As Esquerdas na Democracia Portuguesa
Nesta edição do centenário da revista Seara Nova, 1921-2021, para a qual a direção da revista amavelmente me convidou a participar, convite que muito me honra e agrada, vou centrar a análise no papel das esquerdas na democracia Portuguesa, por razões de foco e economia de espaço, mas não deixarei de me referir aos outros partidos relevantes à direita (sobretudo PSD e CDS-PP), já que a ideia era referir a situação política na democracia portuguesa desde a transição democrática.
I – O sistema político português e as relações entre a esquerda radical e os socialistas
Portugal é um país fundamentalmente homogéneo em termos de etnia e língua, também no que diz respeito à fé religiosa. Por outras palavras, o país não tem minorias significativas nestas áreas. No entanto, Portugal tem desigualdades socioeconómicas extremamente grandes, que, em geral, se mantiveram inalteradas desde, pelo menos, os anos oitenta (em termos de posição do país nos rankings internacionais, claro). Além disso, estas desigualdades enquadram-se claramente num padrão geográfico (ver Freire, 2007). Para além das questões socioeconómicas e, sobretudo, das desigualdades, o nível de integração religiosa também tem um potencial significativo de polarização política. Curiosamente, porém, estas desigualdades sociais baseadas territorialmente não são uma grande fonte de controvérsia política. Isto acontece, muito provavelmente, porque o sistema institucional do país (Estado unitário e altamente centralizado), que não inclui a regionalização ou uma segunda câmara parlamentar para representar as regiões, não fornece nenhum canal para a expressão de quaisquer (potenciais) reivindicações. Outra razão pode ser a proibição da Constituição de partidos políticos regionalistas. Para além destas fontes sociais de polarização política, existem também as divisões políticas como tal, que constituem o quadro para o conflito no sistema político-partidário.
Em termos da dimensão do executivo-partidos, a democracia portuguesa está basicamente próxima do modelo consensual (Freire, 2007). Por outras palavras, proporciona condições favoráveis à expressão de identidades e interesses minoritários. No entanto, a partir de 1987 tem havido uma mudança para a democracia maioritária, mas isso deveu-se mais à mudança do comportamento dos eleitores do que a qualquer alteração real no desenho das instituições políticas, nomeadamente no sistema eleitoral. No entanto, desde 2009 há um regresso às características mais consensuais na política com mais fragmentação do sistema partidário, o aparecimento de novos partidos ou a subida dos pequenos (BE), o uso mais frequente de governo de coligação (à direita) ou de governo minoritário (ao centro-esquerda e à esquerda) (ver Freire, 2010 e 2017b), situação esta agravada ainda mais desde 2015 e, sobretudo, 2019.
Apesar da existência de um governo descentralizado para as regiões dos Açores e da Madeira, Portugal sempre (ou seja, desde a transição para a democracia) teve um sistema político mais próximo do modelo maioritário na dimensão federal-unitária (Freire, 2007). Com efeito, do ponto de vista comparativo, o sistema político é extremamente centralizado e unitário, até porque as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira não representam mais do que cerca de 5% da população do país. Ou seja, se excluirmos estas regiões, do ponto de vista da expressão dos interesses e identidades das populações residentes em regiões periféricas, com um controlo limitado sobre os recursos económicos, o sistema político português não facilita a representação de minorias de base territorial.
II – As relações entre a esquerda radical e os socialistas (sociais-democratas) em Portugal, 1974-2015, relativas às posições políticas de cada campo
Antes da Revolução dos Cravos, de 25 de abril de 1974, que iniciou a chamada “terceira vaga” de democratização mundial, as eleições livres e justas com sufrágio universal e um sistema partidário competitivo eram inéditas em Portugal. A transição democrática em Portugal foi iniciada por um golpe de Estado liderado por oficiais de patente não muito elevada, i.e., sobretudo capitães (para mais detalhes e referências bibliográficas, ver Freire, 2007). Embora o golpe possa ter sido planeado com motivos de base corporativa, teve também contornos de uma revolução política para liberalizar a sociedade, para derrubar um regime decrépito e pôr fim às intermináveis guerras coloniais. Mais, é importante notar que os militares continuaram empenhados em realizar eleições constituintes um ano a contar da data do golpe. Estas eleições realizaram-se no dia 25 de abril de 1975 e obtiveram uma afluência de 92%. Um ano depois, em 25 de abril de 1976, realizaram-se as primeiras eleições parlamentares constitucionais.
Rapidamente surgiu um sistema partidário estável e, em 1976, quatro partidos representavam quase 90% do eleitorado. Para além de um breve período em meados da década de 1980, quando o Partido Renovador Democrático (PRD), difusamente de centro-esquerda, surgiu e desapareceu, o sistema partidário manteve-se relativamente estável. A tendência geral é que o voto se concentre nos dois partidos centristas “catch-all“: o Partido Socialista (PS), de centro-esquerda, e o Partido Social Democrata (PSD), de centro-direita. Este último não é, como o seu nome sugere, um partido social-democrata, mas sim um partido liberal (vide, por exemplo, as sucessivas filiações internacionais no Parlamento Europeu). Ao lado do PS e do PSD, o Partido Comunista Português (PCP) e o conservador Centro Democrático Social (CDS) tornaram-se os principais partidos do sistema. Após a derrota nas eleições legislativas de 1991, o CDS mudou a sua liderança, o seu perfil ideológico e o seu nome, tornando-se o Partido Popular (PP). Alguns partidos mais pequenos obtiveram assento no parlamento durante o período democrático (para mais detalhes, ver Freire, 2007, 2010 e 2017). Entre estes partidos, vale a pena referir o Bloco de Esquerda (BE). Esta organização libertária de esquerda foi originalmente uma coligação de dois antigos partidos de extrema-esquerda (PSR e UDP) e um movimento político (Política XXI), que foi formado para concorrer nas eleições legislativas de 1999. No entanto, ao longo dos últimos anos, passou a ser visto como um único partido político.[1] [2] [3] [4] [5]
Mais recentemente, nomeadamente desde 2015 e, sobretudo, desde 2019, ganharam representação (por ora ainda) pequenos partidos como o PAN (Pessoas, Animais e Natureza), o LIVRE, a Iniciativa Liberal e o Chega. Porém, tirando o PAN (1 deputado eleito em 2015, 4 deputados eleitos em 2019), as outras forças não têm ainda, pelo menos no Parlamento da XIV Legislatura, uma existência para lá da irrelevância estatística: 1 deputado eleito para cada um deles em 2019).
No caso português, a dimensão cultural-étnica não é relevante nem para a concorrência política nem para o domínio da identificação. O mesmo se pode dizer da dimensão urbano-rural. Para o período 1975-1996, a dimensão de competição pós-materialista era irrelevante tanto como domínio da concorrência como da identificação. Até ao final dos anos noventa, os partidos quase não tinham concorrência de relevo nesta dimensão. Com a emergência do BE (e depois o PAN, o LIVRE e o Chega) como forças parlamentares, no entanto, novas questões políticas tornaram-se um domínio de competição entre a esquerda (particularmente o BE e o PAN, mas também o PCP e PS) e a direita (PSD e particularmente o PP, mas também o Chega). De 1996 até pelo menos 2021, o pós-materialismo tem sido uma dimensão pertinente da concorrência política, embora apenas com significado de médio nível.
Durante a primeira fase da transição de Portugal para a democracia, de 25 de abril de 1974 a 25 de novembro de 1975, o apoio ao regime foi uma questão altamente contenciosa que colocou o PCP e vários outros partidos de extrema-esquerda na oposição aos partidos pró-liberais democráticos. O PCP defendeu uma democracia popular ao estilo soviético, enquanto os partidos de extrema-esquerda defenderam os modelos comunistas do Terceiro Mundo. O PS, PSD e CDS, por outro lado, defenderam seguir o modelo democrático ocidental. Em 25 de novembro de 1975, um contra-ataque por elementos moderados dentro do MFA, que havia impedido uma tentativa de golpe de Estado da extrema-esquerda, estabeleceu uma democracia liberal duradoura. Desde então, o PCP normalizou a sua relação com a democracia parlamentar (ver Freire, 2007 e 2017), e a questão perdeu a maior parte do seu significado anterior. Em todo o caso, esta questão tem muito pouco significado para a nossa análise atual do período 1996-2021, com o único ponto relevante em relação às reservas do PCP e do BE relativamente ao sistema capitalista, que é um modelo de sociedade aceite, em graus diversos, pelos outros três partidos parlamentares. O Chega, um por ora ainda micro-partido de direita radical ou de extrema-direita, pode, porém, mudar de novo esta situação, colocando em causa o regime democrático e constitucional em vigor desde 1976.
No que se refere à política externa, as principais questões da concorrência têm-se preocupado com o alinhamento dos partidos políticos em termos dos dois blocos políticos e militares da Guerra Fria e da integração europeia. Em relação à primeira, os partidos pró-liberal democráticos, PS, PSD e CDS, apoiaram o Ocidente e as suas organizações militares, enquanto o PCP simpatizava com o bloco soviético e a sua organização militar. Como vimos no que diz respeito ao apoio ao regime, esta dimensão política da concorrência corta transversalmente a divisão esquerda-direita. Com a queda do muro de Berlim e o fim da Guerra Fria, esta divisão perdeu a maior parte do seu significado, embora a sua presença contínua permaneça evidente em relação a determinadas questões internacionais, como o bombardeamento da NATO à Sérvia em 1999 e a Guerra do Golfo de 2003. Estas divisões têm, por vezes, o poder de forçar o alinhamento ideológico que reforça a divisão política esquerda-direita. Um exemplo disso pode ser visto na resposta política à Guerra do Golfo de 2003, que foi oposta por todos os partidos de esquerda e apoiada pelos partidos de direita.
A integração europeia é uma questão que atravessa a divisão ideológica esquerda-direita, embora de uma forma um pouco menos simples. Durante a transição para a democracia, o PCP e outros grupos de esquerda propuseram caminhos alternativos socialistas e do Terceiro Mundo. Isto explica porque é que a integração europeia se tornaria num grande objetivo político do PS, PSD e CDS. Desde meados dos anos setenta e até 1992, o apoio político à Europa foi monopolizado por estes partidos amplamente pró-europeus, pelo que, a partir de 1988 (ano das primeiras eleições diretas para o Parlamento Europeu), o PCP foi forçado a moderar significativamente a sua resistência à Europa (ver Freire, 2007 e 2017). No entanto, após a sua retumbante derrota nas eleições de 1991, o recém-renomeado PP seguiu o seu novo líder na adoção de uma posição muito mais cética em relação à União Europeia e às suas propostas de moeda única europeia. No entanto, esta mudança de rumo foi de curta duração: após a eleição de um novo líder em 1997, o partido aceitou a inevitabilidade da nova moeda. Com a subida ao poder do PP como parte da coligação PSD-PP que formou governo em 2002, o partido assumiu uma posição mais prudente. Apesar da posição do PP, é um facto que há muito pouco para separar o PSD e o PS em questões europeias. Um novo elemento da divisão esquerda-direita sobre as questões europeias tornou-se público na sequência das eleições europeias para o Parlamento Europeu de 2004, quando os partidos de esquerda da oposição rejeitaram o pacto de estabilidade da UE defendido pelos partidos de direita que governavam. O partido Chega, ultra-liberal na esfera doméstica, propõe um forte protecionismo na esfera internacional, o qual, se for levado a sério, pode claramente obrigar à saída da União Europeia, porque combate o núcleo duro de alguns dos seus valores fundamentais.
As questões que proporcionam as melhores sobreposições com a divisão esquerda-direita em Portugal são, em primeiro lugar, as questões socioeconómicas e, em segundo lugar, assuntos religiosos. Seja como domínio da concorrência ou da identificação, ambas as questões permitem dividir os partidos em esquerda e direita, e ainda ordenar num continuum esquerda-direita que vai do PCP à esquerda, passando pelo BE, PS e PSD ao CDS-PP à direita (para mais detalhes e referências, ver Freire, 2007 e 2017). Em termos do domínio da concorrência, a dimensão socioeconómica (isto é, as controvérsias relativas à igualdade socioeconómica e ao papel do Estado na economia e na sociedade) é a mais significativa, com a dimensão religiosa a ter apenas um significado médio.
Durante a transição democrática, a Igreja Católica alinhou-se com os partidos democráticos pró-liberais contra a esquerda radical. Durante esse período, a polarização religiosa foi elevada. Desde então, a dimensão religiosa mal se registou como domínio da concorrência política, exceto quando se debatem políticas relativas a questões morais e/ou interesses da Igreja. Tem sido o caso de propostas de liberalização da legislação sobre o aborto (que é apoiada pela esquerda), ou a proposta de financiamento estatal para a Universidade Católica (que é apoiada pela direita) (ver Freire, 2007 e 2017).
No entanto, como dimensão da identificação, a questão religiosa sempre se revelou mais significativa do que a questão socioeconómica, com alguns estudos sobre o comportamento eleitoral português a revelarem que a frequência da igreja é melhor preditor do que a classe social. As questões pós-materialistas são mais pertinentes para o domínio da concorrência do que para o da identificação. Permitem-nos, mais ou menos, abranger os partidos da esquerda para a direita em termos das suas propostas políticas; no entanto, permitem uma previsão muito pobre dos alinhamentos de voto ou da posição individual dos cidadãos sobre o espectro político (ver Freire, 2007 e 2017).
III – As reservas e as baixas expectativas em relação ao governo da “Gerigonça“
O Presidente Cavaco Silva (CS), que deu posse a uma maioria governamental de esquerdas, no final de novembro de 2015, foi um dos atores políticos que mostrou maiores reservas e menores expectativas face a essa solução política, completamente nova na história da democracia portuguesa até então, e, a posteriori, sistematizou-os no segundo balanço dos seus mandatos presidenciais (ver Silva, 2018).
A primeira reserva levantada por CS a esta solução política tem a ver com o facto de ter sido a lista de coligações de partidos de direita (PSD, centro-direita, e CDS-PP, direita conservadora, ambos pertencentes ao PPE no Parlamento Europeu) que venceu as eleições com maioria relativa e, na história democrática portuguesa até então, foi sempre o partido ou a lista vencedora que liderou o governo (mesmo que tenha vencido apenas com maioria relativa). Por um lado, isso era verdade para Portugal, mas não era verdade para inúmeros outros países democráticos, caracterizados por políticas multipartidárias e governos de coligação multipartidária, onde vemos muitas vezes governos que não incluem o partido vencedor. Por outro lado, a situação não tinha paralelo comparável no passado da política portuguesa: sempre que a direita ganhara as eleições tinha tido sempre maioria absoluta (única ou multipartidária), não necessitando, portanto, do apoio da oposição (de centro-esquerda) para governar, e a única vez em que isso não aconteceu (em 1985) o país estava à beira de uma aliança alternativa (em 1987) , PS, PRD (um partido centrista formado com o incentivo e apoio do então Presidente da República, Ramalho Eanes, de alguma forma como o partido gaullista em França) e PCP, que não incluía o partido vencedor (PSD), uma solução que só foi inviável pelo então Presidente Mário Soares (do PS), que preferiu dissolver o Parlamento e convocar novas eleições legislativas, do que mudar de maioria política no mesmo quadro parlamentar.
A segunda reserva de fundo levantada por CS sobre uma aliança de esquerdas para o governo foi que os partidos à esquerda do PS partilhavam orientações anti-europeias e contra os blocos internacionais a que Portugal sempre pertenceu (nomeadamente a NATO, mas também a UE) e, por isso, a sua inclusão na esfera governamental colocaria em causa as opções estratégicas do país nestas duas áreas. Três notas valem-nos esta segunda reserva. Em primeiro lugar, o compromisso político democrático implica que os vários partidos que participam numa “coligação” admitem priorizar determinados temas e silenciar outros, de modo a permitir a aliança, tanto mais quanto menos peso relativo (eleitoral/parlamentar) têm. Foi precisamente isso que aconteceu em Portugal, tal como em vários outros países europeus com soluções como esta maioria parlamentar de esquerda: BE, PCP e PEV têm destacado o seu euroceticismo, o seu ceticismo face à NATO/OTAN e as suas exigências para a renegociação da dívida pública, em particular para permitir uma governação progressiva no espaço socioeconómico; o PS deu prioridade aos compromissos europeus, com contas públicas equilibradas e com a NATO, mas admitiu em troca uma governação progressista tão marcada quanto possível com as regras europeias, ou seja, com maior influência distributiva da esquerda radical, admitindo logo uma significativa inflexão de esquerda no tradicional centrismo ideológico do PS (ver Freire, 2017 e 2021).
Em segundo lugar, esta reserva de Cavaco Silva sofre de uma confusão entre o euroceticismo, que caracteriza efetivamente BE e PCP, e a Eurofobia, que não caracteriza nenhum dos partidos da esquerda radical portuguesa, e é típico de muita da direita radical e extrema europeia.
Terceiro, esta posição sofre, por um lado, um certo paroquialismo (este tipo de solução, com mais partidos eurocéticos nas alianças governamentais, já tinha sido testado sem problemas em vários países europeus) e, por outro lado, de demasiada aquiescência face à UE: uma dose equilibrada de euroceticismo (que a esquerda radical trouxe ao PS) pode ser (e tem sido), do meu ponto de vista, um estímulo para exigir da Europa melhores desempenhos e mudanças de rumo.
Quanto ao desempenho esperado do governo de esquerda, esperavam-se maus resultados nas áreas políticas e económicas, especialmente entre os seus detratores (os vários partidos de direita, grande parte do jornalismo mainstream, os principais interesses económicos, a UE, etc.), com CS à cabeça. No campo político, esperava-se uma solução política instável que não cumprisse a legislatura. A estabilidade política foi um traço forte desta solução política (e isso nunca existiu nas alianças formais ou informais do PS com os partidos à sua direita ao longo dos mais de 40 anos de democracia: quase nunca cumpriram a legislatura, exceto em 1995-1999, menos de metade do tempo era a regra), e hoje sabemos que a XIII legislatura foi plenamente cumprida, o que é muito bom porque os portugueses valorizam muito a estabilidade política. No entanto, Cavaco Silva deve ser creditado por estes resultados positivos: por um lado, exigindo acordos escritos e garantias de estabilidade para a legislatura; por outro lado, porque as fortes críticas ao governo de esquerda levaram a uma aliança mais coesa. O governo de esquerda e a aliança parlamentar também devem ser creditados aumentando a satisfação dos cidadãos com o funcionamento da democracia e aumentando a confiança nas instituições e nos políticos, que não é alheio ao escrupuloso cumprimento das promessas eleitorais (o oposto ao que aconteceu com a coligação de direita, 2011-2015) (ver Freire, 2017, e referências inclusas).
No domínio económico, os resultados também superaram todas as expectativas, e contrariaram os gritos de Cassandra de Cavaco Silva, dos partidos de direita e dos comentadores e jornalistas mainstream. Por um lado, o crescimento económico aumentou significativamente todos os anos, 2015-2019, mesmo sem descapitalizar o sistema de segurança social (como pretendia o PS com os cortes na TSU, que propôs reduzir as transferências de trabalhadores de baixos rendimentos para a segurança social para estimular a economia), e o desemprego foi reduzido. Ao mesmo tempo, rendimentos e direitos dos trabalhadores (a uma velocidade muito maior do que o inicialmente previsto pelo PS no seu manifesto eleitoral) e pensionistas (contra o congelamento das pensões inicialmente proposto pelo PS). Além disso, o investimento nos serviços públicos (ainda insuficiente, no entanto) foi recuperado e aumentado. Por outro lado, as regras europeias foram cumpridas e o equilíbrio nas contas públicas entrou numa trajetória de correção, 2015-2019, quer em termos de défice público (com resultados mais notáveis) quer em termos de dívida pública (com resultados menos famosos), agora (XIV Legislatura) de novo perturbada com o foco no combate à pandemia da COVID19 e a paragem económica que implicou em muitos sectores, com crescimento do desemprego e dos apoios do Estado aos indivíduos e às empresas. É claro que aquele desempenho macroeconómico da chamada «Geringonça» deveu-se também a um ambiente internacional favorável (crescimento económico internacional, petróleo a baixos preços, estímulos às intervenções do BCE nos mercados, nomeadamente através da compra de dívida, e do crescimento brutal do turismo em Portugal), mas também é muito difícil não dar crédito ao governo do PS e à maioria de esquerdas por tudo isto. Além disso, o PS pôde reivindicar o seu papel de âncora no cumprimento dos compromissos europeus e nas contas públicas equilibradas, enquanto a esquerda radical pôde reivindicar a sua influência numa governação mais progressista e distributiva em matéria socioeconómica. Uma solução win-win, portanto.
IV – As principais medidas da aliança de esquerdas, 2015-2019, e o papel da esquerda radical sobre eles
O mandato da coligação de direita durante os anos da Troika de 2011-2015 foi marcado por uma forte orientação neoliberal que foi muito além das exigências do Memorandum de entendimento com a Troika e do resgate financeiro (ver Freire, 2017). Isto incluiu cortes salariais para os trabalhadores do sector público, cortes nas pensões, cortes no emprego do sector público e reduções nos benefícios do Estado, bem como extensas privatizações que foram muito além de tudo o que estava contido no Memorando de Entendimento de 2011. Muitas das medidas introduzidas foram mesmo contrárias aos compromissos eleitorais adotados pelos vencedores das eleições de 2011. As políticas neoliberais introduzidas pelo governo durante este período foram uma das principais razões pelas quais os partidos de esquerda conseguiram chegar a um compromisso – para poderem reverter estas decisões.
Algumas das medidas emblemáticas tomadas pela aliança governamental de esquerdas, que mostram tanto uma mudança nas orientações políticas dos socialistas face às orientações de austeridade neoliberal como uma influência significativa dos partidos de esquerda radical nas mudanças feitas pelos socialistas, incluem o seguinte:
- Aumento do salário mínimo em 2016 e 2017;
- Reverter os cortes salariais do setor público, que o PS tinha previsto fazer ao longo de dois anos (2016-17), mas que foi concluído em 2016;
- Descongelação das pensões imediatamente em 2016 (o PS tinha planeado mantê-las congeladas);
- Suprimir as medidas propostas no manifesto do PS para facilitar aos empregadores a redução voluntária dos trabalhadores (despedimento conciliatório);
- Remoção das medidas propostas no manifesto do PS (PS, 2015) para reduzir o montante pago pelos empregadores nas transferências sociais (estas medidas foram propostas apenas para os trabalhadores de baixos rendimentos). Apesar de este ter sido removido por insistência do BE e do PCP, o PS planeia recuperar estes montantes em “ajustamento social” como moeda de troca para aumentar o salário mínimo que criou tensões entre o PS e os partidos à sua esquerda em 2017;
- Reverter as reduções ao imposto sobre as sociedades (IRC) implementadas em 2013-14 com a aprovação do PS, enquanto se reduziam salários e pensões;
- Restituição da semana de trabalho de 35 horas para os funcionários públicos[6];
- A restauração, em 2016, dos quatro feriados públicos que tinham sido suspensos pelo governo PSD/CDS-PP durante os anos da Troika;
- Travar todas as novas privatizações e inverter algumas das que estavam em curso (por exemplo, a da TAP, as dos transportes públicos locais e as do abastecimento de água);
- Aumentar o investimento nos serviços públicos (segurança social, educação, saúde) e reconduzi-lo pelo menos aos níveis da era pré-Troika, pôr termo ao outsourcing do trabalho do sector público para o sector privado;
- A introdução de limites estritos à capacidade dos credores de expulsarem as pessoas das suas casas por ficarem para trás nas suas hipotecas em determinadas circunstâncias (por exemplo, perda de emprego ou dificuldades financeiras).
V – Os resultados das eleições legislativas de 2019 e as suas consequências
O cenário saído das eleições de 6 de outubro de 2019 acabou com o governo da chamada “Geringonça“. Por um lado, porque ao vencer com cerca de 36,7% dos votos e 108 deputados – deputados (46,9%), o PS começou a precisar apenas, aritmeticamente falando, de um dos dois partidos da “Geringonça” (BE, 19 deputados, ou PCP-PEV, 12 deputados) para fazer uma maioria absoluta na Assembleia da República – AR. Por outro lado, porque apesar da aritmética, o PS poderia ter feito uma “aliança de grandes dimensões” (ou seja, muito acima do limiar da maioria absoluta) com toda a esquerda da “Geringonça” (BE, PCP-PEV) e até talvez incluindo também os novos partidos: “O Partido Livre” (LIVRE, um partido de esquerda libertário, como o BE, mas mais pró-europeu do que este último: 1 deputado) e o PAN (partido das Pessoas, Animais e Natureza, uma espécie de partido verde mas com uma agenda muito pró-animal: defesa integrada dos direitos dos humanos, dos animais e do ambiente). Mas esta solução ficou inviável pela indisponibilidade do PCP-PEV para acordos escritos, tal como o PAN. O LIVRE exigiu um acordo multilateral de todas as esquerdas para aderir a qualquer aliança desse tipo. O PS só poderia, por tudo isso, ter feito um acordo escrito com o BE, que estava disponível para isso (e, como já tinha dito, seria suficiente para uma maioria parlamentar absoluta). Mas o PS não quis muito fazê-lo e, por isso, desde finais de 2019 temos tido aquilo a que se chama (em Portugal) um “governo intermitente”, ou mais comumente, um governo pisca-pisca, por vezes pisca para a esquerda (ou seja, obtém apoio para passar medidas legislativas à sua esquerda), outras vezes pisca para a direita (ou seja, obtém apoio para passar peças legislativas à sua direita).
O PSD, com 27,9% dos votos e 79 deputados, teve a terceira maior derrota na história do partido. Todavia, por um lado, o resultado ficou muito acima dos maus resultados que auguraram a maioria das sondagens no início da campanha e, por outro lado, provou-se, sobretudo em comparação com o CDS-PP (4,25% dos votos e 5 deputados, o regresso ao chamado “partido do táxi”: uma expressão cunhada em Portugal para rotular o partido de direita conservadora nos seus tempos mais pobres, 1987-1995, nos tempos das maiorias absolutas do PSD e que esvaziaram o CDS-PP, quando um partido parlamentar de cerca de 4 deputados todos eles podiam ser transportados num único táxi), que a estratégia centrista, construtiva e moderadamente combativa de Rui Rio era mais eleitoralmente paga do que a estratégia polarizada e ultra combativa de Assunção Cristas (a líder do CDS-PP até então). E a evolução muito positiva do PSD ao longo da campanha também mostrou que as campanhas contam. No entanto, isto pode não ser suficiente para garantir a sobrevivência de Rio[7].
A direita tradicional ressentiu-se do aumento da fragmentação no seu espaço político (Aliança, PDR – Partido Democrático e Republicano, Iniciativa Liberal/IL que conquistou 1 deputado, Chega – um partido de protesto de direita radical que também ganhou 1 deputado), mesmo que apenas dois dos novos concorrentes tenham chegado ao Parlamento.
Os portugueses que gostaram da “Geringonça” como ela era…. deram uma notável vitória ao PS, mas privaram o partido de uma maioria absoluta, ou seja, em princípio e em teoria o PS precisaria de uma aliança para governar com estabilidade e, acima de tudo, com coerência político-ideológica. Além disso, uma aliança com as novas forças à esquerda (PAN, 3,28% dos votos e 4 deputados; o LIVRE, com 1,09% dos votos e 1 deputado), que está muito provavelmente por detrás do refluxo da esquerda radical tradicional, sobretudo o BE (que apesar de manter o número de deputados teve uma ligeira perda de votos), não seria suficiente para conseguir uma maioria parlamentar. Teve uma aliança com o PCP-PEV e/ou com o BE, 2015-2019. Mas o PCP-PEV (CDU: «Coligação Democrática Unitária») recusou “a cena do papel” (ou seja, um acordo escrito), pelo que o PS ficou apenas com o BE para compensá-lo com uma maioria parlamentar. Podiam ter feito uma maioria político-ideológica coerente PS-BE, mas António Costa (primeiro-ministro português e líder do PS, ou seja, o secretário-geral do partido desde meados de 2014) não o quis, apesar de ter declarado o contrário (o BE propôs o acordo que incluía o regresso ao pré-troika em termos de legislação laboral, entre outras coisas, mas os socialistas consideraram essa proposta inaceitável – embora criticassem a revisão da Troika dessas mesmas leis laborais durante a intervenção externa -, mas acima de tudo nem se preocuparam em fazer uma contraproposta). Uma última nota para o refluxo do PCP-PEV (com 6,46% dos votos e 12 deputados, uma perda de 5 lugares em relação a 2015; e uma prestação ao nível de 2002, quando o então líder comunista, Carlos Carvalhas, passou a liderança do partido em mau estado ao novo líder Jerónimo de Sousa, ainda à frente nos dias de hoje): alguns pensam que este é um efeito da participação no governo da geringonça. Tenho as maiores dúvidas sobre esta explicação pois todas as sondagens desde 2009 (muitas sondagens de opinião de facto: ver Freire, 2017 e 2021), têm revelado sempre uma maioria de eleitores do PCP-PEV (CDU) a favor das alianças governamentais à esquerda, nomeadamente com o PS. Mas aprofundar tal assunto é uma questão para outro artigo.
VI – O novo Governo para a XIV legislatura
Costa e o seu partido sabem que não podem ser derrotados pela direita na Assembleia da República porque o PS tem mais lugares (108) do que toda a direita junta (PSD: 79, mais CDS-PP: 5, mais IL e Chega: 2, igual a 86). Ou seja, só pode ser derrubado se houver uma “coligação negativa” entre a direita e a esquerda não-socialista. Além disso, Costa espera poder contar com a aquiescência do PSD em muitas matérias, sobretudo se o atual líder Rui Rio se mantiver à frente (como tem feito desde então). Por isso, rejeitou a aliança com o BE, uma solução que teria garantido estabilidade para toda a legislatura e uma certa coerência político-ideológica (à esquerda). As exigências do BE para uma aliança exigiam algum esforço político por parte do PS, como é óbvio (mas poderia ser de outra forma?), mas eram requisitos pragmaticamente exequíveis, pelo que só faltou mesmo a necessidade e a vontade do PS para uma tal aliança. Recordemos brevemente a proposta inicial do BE para um acordo parlamentar de legislatura. Primeiro, reverter as medidas do tempo da troika que facilitaram os despedimentos através da redução das compensações monetárias por despedimento, e ao que o PS também se opôs durante os anos da Troika. Segundo, eliminar a penalização dos mais novos e dos desempregados no período experimental para um novo emprego. Terceiro, um plano para a evolução do salário mínimo em quatro anos, para ser acordado quantitativamente em negociação PS-BE. Quarto, manter salvaguardas como na XIII legislatura sobre cortes, carreiras, impostos, TSU dos patrões – transferências para a segurança social dos empregadores-, revisão constitucional, leis eleitorais. Nada de verdadeiramente pesado, de facto, a não ser que isso implicaria alguma afronta aos patrões e ao «bloco central sindical» (UGT: uma aliança PS-PSD no campo sindical). Mas Costa nem se preocupou em fazer contrapropostas, o que só prova que não queria de facto fazer qualquer acordo escrito com o BE. Outra prova de que não havia vontade real de reeditar um acordo estável à esquerda por parte dos altos dirigentes do PS são as diferentes (e não coincidentes) razões apontadas para não fazer o acordo com o BE por altos responsáveis socialistas: as exigências (da esquerda radical) não seriam razoáveis (ministros Duarte Cordeiro e Mariana Vieira da Silva dixit); ou o PCP não queria um acordo escrito e, por isso, não fazia sentido concordar apenas com um dos três partidos radicais da esquerda da “Geringonça“, porque seria para privilegiar um dos parceiros em relação aos outros (Carlos César, presidente do PS, dixit). Resumindo, a “Geringonça” foi uma aliança tática para Costa, não uma opção estratégica.
Temos, por isso, um “governo intermitente”/“pisca-pisca” desde finais de 2019, que também tem algumas vantagens, como a potencial inclusão de toda a oposição na elaboração de políticas (uma espécie de coligação de grandes dimensões).
No entanto, no início da XIV Legislatura, António Costa disse que dará prioridade a conversas ad-hoc com os partidos à esquerda dos socialistas. Além disso, o PS retirou a proposta de reforma do sistema político-eleitoral com a criação de um sistema eleitoral misto com uma componente de círculos eleitorais unipartidários (o que levanta reservas muito profundas entre os pequenos partidos, da esquerda radical e não só) do programa de governo do PS, 2019-2023, apesar de tal proposta estar no manifesto eleitoral do partido para as eleições de 2019; e num acordo entre PS-BE-PCP houve ainda a nomeação de um ex-deputado do Bloco de Esquerda (o antigo líder do BE, Francisco Louçã) e de um ex-deputado comunista (o histórico alto funcionário Domingos Abrantes) para o Conselho de Estado, um conselho consultivo do Presidente da República. Estes foram todos sinais de alguma disponibilidade do PS para continuar a cooperar com a esquerda radical, no início da XIV Legislatura. Mas se é verdade que Costa dificilmente será derrubado por uma coligação negativa (esquerda e direita), a verdade é que era esperado no início da legislatura que ele pudesse ter uma vida difícil para aprovar legislativas, sobretudo se Rui Rio não continuasse a ser o líder do PSD (mas Rio tem-se mantido firme ao leme do PSD). E/ou se há uma governação muito centrista e, portanto, se formam muitas coligações ad-hoc negativas em peças legislativas específicas. Se for esse o caso, Costa só se pode queixar de si próprio, e das escolhas que fez no início da XIV Legislatura, 2019-2023.
Referências bibliográficas: Freire, André (2007), “Minority Representation in Portuguese Democracy”, Portuguese Journal of Social Science, Volume 6 (3), pp. 193-211. Freire, André (2010), “A New Era in Democratic Portugal? The 2009 European, Legislative and Local Elections”, South European Society and Politics, Vol. 15, Nº 4, pp. 593-613. Freire, André (2017), «Para lá da «Geringonça» - O Governo de Esquerdas em Portugal e na Europa, Contraponto. Freire, André (2021), «Left-Wing Governmental Alliance in Portugal, 2015-2019: A Way of Renewing and Rejuvenating Social Democracy?», Brazilian Political Science Review, 15(2), 2021, https://doi.org/10.1590/1981-3821202100020004 Lijphart, Arend (2012), Patterns of Democracy: Government Forms and Performance in Thirty-Six Countries, Yale, Yale U. Press. Silva, Aníbal Cavaco (2018), Quinta-Feira e Outros Dias - Livro 2: Da Coligação à «Geringonça», Lisboa, Porto Editora.
[1] O PS sempre foi membro da Internacional Socialista. [2] Até à década de 1990, o PSD tinha sido associado ao Grupo Liberal Democrata e Reformista Europeu (ELDR) no Parlamento Europeu. Desde o início da década de 1990, no entanto, tem-se alinhado com o Conservador Partido Popular Europeu (PPE). [3] Fundado em 1921, o PCP foi membro do Comintern até ao colapso desta organização (Cunha 1997: 37). No Parlamento Europeu, o PCP é membro do grupo parlamentar Esquerda Europeia/Esquerda Nórdica Verde (UEL/NGL). [4] O CDS foi fundado como um partido democrata-cristão. Após a adesão à UE, aderiu ao PPE. No início da década de 1990, começou a promover uma posição anti-UE, levando à sua expulsão do PPE em 1992. A seguir, aderiu à União para a Europa do Grupo das Nações (UPE). Depois de 1997, a posição do partido sobre a UE mudou, culminando com o seu regresso ao PPE em julho de 2004. [5] O BE elegeu o seu primeiro eurodeputado nas eleições europeias de 2004. No Parlamento Europeu, o BE (tal como PCP) é membro associado do grupo parlamentar UEL/NGL. [6] Esta medida foi finalmente aprovada pelo parlamento em 2 de junho de 2016 e pouco tempo depois aprovada pelo presidente e implementada em 1 de julho de 2016. Embora a medida seja importante na medida em que restabelece o status quo pré-Troika, que foi uma parte central dos acordos entre o PS e os partidos da esquerda radical como forma de combater a austeridade desigual, a verdade é que a medida é muito limitada no seu âmbito e exclui os trabalhadores do sector público com contratos individuais, o que representa uma grande parte dos funcionários públicos recrutados desde 2000. Assim, não só a medida não se aplica aos trabalhadores do sector privado, como também exclui muitos do sector público. Se uma abordagem mais progressiva do tempo de trabalho for algo que a frente de esquerda pós-eleitoral quer e considere exequível, então serão necessárias novas medidas. [7] O líder do PSD desde janeiro de 2018, após a saída do antigo líder (Pedro Passos Coelho), e primeiro-ministro durante a intervenção da Troika, e eleições diretas para a liderança. Pesquisas sobre representação política: https://er.cies.iscte-iul.pt/en/node/42 Wikipedia: https://en.wikipedia.org/wiki/Andr%C3%A9_Freire Blogue: https://avacavoadora.pt/author/andrefreire/
André Freire
(1961-2024)
Professor Catedrático de Ciência Política do ISCTE-IUL (Instituto Universitário de Lisboa) e Investigador Sénior do CIES-IUL e Diretor do Doutoramento em Ciência Política, com especialização em Relações Internacionais, do ISCTE-IUL