiamentos e de poder de selecção de projectos artísticos, ausência de investimento em infraestruturas. Uma espécie de salve-se quem puder, onde nem sempre abunda a transparência de iniciativas que fazem sobreviver o teatro em Portugal.
Como caracterizar esta terceira década? Aumentou exponencialmente o número de artistas, técnicos, programadores, produtores de “conteúdos” que compõem o que se designa por indústrias da cultura, onde teatro, dança, performance, cinema disputam o mercado. Daqui decorre a produção de objectos híbridos, cruzando linguagens artísticas e abertos à tecnologia, contaminando-se pela confluência de diferentes modos de produção, pela inserção num mercado restrito ao qual podem ou não ter acesso e pela aceleração do ciclo produção-consumo das suas criações, cada vez mais tratadas como produtos.
Note-se que, muito embora as companhias que dominaram os palcos com os seus modelos muito diversos de teatro entre 1974 e o final dos anos 80, prossigam a sua actividade com vitalidade diversa, é a geração que surgiu no final dos anos 90 e início deste milénio que ocupa hoje os palcos e faz a gestão do acesso dos recém-chegados à cena, numa proximidade intergeracional baseada na interrogação e pesquisa constante de modalidades artísticas e práticas transdisciplinares (performance, teatro, dança, vídeo, música, instalação) e de gestos estéticos e artísticos, mas que não esconde, todavia, quem detém o poder. Alguns com vinte anos de trabalho artístico (Teatro do Eléctrico, Primeiros Sintomas, Teatro do Vestido, Teatro Praga) mantêm um certo nomadismo por escolha ou porque essa é a dinâmica que se tornou dominante. E os “novíssimos” circulam pelos espaços institucionais disponíveis que os acolhem nas suas programações ou inventam espaços para os quais atraem os seus públicos. Muitos negoceiam o seu lugar no teatro (mas também no cinema) e a possibilidade de criarem, ao alimentarem a produção de conteúdos das televisões. Outros estão presentes nos diferentes media por escolha, da mesma forma que circulam entre projectos dos seus pares na profissão, cumprindo diferentes funções do universo do espectáculo, entre nomadismo e “multitasking”.
Com muito mais acesso à informação nesta era digital que os seus antecessores, com mais instrução e preparação artística, com espírito de iniciativa e uma visão do mundo em rede, os jovens criadores do milénio escolhem modalidades diferentes de organização: criam companhias (Teatro da Cidade, Silly Season, Mascarenhas – Martins, Auéééu, Os Possessos, Os Pato Bravo, Teatro a Quatro), juntam-se para projectos temporários, com tempos de preparação e de exibição ridiculamente curtos, ou desenvolvem em microestruturas as performances pelas quais transmitem sinais de vida, sem a certeza de se fazerem ouvir e de estarem realmente presentes na realidade plural do que ainda chamamos teatro.
São, quase sempre, auto-suficientes nas suas criações colaborativas: escrevem ou adaptam textos, inventam, dirigem, produzem, vendem e, parecem em alguns casos animados do mesmo espírito que moveu os colectivos que na década de 70 romperam o esclerosado modelo empresarial. Mas o mundo é outro e move-os a necessidade de fazerem aparecer ideias, de darem literalmente (o) corpo às contingências.
Continua a escrever-se para o palco ou para livro[xiii], prossegue o interesse por dramaturgia contemporânea produzida noutros países, com a colecção dos Livrinhos de Teatro (Artistas Unidos/Cotovia) a cumprir a sua função cultural. A pós-modernidade tornou mais descomplexada a relação com os textos e a sua escrita, como mostra a irreverente e provocatória produção do Teatro Praga (1997) e como explica Micael de Oliveira, dramaturgo, encenador e produtor, ao inventariar o(s) lugar(es) da textualidade no teatro e na dança.[xiv] A internacionalização, que fez surgir programas oficiais (Secretaria de Estado da Cultura) ou privados (Fundação Calouste Gulbenkian) de apoio aos artistas e esteve associada desde o início ao projecto dos Encontros ACARTE ou a workshops promovidos por alguns colectivos, surtiu efeito. Os nossos artistas circulam hoje por uma densa rede de locais de criação e produção, trabalham com os seus pares em todos os cantos do mundo, respondem à redução do apoio do Estado e à precarização das condições de trabalho através de co-produções dentro e fora do país, como defende e impõe a ideologia neo-liberal.[xv] Se alguns contestam o estado das coisas e defendem maior responsabilidade do Estado na preservação do tecido artístico, outros adaptam-se a uma regulação da actividade cultural pelo mercado. Longe vão os tempos do teatro serviço público e do direito à criação e à fruição da cultura por todos como ainda se lê na Constituição.
