MEIO SÉCULO DE CIÊNCIA EM PORTUGAL: PARA ONDE VAIS?

O curso da política científica portuguesa (1950-1988)

Até à década de 1960, o sistema científico português tinha dimensão e diversidade reduzidas. O sistema de ensino superior era débil quanto à oferta de formação e à realização de investigação científica.

As quatro Universidades que então existiam eram inacessíveis à maioria da juventude; acolhiam raras unidades de investigação; e alguns dos seus poucos professores tinham sofrido perseguição política e demissão. Havia alguns pontos fortes, mas escassos; enquanto algumas áreas do conhecimento tinham reconhecimento internacional, a maioria apenas sobrevivia e algumas eram ainda ausentes.

Os polos da investigação científica e desenvolvimento experimental (I&D) limitavam-se a alguns organismos públicos – os laboratórios do estado criados entre 1946 e 1971, designadamente o LNEC (1946), IBM (1950), LNIV (1957); INII (1959), LFEN (1961), INSA (1971), as estações experimentais no âmbito das ciências agrárias (EAN, EZN e outras) – e ainda núcleos nas Escolas Médicas e Militares. Os Laboratórios do Estado, sob a tutela dos ministérios sectoriais, constituíram, desde o pós-guerra até meados da década de 80, o principal sector de execução de Investigação e Desenvolvimento Experimental (I&D).

No quarto de século que decorreu até ao 25 de Abril de 1974 há a destacar, para além dos laboratórios mencionados, a criação da Junta de Energia Nuclear e do Instituto Gulbenkian de Ciência. E noutro plano, a criação, em 1967, da Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (JNICT), com funções de planeamento, coordenação e promoção do Sistema Científico e Técnico Nacional (SCTN), na dependência da Presidência do Conselho de Ministros. É de notar que o último Plano de Fomento programado antes da queda da ditadura compreendeu já, pela primeira vez, um capítulo relativo à Ciência e Tecnologia, elaborado pela JNICT.

No período 1974 a 1979, os cinco governos provisórios integraram pela primeira vez a Ciência na sua orgânica como Secretaria de Estado e bem assim os cinco primeiros governos constitucionais até 1980, mas já não os governos subsequentes até 1995. Logo o I Governo Provisório incorporou no seu programa, no âmbito da política educativa, cultural e de investigação, a definição de política nacional de investigação; e na sua estrutura incorporou uma Secretaria de Estado dos Assuntos Culturais e Investigação Científica para concretizar essa acrescida atenção conferida à área da ciência. Foi em breve criado em 1976 o Instituto Nacional de Investigação Científica (INIC, 1976-92), com meios e competências herdados do Instituto de Alta Cultura (IAC), para coordenar a investigação científica na esfera universitária, designadamente cerca de 100 centros de investigação e 300 bolseiros. No ano seguinte o INIC veio a integrar também os centros da Junta de Investigações Científicas do Ultramar. A parte restante do IAC, focada para o fomento, ensino e difusão da língua e cultura portuguesas, deu lugar ao Instituto Camões. Em 1992, o governo determinaria a extinção do INIC, as suas competências sendo então transferidas para a JNICT e as unidades de investigação dele dependentes devolvidas à esfera universitária.

Portugal havia aderido à Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económicos (OCDE) aquando da fundação desta em 1961. Em 1965 aderira também à UNESCO, agência da ONU para a Educação, Ciência e Cultura, de que, porém, se retirou em 1972. Com o 25 de Abril o regime democrático reatou a sua participação na UNESCO, sendo o Ministério dos Negócios Estrangeiros designado entidade nacional responsável pela coordenação da ação dos sectores de atividade que prosseguem os objetivos dessa Organização. Assim também, em 1979 foi estatuída a Comissão Nacional para a UNESCO, que viria a relacionar-se privilegiadamente com o INIC e a JNICT em matéria de ciência, e mais tarde com a sucessora destas, a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT).

A Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (JNICT), que tivera a sua génese inspirada pelo desenvolvimentismo técnico-económico no quadro da relação com a OCDE, veio a assumir a promoção e orientação do Sistema Científico-Técnico Nacional (SCTN) ao longo de um período dilatado (1967-1997). Desde a sua criação até 1974, a JNICT esteve sob a tutela da Presidência do Conselho de Ministros, tutela a que regressaria em 1981.

Desde 1967, a JNICT teve a seu cargo a administração das bolsas INVOTAN (Comité Científico da OTAN), depois alargando progressivamente o âmbito de actuação e a base de financiamento. Coube também à JNICT a representação ou coordenação da participação do país em reuniões internacionais (OTAN, OCDE, ONU, etc.). De referir ainda a constituição de estruturas internas, designadas comissões permanentes: de Estudo do Espaço Exterior, da INVOTAN, da Cooperação Científica e Técnica com a OCDE e com as Comunidades Europeias. Entretanto, em 1972, a JNICT assumiu também a função de gabinete de planeamento, contribuindo para a elaboração do IV Plano de Fomento na área da ciência e tecnologia, área que em anteriores planos não fora individualizada. Refira-se ainda o arranque do trabalho de inventariação dos recursos em Ciência e Tecnologia em Portugal, sendo em 1973 publicados os primeiros dados relativos a despesa, pessoal e bibliografia.

Em meados da década de 70, iniciou-se um longo processo de reordenamento de estruturas científico-técnicas (C&T) do estado. Os Laboratórios do Estado que, sob a tutela dos ministérios sectoriais constituíram, até à década de 70, o principal sector de execução de investigação e desenvolvimento experimental (I&D), foram o principal alvo desse processo. Ao longo do período 1974-1985, registaram-se cisões, fusões e reorganizações nos Laboratórios do Estado. Neste respeito destaca-se a criação do Laboratório Nacional de Energia e Tecnologia Industrial (LNETI), em que foram integrados o Laboratório de Física e Engenharia Nuclear (LFEN) e serviços da Junta de Energia Nuclear, o Instituto Nacional de Investigação Industrial (INII), os serviços laboratoriais das Direcções-Gerais de Combustíveis e dos Serviços Eléctricos, e a Inspecção-Geral dos Produtos Agrícolas e Industriais.

Entretanto, formulada a candidatura de adesão às Comunidades Económicas Europeias em 1977, e assinado o acordo de pré-adesão em 1980, Portugal acedeu a membro de facto da União Europeia no início de 1986. No quadro da integração europeia, a política nacional ganhou em mais parceiros e mais mecanismos de política externa, incluindo fontes e instrumentos de financiamento. Datam de então os acordos e adesão de Portugal ao CERN (Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear), em 1986, e o início do processo de adesão ao ESO (European Southern Observatory) e à ESA (European Space Agency), que permitiram colocar equipas portuguesas nesses grandes projetos internacionais. No plano interno, em 1987 os programas para bolsas de formação avançada e os programas de apoio financeiro a projetos, oferecidos pela JNICT, abrangiam já todas as áreas científicas. Em 1988, a Assembleia da República aprovou a Lei sobre a Investigação Científica e o Desenvolvimento Tecnológico, que determinava a reestruturação da JNICT e enquadrava os seus programas no Quadro Comunitário de Apoio (QCA), consolidando o seu papel como instituição financiadora do SCTN.

O curso da política científica no quadro do projecto europeu

No 1º Quadro Comunitário de Apoio (1989-1993) foram incluídos, entre outros, o programa CIÊNCIA (Criação de Infraestruturas Nacionais de Ciência, Investigação e Desenvolvimento) e o programa Estrutural de Desenvolvimento da Investigação Científica e Tecnológica (PEDICT). Com apoio destes programas e do programa europeu STRIDE foram criadas a Agência de Inovação (ANI) e a Fundação para a Computação Científica Nacional (FCCN), bem como apoiados projetos de infraestruturas e equipamentos e o programa de formação avançada. Um pouco por todo o país, foram constituídos centros e unidades de investigação visando a organização e enquadramento institucional das atividades de investigação em curso nas instituições de ensino superior.

