A Seara, a censura e os jornalistas
“Escrever assim é uma verdadeira tortura. Porque o mal não está só no que a censura proíbe, mas também no receio do que ela pode proibir. Cada um de nós coloca, ao escrever, um censor imaginário sobre a mesa de trabalho – e essa invisível e incorpórea presença tira-nos toda a espontaneidade, corta-nos todo o élan, obriga-nos a mascarar o nosso pensamento, quando não a abandoná-lo, sempre com aquela obsessão: Eles deixarão passar isto?”
Ferreira de Castro, Eleições legislativas – Subsídios para a história da vida portuguesa (1945-1973), Ed. Delfos, Outubro 1973, pp. 30-38.
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Portugal “é um país doente. É indispensável, para seu repouso, poupá-lo; não se deve gritar inutilmente no quarto de um doente”.
Salazar – entrevista a Max Fisher, reproduzida em O Século, 23.3.1937.
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“A lei é executada por homens e estes têm os seus critérios de interpretação. Uns apreciam de uma maneira, outros de outra. Por mais instruções que se emitissem, nunca se evitou a existência de certo arbítrio dos censores.”
Marcelo Caetano, Depoimento, Ed. Record, Rio de Janeiro, 1974, p.73.
1. Tentáculo do fascismo
A censura foi um dos instrumentos utilizados pelo fascismo para durante meio século tentar manietar o nosso povo, em conjugação com outros meios como a educação e o ensino, mas também a repressão política e ideológica.
«Oportunamente a censura desaparecerá e todas as liberdades públicas serão restabelecidas», assegurava em entrevista ao Mundo de 13 de Julho de 1926 o general Óscar Carmona, que três dias antes substituíra o general Gomes da Costa na chefia do movimento do 28 de Maio[1]. Foi o que se viu: a oportunidade jamais surgiria, nomeadamente quando, mais de quarenta anos depois, já na agonia do regime, Marcelo Caetano substituiria as palavras “censura” por “exame prévio” e “cortado” por “proibido”, naquilo a que Raul Rêgo acertadamente chamou a “reforma dos carimbos”. O cinismo da nomenclatura rima com a frase marcelista que escolhemos para a abertura deste texto, e convive bem com a hipocrisia de Salazar que a antecede.
Tinha sido a 24 de Junho de 1926 que pela primeira vez os jornais inseriram a menção «Este número foi visado pela comissão de censura», ainda que só em 1933, após seis anos de subordinação ao Ministério da Guerra, tivesse sido criada uma Direcção-Geral dos Serviços de Censura, no âmbito do Ministério do Interior[2]. Mas pode-se dizer que, com o aparecimento e posterior endurecimento da censura – e se outras razões não houvesse… – começava a cavar-se também, e progressivamente se alargava, o fosso que separava a «democracia orgânica» da maioria dos jornalistas e sectores intelectuais em geral.
A luta contra a censura seria uma das constantes da luta contra o regime, tanto mais que representava uma das suas faces mais odiosas. Tão odiosa que até os seus mais fiéis servidores na imprensa se sentiam na obrigação de a criticar, chegando-se ao ponto de, por exemplo, Barradas de Oliveira, director do famigerado Diário da Manhã, ter certa vez chamado à censura «forma grosseira, declarada, impudente da intervenção do Estado»[3].
Em Agosto de 1931, uma circular da Direcção dos Serviços de Censura, na sua função de tentáculo do fascismo que desde a primeira até à última hora exerceu, chamava hipocritamente a atenção para «a influência deletéria que exercem sobre a opinião pública determinados jornais do país, quer aplaudindo, ainda que indirecta ou veladamente, a violência e a desordem, falseada, quer mantendo um mutismo culposo e absurdo em face de actos que a Nação repudia e cujas consequências só em lágrimas de sangue podem ser avaliadas»[4].
2. “Por causa da censura”…
Um dos três chefes de redacção do Diário Popular, quando lá trabalhei como repórter na segunda metade dos anos 60, era Jacinto Baptista. Dele escreveu Baptista-Bastos tratar-se de “um dos jornalistas mais sérios, mais competentes e mais respeitados da sua geração.” Assino por baixo, acrescentando que foi o mais culto, amável e fraterno profissional que conheci nos anos em que trabalhei na imprensa diária. E aprendi muito com ele sobre a profissão. Começou na Voz, ainda estudante, tendo-se entretanto licenciado em Histórico-Filosóficas, passando depois para a delegação em Lisboa de O Primeiro de Janeiro e daí para o Diário Popular, de que logo a seguir ao 25 de Abril viria a ser director – eleito pelos trabalhadores.
Era um seareiro. Colaborou activamente na revista, sobre temas da sua especialidade, nos anos 60, e também na Gazeta Musical e de Todas as Artes. Como investigador, interessou-se pela imprensa e o jornalismo na 1ª. República, tendo em 1966 publicado Um jornal na Revolução. “O Mundo” de 5 de Outubro de 1910, em edição da Seara Nova. Sendo também autor, nomeadamente, de Surgindo Vem ao Longe a Nova Aurora… Para a História do Diário Sindicalista “A Batalha” (1919-1927).
Em 1975 foi a vez de Caminhos para Uma Revolução: Sobre o Fascismo em Portugal e a Sua Queda, onde evoca fases da sua vida, nomeadamente no plano profissional. Uma parte do livro consiste numa espécie de diário sobre o seu trabalho na equipa de chefia da redacção do Diário Popular, do qual faziam parte os fatigantes e muitas vezes irritantes contactos telefónicos diários que, enquanto responsável pela paginação, tinha que ter com os censores, a fim de apressar o envio dos materiais visados, esclarecer dúvidas sobre cortes feitos, protestar ou pedir esclarecimentos sobre decisões consideradas despropositadas.
Seguem-se alguns exemplos de cortes, entre muitos outros indicados pelo autor.
25 de Março de 1964:
“Todo o noticiário relativo a actividades estudantis e a simples palavra estudante são, nos últimos tempos, invariavelmente suprimidas pela Censura, que hoje, por exemplo, não autorizou esta local: “I Festival Internacional do Filme didáctico – Promovido pela Associação de Estudantes da Faculdade de Ciências de Lisboa, realiza-se nos dias 23, 24 e 25 de Abril o I Festival Internacional de Filma Didáctico, que terá a colaboração da Fundação Gulbenkian.”
11 de Abril de 1964:
“Cortada pela Censura a notícia de que foram expulsos do País quatro advogados estrangeiros (dois norte-americanos, um canadiano e um argentino) membros de uma Associação Internacional de Juristas, que vieram estudar a aplicação dos direitos humanos em Portugal e hoje se propunham dar uma conferência de Imprensa.”
9 de Junho de 1965:
“A Censura corta, no Diário Popular, fotografias de precedência norte-vietnamita que The New York Times publica.”
Finalmente este:
17 de Novembro de 1965:
“A Censura cortou hoje, no Diário Popular, o número de anos (77) de Salazar…”
Sobre a sua profissão Jacinto escreve, em certo passo: “Em vinte e cinco anos que levo já de jornalista, tornei-me aos poucos, como muitos dos meus colegas de ofício, um profissional de competência puramente formal, compensando com a dedicação tenaz a uma técnica (de copy-desk, de mise-en-page) a grande frustração, talvez irremediável, de nada poder comunicar que valesse realmente a pena. Era uma vida que tinha em frente um horizonte baço, de nenhuma novidade, e que anunciava já o desencantado crepúsculo vespertino.”
“Sei que, por causa da Censura, pela tensão que me causa durante o dia, a toda a hora, pelo acréscimo de trabalho com que sobrecarrega as minhas funções de redactor-paginador, obrigando-me a desfazer e a refazer títulos, a desfazer páginas – por causa da Censura estou à beira de um colapso nervoso. E vou morrer mais cedo, arrasado, inconformado – por causa da Censura.”[5]
Jacinto Baptista era um seareiro e nunca deixou de o ser. E foi por sua iniciativa que no Verão de 1985 se formou um grupo de que faziam parte Aquilino Ribeiro Machado, Luís Francisco Rebelo, Piteira Santos, Rui Grácio, Salgado Zenha e Ulpiano Nascimento, graças a cujo empenhamento foi retomado o projecto seareiro, tendo no Verão desse ano, depois de alguns anos de interrupção, voltado a publicar-se a revista, com Ulpiano como director.
3. Divisão desigual
Seria a maioria dos jornalistas contra a censura? Sendo certo que havia um razoável número que umas vezes por falta de formação cívica e consciência social, outras vezes por comodismo ou medo (de perder o emprego ou de algo pior), não se queriam, digamos assim, meter na política(!). Pelo seu conformismo e comodismo davam cobertura à situação, ou seja, à ditadura e à censura, sem que se possa dizer que fossem fascistas convictos. E vem a propósito lembrar que na altura não se falava de jornalismo nas escolas, nem havia cursos de jornalismo.
Falando do Diário de Notícias dos fins dos anos 40 e início de 50, Urbano Tavares Rodrigues, então jovem jornalista, confessa que não tinha relações próximas com a maioria dos outros profissionais, afectos ao regime ou pelo menos não abertamente críticos, apenas se dando bem com dois ou três e formando um grupo à parte com Cristiano Lima, velho anarquista, e José de Freitas, comunista. Mais tarde, no Diário de Lisboa, onde a composição da redacção era bem diferente, “falava-se abertamente, discutia-se, mandava-se à merda aqueles que não tinham a mesma opinião”, havendo três ou quatro mais velhos que alinhavam com o regime.[6]
João Coito pinta a situação sublinhando o cor-de-rosa. “Era uma coisa fantástica. No Diário de Notícias, para além dos que eram da ‘situação’, havia uma série de tipos em que uns eram socialistas, outros anarquistas, outros comunistas, mas era uma paz…! Quando cheguei a chefe de redacção (…) não marcava certos serviços aos que sabia que não eram da ‘situação’. Sentia que eles iam contrariados (…), para você ver o respeito que havia.”[7]
Homero Serpa, que trabalhava no desportivo A Bola, afirma que as opiniões políticas não eram um factor de divisão: “Havia pessoas que nós sabíamos perfeitamente que eram da direita. Outros não eram da direita nem de esquerda, eram apenas politicamente ignorantes.” E sublinha: “Nunca ouvi uma discussão política dentro do jornal.” Tal como Urbano, revela: “Eu, o Vítor Santos, o Carlos Miranda e o Carlos Pinhão, às vezes com mais um ou outro, tínhamos o nosso grupo, costumávamos ir jantar juntos e aí discutíamos (política).”[8]
Certo é que começava a haver, incluindo entre muitos dos que apoiavam ou se conformavam com o regime, uma crescente consciência dos malefícios da censura e da interferência dos censores, quanto mais não fosse pelo prejuízo causado ao normal fluir da “cadeia de produção” jornalística, mas também no que ela representava enquanto atentado à dignidade e à identidade profissional dos profissionais.
Diz Joaquim Letria, falando do seu jornal mas alargando a outros: “Não conheci ninguém no Diário de Lisboa, nem mesmo da extrema-direita, como o Félix Correia, que fosse a favor da Censura.” E faz questão de lembrar: “Houve abaixo-assinados a pedirem a libertação de jornalistas que tinham sido presos por motivos políticos, e que foram assinados por pessoas que trabalhavam em órgãos do regime.”[9] João Coito, que nunca foi um opositor à ditadura, e a conhecia bem por dentro, não hesita em afirmar que, “sem qualquer dúvida, a maioria era contra a censura, incluindo os que trabalhavam no Novidades (Episcopado), A Voz (monárquicos e católicos) e Diário da Manhã, depois Época, (órgãos do partido único).”[10]
Estas palavras remetem-nos para uma direcção de investigação por desenvolver, ligada à existência de jornalistas que conviviam pacificamente com a situação mas eram contra a censura. Uns, por considerarem que havia formas mais inteligentes de alcançar os mesmos objectivos (não creio que houvesse…); outros, porque isso incomodava a sua consciência profissional – ou, dito de outra maneira, a sua concepção da identidade jornalística. É isto que ressalta de intervenções feitas na importante e pouco conhecida reunião de responsáveis editoriais de órgãos afectos ao regime, em 1962, no Instituto de Estudos Superiores Ultramarinos, então dirigido por Adriano Moreira[11].
Pode dizer-se que havia uma divisão entre os jornalistas quanto à existência da censura? Pode. Mas a divisão era manifestamente desigual: a grande maioria era contra.
4. Cortes e truques
Houve até ao fim, por parte de jornalistas mais determinados e imaginativos, tentativas para “dar a volta à censura”, ou seja, fazer com que se conseguisse chamar a atenção dos leitores, pelo menos os mais atentos e perspicazes, para acontecimentos que, noticiados normalmente, a censura nunca deixaria passar e inevitavelmente proibiria.
Em 18 de Março de 1974, dois dias depois da tentativa dos capitães de Abril marcharem das Caldas da Rainha para Lisboa – o golpe falhado de 16 de Março – cuja ocorrência a censura, obviamente, não permitiu ser noticiada, o República, numa aparente alusão ao jogo Sporting-FC do Porto realizado na véspera, escreveu:
“Os muito nortenhos que no fim-de-semana avançaram para Lisboa, sonhando com a vitória, acabaram por retirar, desiludidos com a derrota. O adversário da capital, mais bem organizado e apetrechado (sobretudo bem informado da sua estratégia, contando assim com uma assistência fiel), fez abortar os intentos dos homens do Norte. Mas, parafraseando o que em tempos dissera um astuto comandante, ‘perdeu-se uma batalha mas não se perdeu a guerra.’ O autor, o jornalista Eugénio Alves, sempre foi perito nestes truques.
No livro “Alvorada em Abril” Otelo recordaria que estas palavras, cujo alcance muitos leitores perceberam, foi lida pelos capitães como “mensagem de confiança (…) optimista e estimulante”. O mesmo se pode dizer de muitos outros leitores. Os censores é que não gostaram nada do deslize, até porque a notícia do República foi citada no estrangeiro, nomeadamente pela BBC, Le Monde e o sueco Expressen. E transcrita na Seara.
5. Palavras toscas, ideias acanhadas
A rubrica que certamente era a mais lida da revista Seara Nova, independentemente da idade, formação ou interesses do leitor, chamava-se Factos e Documentos. Não tinha conteúdo doutrinário, sendo então apenas constituída por extractos, geralmente curtos, de textos de natureza ou interesse político, económico ou cultural publicados noutros órgãos, diários mas não só – noticias, artigos de opinião, discursos, entrevistas…
Eram páginas que traziam dúvidas e preocupações à censura, na medida em que se tratava de textos ou extractos de textos já publicados, portanto já por ela lidos e aprovados, e que não era fácil cortar depois, até porque havia o cuidado de os contextualizar minimamente. Mesmo assim não eram poucas as vezes que o lápis azul os riscava na Seara.
Com os Factos e Documentos pretendia-se chamar a atenção para acontecimentos ou opiniões que muitas vezes passavam despercebidos na leitura dos jornais, mas que, devidamente seleccionados, provocavam a curiosidade, a adesão, a revolta ou a indignação, outras vezes o espanto, a incredulidade ou mesmo a gargalhada.
Nesta última modalidade, o almirante Tomás (Américo Deus Rodrigues Thomaz), presidente da República entre 1958 e 1974, e Afonso Marchueta, governador civil de Lisboa entre 1968 e 1974, eram frequentadores assíduos e muito apreciados. Da parte da Seara não se inventava nada. Tratava-se apenas da simples reprodução de afirmações reveladoras do gabarito de quem então ocupava altos cargos na governação.
Dizia uma vez o presidente Tomás: “Comemora-se em todo o país uma promulgação do despacho número Cem da Marinha Mercante Portuguesa, a que foi dado esse número não por acaso mas porque ele vem na sequência de outros noventa e nove anteriores promulgados.” E noutra ocasião, de visita a uma determinada localidade: “É a primeira vez que cá estou desde a última vez que cá estive…”. Outra: “…É uma terra [Manteigas] bem interessante, porque estando numa cova está a mais de 700 metros de altitude…” Outra ainda: “O Sr. Prof. Oliveira Salazar, ao longo de mais de trinta anos, é uma vida inteiramente sacrificada em proveito do país, e desconhecendo completamente todos os prazeres da vida, é um homem excepcional que não aparece, infelizmente, ao menos, uma vez em cada século, mas aparece raramente ao longo de todos os séculos”.
Afonso Marchueta não se ficava atrás. O naco de prosa que se segue fazia parte do discurso proferido nas comemorações do 58º aniversário da fundação dos Vendedores de Jornais Futebol Clube, publicado na íntegra no Diário de Notícias de 25 de Maio de 1972, mas que viria logo a ser cortado no República desse mesmo dia, o que significava que alguém, dentro ou fora da instituição, dera pelo deslize censório, assim frustrando a intenção de o publicar também na Seara. Fazemo-lo agora, para deleite dos leitores, mas também para avaliação do gabarito de personagens como o governador civil da capital do país:
“Os homens dos órgãos da informação que o acompanharam na inesquecível e triunfal visita às províncias do Portugal africano atribuíram-lhe o título de jornalista nº 1, e o nº 1 em talento é o 1º em simpatia, é o primeiro em popularidade. Ele é sobretudo o amigo nº 1 do Povo Português e, por consequência, o amigo nº 1 das colectividades de cultura e recreio, que são expressão e alma do povo luso. Com todos nós a seu lado, Marcelo Caetano fará de Portugal a Nação nº 1 em valor moral e espiritual, a Nação nº 1 nas realizações nacionais que conduzem ao bem-estar da comunidade e no progresso.”
6. Livros sem censura… mas apreendidos
A Seara manteve desde sempre uma actividade editorial relativamente residual, especialmente centrada nos cadernos de clássicos da literatura, colecção dirigida por Rodrigues Lapa. Esta situação foi significativamente alterada a partir do início dos anos 70 com a entrega a Alzira Seixo da responsabilidade pela colecção dos Clássicos, o início da publicação regular de ficcionistas consagrados como Carlos de Oliveira ou estreantes como Olga Gonçalves e a edição de livros infantis, ao mesmo tempo que se incrementava a publicação de estudos sobre a realidade nacional e internacional.
Diversas novas colecções surgiram nesses anos, como por exemplo “Universidade Livre”, “Que País?”, “Educação e Ensino”, “Estudos sobre a Sociedade e a Cultura Portuguesas”, “Temas Actuais”, “Nova Realidade”, “Argumentos, Documentos Vivos sobre a História de Portugal”, “Ecologia e Sociedade”.
A situação internacional, que já desde os anos 60 merecia a atenção dos seareiros, levou ao lançamento de uma nova colecção, “De Leste a Oeste”, que teve grande êxito, e que incluía autores como por exemplo o jornalista norte-americano Wilfred Burchett – por exemplo Bombas sobre Hanói, A segunda Guerra da Indochina e Novamente a Coreia, com tradução, respectivamente, de Maria Helena Costa Dias, Augusto Abelaira e Nuno Brederode Santos. Aos leitores proporcionavam-se temas e abordagens distintas das que tinham acesso através de outras editoras nacionais.
Os livros não estavam sujeitos ao exame prévio da censura, mas corriam o risco de serem apreendidos depois de estarem à venda, se os “leitores” ao serviço das autoridades fascistas assim o entendessem. O incremento editorial implicou, naturalmente, o desenvolvimento de estratégias para limitar o efeito das apreensões por parte da PIDE, rebaptizada DGS por Marcelo, logo em 1969. Assim sendo, a Seara montou e manteve uma rede de armazéns de livros, em Lisboa e arredores, cuja existência a polícia nunca chegou a detectar, e iniciou o envio de exemplares para assinantes da revista, mesmo sem serem encomendados, fazendo coincidir a expedição com o dia em que eram postos à venda. A DGS acabou por fazer abortar em parte esta estratégia, tendo as suas delegações nas estações centrais de correios apreendido muitos exemplares, nomeadamente mais de 10.000 das Teses do 2º Congresso da Oposição Democrática, que a Seara – significativamente – tinha editado, tal como o faria com o 3º Congresso.
A partir de 71/72 a Seara comemorou os 50 anos da fundação com uma exposição itinerante em colectividades e associações de várias cidades (Viseu, Aveiro, Marinha Grande, Torres Novas, Beja, Faro e Lisboa, entre outras), o que deu pretexto à realização de colóquios que se tornaram sessões de debate e esclarecimento político muito participadas, e também uma oportunidade para uma maior divulgação da revista mas também das edições, o que de algum modo atenuava os prejuízos causados pela intervenção dos censores e dos polícias.
Vale a pena sublinhar que a diversificação e densificação da sua actividade editorial conduziram a Seara, logo a seguir ao 25 de Abril, a participar na criação de uma distribuidora de livros (Bloco Expresso) à qual se associaram, entre outras, as editoras Arcádia, Livros Horizonte, Presença e Estampa. Por designação dos restantes editores encabeçou o movimento que conduziu à transformação do Grémio de Editores e Livreiros na Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), assumindo a sua direcção até à realização das primeiras eleições.
- A PIDE assalta a Seara
Não se pode dizer que os seareiros, enquanto tal, tivessem sido alvo de perseguição pela policia política, ainda que ao longo dos anos o tenham sido muitos dos responsáveis e colaboradores da revista e das edições que desenvolviam actividade política, partidária ou não, e de empenhamento cultural e cívico contra o fascismo. Mas a policia política sabia muito bem, e desde há muito – bastava saber ler… – o que era a Seara Nova, a sua tradição de décadas de luta cultural, cívica e ideológica, mas também politica, contra a ditadura, conhecia a revista que publicava, os livros que editava, as iniciativas culturais que promovia ou em que participava. E um dia, nos meados da década de 60… José Tengarrinha recordou-o mais tarde nas páginas da revista:
“Foi um tempo em que eu e o Mário Sottomayor Cardia assegurávamos a elaboração permanente da revista, para o que nos encontrávamos regularmente (dois a três dias por semana) na redacção. Uma tarde fomos surpreendidos com pancadas violentas na porta e, quando a abrimos, deparámos com uma brigada da PIDE munida de autorização judicial para revistar as salas. Mas cedo compreendemos que a sua intenção não era procurar livros ou documentos ‘subversivos’, mas intimidar e destruir.”
“Começaram por deitar abaixo os livros que se encontravam nas estantes do corredor, abrir e despejar os papéis das secretárias, tudo acompanhado de insultos e ameaças de prisão, que recrudesciam com os nossos protestos e declarações de que iríamos apresentar queixa formal nas instâncias judiciais. Mantiveram-nos fechados na secretaria com ameaças de que no final da busca seríamos presos, o que não chegou a ser concretizado. Os livros e papéis espalhavam-se por todo o lado, num amontoado confuso, pontapeados pelos agentes que por vezes punham de parte alguns livros que foram apreendidos, mas, como verificámos, sem qualquer critério selectivo.”
“Tudo isto constou de uma denúncia que apresentámos às autoridades judiciais e que, como prevíamos, não teve qualquer efeito.”
“Tratava-se, manifestamente, de uma brutal manobra pidesca de intimidação, que teve sobre o empenhamento dos seareiros os efeitos que teve: nenhum.”
Vem a propósito lembrar que durante o chamado Estado Novo, vigente desde 1933, as policias políticas foram várias, ou melhor, foi na essência sempre a mesma nos objectivos e nos métodos (se bem que estes evoluindo com a experiência e as novas práticas e técnicas na matéria), mas adoptando ao longo dos anos uma organização que se foi alterando conforme as teorias e interesses de quem comandava o regime repressivo.
Em 1933, as então Polícia Internacional Portuguesa (PIP) e a Polícia de Defesa Política e Social (PDPS), que já tinham estado fundidas, voltam a estar juntas na Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), que incluía duas secções, a de Defesa Política e Social e a Internacional. Em Outubro de 1945 a PVDE é transformada em Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), à qual são atribuídas funções administrativas e funções de prevenção e combate à criminalidade. Finalmente, e já com Marcelo Caetano, a PIDE passa em 1969 a chamar-se Direcção-Geral de Segurança (DGS), que pouco tempo duraria: foi extinta no próprio dia 25 de Abril através do Decreto-Lei n.º 171/74.
Praticamente com todas elas os seareiros tiveram que lidar. Elas foram-se para nunca mais voltar. A Seara Nova cá está para continuar.
Notas: [1] Cit. in Alberto Arons de Carvalho, A Censura e as Leis de Imprensa, Lisboa, ed. Seara Nova, 1973, pp. 41 e 42. [2] A Censura e as Leis de Imprensa, pp. 37 e 56. [3] “Curso de Jornalismo”, in Estudos de Ciência Política e Sociais, colecção editada pela Junta de Investigação do Ultramar, Lisboa, 1963, p. 171. [4] Cit. in Francisco Balsemão, Informar ou Depender?, Lisboa, Ática, 1971. Sobre esta temática, um livro fundamental: de Joaquim Cardoso Gomes, Os Militares e a Censura. A Censura à Imprensa na Ditadura Militar e Estado Novo (1926-1945), Livros Horizonte, 2006. [5] Caminhos para uma revolução, de Jacinto Baptista, Livraria Bertrand, 1975. [6] Cf. Jornalistas: do Ofício à Profissão, de Fernando Correia e Carla Baptista, p. 407, Editorial Caminho, 2007. [7] Cf. Memórias Vivas do Jornalismo, de Fernando Correia e Carla Baptista, p. 219, Editorial Caminho, 2008. [8] Cf. Memórias Vivas do Jornalismo, de Fernando Correia e Carla Baptista, p. 200, Editorial Caminho, 2008. [9] Cf. Memórias Vivas do Jornalismo, de Fernando Correia e Carla Baptista, p. 236, Editorial Caminho, 2008. [10] Cf. Memórias Vivas do Jornalismo, de Fernando Correia e Carla Baptista, p. 224, Editorial Caminho, 2008. [11] Cf. Jornalistas: do Ofício à Profissão, de Fernando Correia e Carla Baptista, pg. 87 e seguintes, Editorial Caminho, 2007.