Um exemplo notável é o da companhia Mundo Perfeito (2003) por mostrar o alargamento dos horizontes nas últimas décadas do século XXI. Tiago Rodrigues e Magda Bizarro, seus fundadores, integraram intensamente durante uma década festivais e salas de espectáculo internacionais com programações abertas a co-produções, dentro da lógica de globalização económica que também chegou às artes do espectáculo. O resultado mediu-se pelo crescente reconhecimento do seu trabalho artístico nesses fóruns, pela nomeação de Tiago Rodrigues para a direcção artística do TNDM II e pela sua muito recente nomeação, pelo Ministério da Cultura francês, para a direcção do conceituado Festival de Avignon.
Quanto ao que vemos nos nossos palcos, o cruzamento de linguagens, o impulso experimental e a afirmação de novas utopias fazem do teatro português contemporâneo um dos mais estimulantes da Europa. O contributo da disseminação de teorias como a do teatro pós-dramático[xvi] (Lehmann) ou a do teatro rapsódico[xvii] (Sarrazac) quer nos estudos artísticos universitários, quer na formação superior profissional de actores merece também ser mencionado porque espoletou ou associou-se a um impulso teorizante e conceptual na própria criação. No teatro e na dança ganhou espaço a discussão sobre feminismo, colonialismo, afectos, ecologia, género e novas subjectividades, entre outros tópicos presentes nas sociedades contemporâneas que passam para e pelos palcos, donde podermos afirmar que a dimensão política das práticas artísticas se manifesta dentro de um reportório de temas actuais gerados do próprio neo-liberalismo. Mas, talvez mais interessante seja verificar como a sintonia dos nossos artistas com a criação contemporânea se manifesta através da constante interrogação sobre o fazer da arte, sobre os processos criativos que tendem a aproximar os artistas dos espectadores, até à absorção destes pelo espectáculo, como vemos acontecer, por exemplo, nos projectos das perfomers Lígia Soares (Turning Backs, 2018) e Raquel André (Colecção de Espectadores, 2021).
Numa síntese feliz de Gustavo Vicente, podemos dizer que “Foi graças a esta geração [dos anos 90] que os circuitos de produção e programação se diversificaram, que foram dados os primeiros passos para a internacionalização, que se diluíram as fronteiras de género artístico e se ampliaram as possibilidades de colaboração criativa, e que se desenvolveram novas formas de corporalidade e relações de cumplicidade com o público. Mas, acima de tudo, que se encetou um diálogo permanente com o seu tempo e com as noções de contemporaneidade, ajudando a compreender e a mapear os territórios da prática teatral em Portugal.”[xviii]
Notas: [i]Vera Borges, O Mundo do Teatro em Portugal: Profissão de actor, organizações e mercado de trabalho, Lisboa: Imprensa das Ciências Sociais, 2007; Jorge Louraço Figueira, Sobre o investimento público no teatro em Portugal. Estatística e contra-estatística, Camarim, nº 46, 2012 disponível AQUI, Eduarda Dionísio, Títulos, Acções e Obrigações – Sobre a Cultura em Portugal 1984-1994, Lisboa: Edições Salamandra, 1993. [ii]José Oliveira Barata, Máscaras da Utopia. História do Teatro Universitário em Portugal (1938/74), Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian (Serviço de Educação e Bolsas), 2009. [iii]Cláudia Madeira, O hibridismo nas Artes Performativas em Portugal, Tese de doutoramento apresentada ao ICS da UL, 2007; Arte da Performance, made in Portugal: uma aproximação à(s) sua(s) história(s), Lisboa: ICNova, 2020 [iv]Foi o caso interessante do Clube Português de Artes e Ideias (CPAI) que “foi fundado em 1986 e é uma associação privada portuguesa declarada de utilidade pública, que tem por