Com o impulso do pacote de medidas suportadas em fundos estruturais europeus, a partir de 1990, e após a extinção do INIC em 1992, e transferência das suas principais atribuições para a JNICT, esta ganhou vasto protagonismo na gestão do Sistema Científico e Técnico Nacional (SCTN). Porém, a própria JNICT iria perecer nessa mesma avalanche (Decreto-Lei n.º 188/97).

Em 1995, a criação do Ministério da Ciência e Tecnologia terá correspondido a recomendação da OCDE visando a integração de políticas nacionais e internacionais. Tal remodelação institucional terá sido desencadeada então uma vez assegurada a perspectiva de administração de abundantes fundos comunitários. A breve prazo, em 1997, a própria JNICT foi extinta e os seus meios e atribuições distribuídos por três novas entidades: Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) que assumiu funções de avaliação e financiamento, o Instituto para Cooperação em C&T Internacional (ICCTI), e Observatório das Ciências e Tecnologias (OCT) com funções de observação, inquirição e análise – sob a tutela do novo Ministério.

Dos Laboratórios do Estado aos Consórcios Internacionais

Em breve, o maior sector de execução – Laboratórios do Estado – seria alvo de profundo exame e reorganização. Os laboratórios do estado (independentemente da designação concreta) haviam sido criados como estruturas científico-técnicas de aconselhamento, de apoio à decisão e de intervenção técnica no âmbito de ministérios sectoriais – à semelhança do que acontece noutros países.

A Resolução do Conselho de Ministros n.º 5/96 que “Encarrega o Ministro da Ciência e da Tecnologia de proceder às acções necessárias à reforma das instituições públicas de investigação científica e tecnológica” desencadeou a avaliação dos Laboratórios do Estado. Esse processo foi liderado por um Comité Internacional de Aconselhamento, presidido entre 1997 e 2001 por Jean-Pierre Contzen, um cientista associado à Comissão Europeia e desta agente em iniciativas comunitárias. A avaliação foi levada a cabo por grupos internacionais de especialistas escolhidos por esse Comité de Aconselhamento, complementada e contraditada por comissões portuguesas de acompanhamento. O Comité Internacional definiu a metodologia e validou a avaliação, sobre ela elaborando um Relatório intitulado “Os Laboratórios do Estado: Um Sistema a Necessitar de Reengenharia – 1997” contendo análise e recomendações. Sobre os resultados da avaliação o Governo adoptou orientações de alegado reforço, valorização e diversificação das actividades de investigação científica nestes laboratórios (Resolução n.º 133/97).

O Governo estabeleceu depois o “Regime Jurídico das Instituições de Investigação” (Decreto-Lei n.º 125/99). Aí se define Laboratório do Estado como instituição pública criada e mantida com o propósito de prosseguir objectivos da política científica e tecnológica, e se afirma que são formalmente consultados para efeitos da definição dos programas e instrumentos da política científica e tecnológica. Aí também se define Laboratório Associado como instituição de investigação privada sem fins lucrativos e com estatuto de utilidade pública, ou instituição pública que, não sendo laboratório do Estado, esteja associada à prossecução de objectivos de política científica e tecnológica. Tratava-se de um novo conceito visando facilitar a constituição de unidades mistas, de maior escala, passíveis de financiamento público.

No mesmo ano foram fixados o Estatuto do Bolseiro de Investigação Científica – Decreto-Lei n.º 123/99 e o Estatuto da Carreira de Investigação Científica – Decreto-Lei n.º 124/99. Até então a categoria de investigador só existira em carreira especial no quadro de alguns ministérios.

Volvidos apenas seis anos, o Governo determinou novo processo de avaliação (Resolução n.º 198/2005) antecipando nova reorganização. Cada laboratório do Estado entregou relatório circunstanciado; o grupo internacional de trabalho procedeu a visita e produziu relatório de análise e recomendações; após audição foi produzido relatório conclusivo. Após o que o Governo elaborou proposta de reforma dos laboratórios, em articulação com o grupo internacional e no quadro do Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado. Daí resultou a Resolução n.º 124/2006 que, mediante cisão e fusão de várias entidades reorganizou o elenco de Laboratórios do Estado, desta vez em número de nove. Uma redução de quatro face aos treze reconhecidos na anterior avaliação.

No mesmo diploma foi consagrado o modelo de “consórcio de investigação e desenvolvimento” com a natureza de associação sem fins lucrativos, articulando instituições de ensino superior, Laboratórios do Estado, laboratórios associados, empresas e outras entidades nacionais ou estrangeiras, incluindo parcerias internacionais e a própria FCT, em torno de objectivos comuns.

Nessa mesma Resolução n.º 124/2006 já se encontravam expressamente anunciados os seguintes Consórcios: Biociências e biotecnologia, com ênfase em aplicações a agricultura, florestas e pescas (BIOPOLIS); Física e computação avançada (FISICA-N); Riscos públicos (RISCOS); Oceanografia e ciências e tecnologias do mar (OCEANOS); Ciências e tecnologias para o espaço (ESPAÇO); Promoção da participação portuguesa na política Europeia de I&D para a segurança (SEGURANÇA).

Para financiamento desses consórcios foi criado o equivocamente designado Programa Mobilizador dos Laboratórios do Estado, financiado através da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e da Agência para a Sociedade do Conhecimento (UMIC). A criação de Consórcios emergiu assim associada ao reforço da cooperação dos Laboratórios do Estado com Laboratórios Associados, unidades de I&D, Instituições do Ensino Superior, empresas e outras entidades, nacionais ou estrangeiras; mas também associada à notória diluição das atribuições próprias dos Laboratórios do Estado e redução do seu peso no SCTN.

Segundo o recente Inquérito ao Potencial Científico e Tecnológico Nacional (IPCTN) de 2020, os Laboratórios do Estado e respectivas tutelas são: Instituto Hidrográfico (IH) – Ministério da Defesa Nacional; Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária (INIAV) – Ministério da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural; Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF) – Ministério da Justiça; Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) – Ministério da Saúde; Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) – Ministério do Mar; Laboratório Nacional de Energia e Geologia (LNEG) – Ministério do Ambiente e da Transição Energética; Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) – Ministério das Infraestruturas e da Habitação. São, pois, sete Laboratórios face a nove em 2006 e treze em 2002. Ainda que no entretanto hajam sido criados: o Instituto Português do Mar e da Atmosfera que sucede ao Instituto de Meteorologia agregado a uma das unidades do INRB; o Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária (INIAV) que acolhe anteriores INIA, LNIV e parte do INRB. Quanto ao Instituto de Investigação Científica Tropical (IICT) e Instituto Tecnológico e Nuclear (ITN), haviam sido extintos e integrados no sector Ensino Superior; com excepção do Arquivo Histórico Ultramarino, que transitou para a Direção-Geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas.

O referido Programa Mobilizador dos Laboratórios do Estado visaria sobretudo libertar recursos para objectivos mais vastos: estágios nas estruturas de pesquisa europeias a que Portugal aderira – CERN, ESA, ESO, EMBL; doutoramentos/pós-doutoramentos em parcerias com universidades e institutos de investigação norte-americanos – MIT, CMU, UTAustin, NASA, NIH. Particular enfoque incide sobre a MIT Portugal Partnership (MPP) que vem ganhando assinalável escala, reunindo já sessenta entidades, entre as quais grandes empresas nos respectivos sectores como GALP, EDP, Autoeuropa, Martifer, CIPAN, etc.

Numa internacionalização levada ao limite, em 15 de Fevereiro de 2018 foi instituída com pompa e circunstância a iniciativa goPORTUGAL – Parcerias Globais em Ciência e Tecnologia, com a participação também de parceiros portugueses. Anunciando: valorizar a internacionalização da investigação científica e tecnológica, criar emprego qualificado e fomentar o crescimento de empresas de base científica e tecnológica; promover a mobilidade internacional de estudantes, docentes e investigadores, e o relacionamento com as correspondentes comunidades portuguesas no estrangeiro. E concluindo, valorizar o relacionamento Atlântico de Portugal no âmbito da ciência, tecnologia e inovação.

Já em 2019, foi anunciada a Agência Espacial PortuguesaPortugal Space” (Resolução n.º 55/2019) constituída como associação de direito privado sem fins lucrativos tendo como fundadores a FCT, ANI, Direção-Geral de Recursos da Defesa Nacional e a Região Autónoma dos Açores. A FCT procedeu à transferência das atividades prosseguidas no âmbito do Programa Espaço para a nova Agência, que terá o encargo de executar a Estratégia Portugal Espaço 2030 e articular a gestão dos vários programas nacionais ligados ao Espaço com a Agência Espacial Europeia ESA.

Já neste ano de 2021, novo impulso de internacionalização emerge nos designados Programas de Parcerias para o Futuro com as quatro referidas universidades norte-americanas – The Massachusetts Institute of Technology (MIT), Carnegie Mellon University (CMU), University of Texas at Austin (UTA) e Harvard Medical School (HMS) – e bem assim com a Sociedade Fraunhofer (Alemanha) e EPFLausanne (Suíça).

Da formação de recursos Humanos

A formação de investigadores como força de trabalho especializada e cobrindo domínios progressivamente mais amplos, tem sido objectivo constante da política de Ciência e Tecnologia, que o contexto internacional e a integração europeia vieram acelerar.

O leque de oferta de bolsas de estudo, como instrumento de formação avançada, foi alargado para incluir não só a frequência de pós-graduações em estabelecimento de ensino superior como também a realização de estudos avançados em contexto laboral – produzindo trabalho científico. Cada vez mais, a investigação é desenvolvida por investigadores em situação de precariedade, seja com bolsa de investigação seja com contrato a termo certo ou incerto.

Com efeito, para além das bolsas de doutoramento e pós-graduação, com meta de conclusão e duração precisas, em 1989 surgiu o conceito de bolsa de investigação (Decreto-Lei n.º 437/89) sem contexto nem duração estritos, que desde então tem funcionado como equivoca formulação de relação de trabalho precário. Dez anos volvidos, o estatuto do bolseiro de investigação científica (Decreto-Lei n.º 123/99) veio reafirmar essa opção. Mais cinco anos volvidos este estatuto é reformulado (Lei n.º 40/2004) nos seguintes termos: “O presente estatuto define o regime aplicável aos beneficiários de subsídios, atribuídos por entidades de natureza pública ou privada, destinados a financiar a realização, pelo próprio, de actividades de investigação … Os subsídios a que se refere o número anterior designam-se por bolsas, sendo concedidos no âmbito de um contrato celebrado entre o bolseiro e uma entidade de acolhimento … As remunerações que o bolseiro eventualmente aufira no âmbito de relação jurídico-laboral ou prestação de serviços não são consideradas bolsas…”

Mais doze anos volvidos, sem prejuízo de prosseguir o programa de atribuição de bolsas de pós-doutoramento, o Governo determina: o regime de contratação de doutorados destinado a estimular o emprego científico e tecnológico “aplica-se à contratação a termo resolutivo de doutorados para o exercício de atividades de investigação científica, desenvolvimento tecnológico, gestão ou comunicação …” (Decreto-Lei n.º 57/2016). E a Lei do Orçamento do Estado para 2017: “No âmbito da estratégia de combate à precariedade … o Governo apresenta à Assembleia da República … um programa de regularização extraordinária dos vínculos precários na Administração Pública para as situações do pessoal que desempenhe funções que correspondam a necessidades permanentes dos serviços, com sujeição ao poder hierárquico, de disciplina ou direção e horário completo, sem o adequado vínculo jurídico …”. Para esse efeito, o Governo entendeu estabelecer procedimentos (Portaria n.º 150/2017) que, sobrepondo atribuições de órgãos transitórios agora instituídos (Comissões de Avaliação Bipartidas) com competências dos órgãos estatutários das entidades públicas, criou de facto um impasse que protela a regularização dos vínculos.

Ainda quanto ao regime de contratação de doutorados, «… as bolsas de pós-doutoramento serão justificadas apenas num período necessariamente curto de formação pós-doutoramento (Decreto-Lei n.º 123/2019) e deverão ser limitadas a doutorados cujo grau académico tenha sido obtido há menos de três anos, não podendo ser celebrado novo contrato de bolsa após o seu termo, entre a mesma entidade e a mesma pessoa.» Assim aparentando promover contrato de trabalho e constituição de vínculo, por via da negação de bolsa.

A formação intensiva de trabalhadores científicos altamente qualificados e produtivos em numerosos domínios do conhecimento, por um lado, e o alargamento das fronteiras da ciência e da tecnologia, por outro, são dois processos embrincados um no outro. Multiplicam-se programas de formação e de investigação e inovação, alimentados por recursos maioritariamente públicos, gerando um proletariado qualificado a par de start-ups promissoras, de que empórios industriais serão os primeiros beneficiários.

O Espaço Europeu da Investigação

O Espaço Europeu de Investigação – EEI (European Research Area – ERA) nasceu em Janeiro de 2000, quando a Comissão Europeia (CE) publicou a comunicação “Rumo a um Espaço Europeu da Investigação”. Aí procedia à comparação entre a União Europeia e os EUA e Japão, no plano da investigação científica segundo indicadores a saber: proporção do PIB aplicado em I&D, contribuições de origem pública e privada do seu financiamento, balança comercial de produtos de alta tecnologia, proporção de investigadores na força de trabalho empresarial, fluxo de estudantes de pós-graduação de um para o outro lado do Atlântico, etc. A comparação era não só desvantajosa como também revelava tendência negativa. E referindo-se à investigação fundamental, a CE afirmava “Ela é o produto de uma criatividade que não deveria desaparecer na Europa do século XXI”, como se estivesse ameaçada.

A estratégia de Lisboa e as metas de Barcelona adoptadas pelos Conselhos Europeus de Março de 2000 e Março de 2002, respectivamente, vieram precisar e oficializar o projecto do Espaço Europeu de Investigação ao apontar um incremento do esforço em I&D de 2 para 3% do PIB, sendo 2/3 de origem privada, e a elevação da força de trabalho em I&D de 6 para 8 por mil trabalhadores activos. Se a União Europeia conseguisse aumentar as suas aplicações em investigação para o nível fixado em Barcelona, estimava que o seu crescimento económico aumentaria 0,5% e, a partir de 2010, seriam criados anualmente 400 mil novos postos de trabalho. Em vista de alcançar esses objectivos, a Comissão admitiu ter de incrementar o financiamento em I&D à taxa anual de 8% e duplicar a dotação no VII Programa Quadro de Investigação, tendo presente que das propostas submetidas ao programa então em curso haviam sido financiadas apenas 20%, por escassez de fundos não por insuficiente qualidade científica.

A Comissão fixou então seis objectivos: i) criação de “centros Europeus de excelência” transnacionais, articulando empresas e universidades em domínios “chave”. ii) lançamento de “plataformas tecnológicas”, combinando as esferas empresarial, financeira e académica, e autoridades regulamentadoras, em torno de uma agenda nacional e europeia comum. iii) reforço da investigação fundamental, justificado na base das diligências feitas pela comunidade científica nos anos precedentes e do reconhecimento, pela indústria, do seu impacto positivo para o desempenho económico. iv) captação dos “melhores investigadores” para que se fixem na Europa, e o incremento da força de trabalho científico. v) apoio directo à construção e operação de infra-estruturas Europeias. vi) coordenação de programas nacionais, afectando meios adicionais à sua abertura e articulação em rede, visando a integração em certas áreas, e reforçando o apoio directo às organizações de investigação intergovernamentais (como CERN, ESO, EMBL).

A Comissão insistiu, também, na focalização do esforço da União em torno de consabidas políticas comuns, mais enfatizando duas novas áreas, designadamente: Uma, o “Espaço”, mediante o aprofundamento da cooperação da CE com a ESA, conducente a um “Programa Espacial Europeu” abarcando a navegação (Galileo), a observação/ monitorização ambiental/ segurança (GMES) e as telecomunicações, tecnologia autónoma para o transporte espacial, e a exploração científica do espaço. Outro, a “Segurança”, abrangendo segurança pessoal, de estado e de infraestruturas, justificada pela ameaça do crime organizado e terrorismo internacional, e ainda missões de preservação de paz e reforço da segurança internacional (enunciado que extravasa o território europeu e aproxima a dimensão militar) antecipando um novo “Programa de Investigação para a Segurança Europeia”. Era clara a determinação industrial e internacional das novas “áreas chave” do Espaço Europeu de Investigação a que os estados-membro da União Europeia se comprometiam então. E que foram acrescentando, depois.

“Em Dezembro de 2020 a Comissão, o Conselho e o Parlamento Europeu chegaram ao acordo político do Horizonte Europa, o maior programa transnacional de financiamento de investigação e inovação. O Horizonte Europa terá um orçamento de cerca de 95,5 mil milhões Euro, a preços correntes.” A metodologia está testada, os compromissos em torno de “grandes” projectos estabelecidos entre os governos, a Comissão, o Parlamento, e os lobbies de todos os poderes credenciados. A política científica em Portugal passa por esses crivos e corredores.

A contribuição portuguesa será, como tem sido, o trabalho de muitos trabalhadores científicos qualificados em actividades de investigação, desenvolvimento experimental e inovação técnica, residentes no país ou emigrados; serão ainda as instituições que os acolhem e os meios de trabalho de que dispõem. Mas as realizações alcançadas serão em benefício da população portuguesa, do seu território, da rede de laços internacionais com que se articula? Mais basicamente: estarão os portugueses organizados e trabalhando para o seu próprio progresso?

Do governo da Ciência

Estamos em Portugal. Nas últimas quatro décadas (1982-2019), a despesa nacional em I&D em percentagem do PIB quintuplicou, e o número de investigadores (ETI) por mil de população activa decuplicou. O número de doutoramentos por ano decuplicou também. Este crescimento é atribuível ao crescimento mais expressivo dos sectores ensino superior e empresas, enquanto o sector Estado estagnou. Nesse crescimento destacam-se sobretudo as áreas “tecnologias de informação e comunicações” e “saúde”.

Os modelos de governo do SCTN preveem um órgão consultivo do Governo para as áreas da ciência, tecnologia e inovação, com composição pluridisciplinar e plurissectorial, um fórum de reflexão e aconselhamento que reúna personalidades desde o mundo académico ao empresarial. Tal órgão, cuja designação precisa e composição concreta tem variado, tem dado contribuição e exercido influencia desconhecidas. Conselho Superior ou Nacional, de Ciência e Tecnologia (e Inovação) foram constituídos ou reconstituídos sete vezes em 35 anos, a mais recente em 2021. A constituição de tal Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia remonta a 1986. Inactivo desde 1995 e reestruturado em 1996, na prática não chegou a funcionar. Após mais oito anos de inactividade foi reestruturado de novo em 2002 e passou a ser designado Conselho Superior de Ciência, Tecnologia e Inovação, “assinalando a importância do impacto económico da Inovação para o desempenho do tecido empresarial”, e passaria a assumir também competências na coordenação dos Laboratórios do Estado.

Presentemente, o CNCTI integra os presidentes da FCT, da ANI e do IAPMEI, juntamente com 20 individualidades de reconhecido mérito em diferentes áreas do conhecimento e da economia, escolhidas pelo Governo. E articula privilegiadamente com os Ministros de Estado da Economia e da Transição Digital, e da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, para aconselhamento científico e diálogo interministerial das políticas de ciência, tecnologia e inovação. Em Março deste ano 2021 realizou-se a primeira reunião plenária deste órgão com a sua actual composição. Nesta ocasião no âmbito das audições para consulta pública do designado Plano de Recuperação e Resiliência – para dar opinião não para dar orientação.

O que pensaria e proporia o CNCTI se a sua visão e proposta fossem as linhas de força da política nacional para a Ciência e a Tecnologia? E se a sua composição integrasse representação de sociedades científicas e instituições científicas? Porque é difícil não recear que a condução da política nacional vem sendo ditada pelas grandes opções da União Europeia e os grandes interesses económicos que habitam os corredores de Bruxelas.