objectivo principal o desenvolvimento e a promoção da criação, em todos os domínios das artes contemporâneas. Procura dar especial atenção à relação entre as diversas formas de arte, à experimentação artística e ao suporte/apoio a artistas emergentes. Esta é a tarefa sistemática que tem realizado desde a primeira ação. Realizou concursos nacionais nas diferentes áreas artísticas e mostras anuais de apresentação dos selecionados. Organizou a presença de artistas portugueses em eventos internacionais e intercâmbios. Promoveu experiências residenciais de artistas em toda a Europa.” Informação disponível AQUI [v]Ana Bigotte Vieira, No Aleph para um olhar sobre o Serviço ACARTE da Fundação Calouste Gulbenkian entre 1984 e 1989, Tese de doutoramento em Ciências da Comunicação apresentada à FCSH da UNL, 2016. [vi]Sobre a Dança em Portugal, o fenómeno da Nova Dança Portuguesa e uma história da dança por fazer veja-se Para uma Timeline a Haver, neste momento em exposição no Museu de Serralves. rmação disponível AQUI [vii]Eugénia Vasques, 9 considerações em torno do teatro em Portugal nos anos 90, Lisboa: IPAE, -Instituto Português das Artes do Espectáculo, 1998. [viii]Maria João Brilhante, “Textos e(m) cena: alguns marcos do teatro em Portugal (1990-2014)”, Manifestações de diversidade cultural na área da música, literatura, teatro e língua, Olomuc: Universidade Palacky, 2015, pp. 9-35. [ix]Paulo Eduardo de Carvalho, Cinco peças breves, Porto: Campo das Letras, 2002, pp. 7-15. [x]Maria Helena Serôdio, “A mais recente dramaturgia portuguesa: contextos e realizações”, Discursos. (Teatralidade e Discurso Dramático), Lisboa, n.º 14, Abril de 1997. [xi]Paulo Eduardo de Carvalho, Ricardo Pais. Actos e Variedades, Porto: Campo das Letras, 2006. [xii]A imprensa e a comunicação institucional do Ministério da Cultura no seu site permitem traçar as posições dos artistas e do Governo relativamente a apoios concedidos e as dificuldades sentidas pelas dezenas de milhar de atingidos pela suspensão das actividades no mundo do espectáculo. [xiii]Alguns nomes de uma lista incompleta são: Carlos J. Pessoa, Luisa Costa Gomes, Armando Nascimento Rosa, Jacinto Lucas Pires, José Maria Vieira Mendes, Pedro Eiras, Jorge Palinhos, Luís Mestre, Jorge Louraço Figueira, André Murraças, Tiago Rodrigues, Rui Pina Coelho, Sandra Pinheiro, Patrícia Portela, Cláudia Lucas Chéu, Fernando Giestas, Miguel Castro Caldas, Mickael de Oliveira, Ricardo Neves-Neves. [xiv]Micael de Oliveira, Dramaturgia portuguesa contemporânea (1974-2004). As textualidades do século XXI, dissertação de doutoramento em Estudos de Teatro apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2012; A presença do texto na dança e no teatro contemporâneos, e-book, Lisboa: CET, 2020 disponível AQUI. [xv]Importa conhecer as mais recentes iniciativas do Ministério da Cultura/DGArtes na reorganização do território em matéria de infraestruturas e financiamentos, através dos documentos legais: Revisão do modelo de apoio às Artes e Rede de Teatros e Cineteatros portugueses disponível AQUI. [xvi]Conceito cunhado por Hans-Lies Lehmann em Postdramatisches Theater (1999) (em edição inglesa, Postdramatic Theater, London and New York: Routledge, 2006). [xvii]Conceito cunhado por Jean Pierre Sarrazac em L’avenir du drame, Paris: Circé/Poche, 1999. [xviii]Gustavo Vicente, “Bases de criação para o século XXI: a intensificação da experiência cénia em João Garcia Miguel (OLHO) e em Miguel Moreira (Útero)”, in Teatro Português Contemporâneo. Experimentalismo, Política e Utopia [Título provisório], Lisboa: TNDM II e Bicho do Mato, 2017, p. 38.
Maria João Brilhante
(1956)
Investigadora do Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa