Uma seara com muitas espigas: cem anos de Seara Nova
Há cem anos, em 15 de Outubro de 1921, saía o nº 1 da revista Seara Nova (15 de Outubro), poucos dias antes da «Noite Sangrenta» (19 de Outubro), um dos episódios mais dramáticos e traumatizantes da I República. Tratando-se de uma das mais importantes revistas culturais e de ideias publicadas em Portugal, não é possível, por escassez de espaço, historiar aqui, mesmo que sumariamente, o seu percurso ao longo dessas décadas. Limitar-nos-emos a abordar os seus primeiros anos, fazendo em seguida, de forma muito sucinta, a caracterização dos períodos que se seguiram.
Tendo como objectivo reformar a República e salvá-la do descalabro que a ameaçava – bem visível depois do sidonismo -, através do levantamento dos grandes problemas nacionais e da aplicação de uma terapêutica adequada, a revista sobreviveu durante a Ditadura Militar e o Estado Novo, até à restauração da Democracia, desempenhando um papel importante na resistência[1]. Embora em 1920 já surjam na imprensa referências ao projecto, a sua apresentação pública data de Maio de 1921 – cinco meses antes do número inaugural da revista – através de um pequeno opúsculo de 12 páginas que aludia à recente edição de Adão e Eva, de Jaime Cortesão, — primeira iniciativa editorial da empresa —, ao próximo aparecimento da revista Seara Nova, ao livro Problemas Escolares, de Faria de Vasconcelos, e a obras de Câmara Reys, Sant’Iago Prezado e Joaquim de Carvalho. Para além dessas informações, dava a conhecer os nomes de directores e colaboradores, bem como a declaração de princípios.
O programa da revista resumia-se em duas ideias fundamentais: «Renovar a mentalidade da elite portuguesa, pondo-a em contacto com as realidades do presente e dando-lhe a consciência nítida das necessidades nacionais; criar uma falange intelectual que ponha com clareza os grandes problemas a resolver, preconize as soluções mais racionais e mais práticas, e se oponha ao espírito do egoísmo, do interesse social e de rapina que caracteriza as oligarquias dominantes; criar uma opinião pública nacional que obrigue todos, políticos e não políticos, a ter como norma o bem público, em vez dos interesses de pessoas, grupos ou partidos; contribuir para a formação, acima das nacionalidades eternas, duma consciência internacional, capaz de dar existência a uma realização cada vez mais perfeita do conceito de humanidade»[2].
O Grupo e a Revista
Seara Nova — nome sugerido por Aquilino Ribeiro e por Luís da Câmara Reys — designava três realidades interligadas: uma empresa de publicidade com actividade editorial, a revista, e, finalmente, o «grupo» propriamente dito, que englobava as personalidades que nela colaboraram, ou que lhe deram apoio. O projecto situava-se numa linha de continuidade em relação a movimentos precedentes, como a Renascença Portuguesa e a Liga de Acção Nacional. Os primeiros corpos directivos integravam Ferreira de Macedo — substituído em 1923 por Fernandes Duarte —, Jaime Cortesão, Câmara Reys, Faria de Vasconcelos, Conceição Silva, Rodrigo Caeiro Vieira, João de Araújo Morais, Sant’Iago Prezado e José das Neves Leal. Diligências empreendidas no Porto por Câmara Reys, Jaime Cortesão e Augusto Casimiro, para uma unificação com a Renascença Portuguesa, malograram-se por oposição de Leonardo Coimbra.
Os seus propósitos, impregnados de pedagogismo ético, não eram muito diferentes dos expostos, anos antes, pela revista Pela Grei. António Sérgio — que não participou no processo de constituição da Seara por se encontrar no Brasil — interrogava-se, nesse mesmo ano de 1921, nas páginas de A Águia: «Pede-se aí uma dúzia de homens que empreenda a reforma da nossa vida. Mas esses homens que poderão fazer, se não houver uma elite mais numerosa que os compreenda e lhes dê auxílio, e se ficarem submetidos à asfixia nesse ambiente de sensibilidade aérea?»[3].
Reformar a República
Após a experiência sidonista, a República caminhava para o abismo, numa sucessão de governos, de escândalos e de cisões partidárias, com o crescendo da agitação social. As instituições desacreditaram-se pondo em causa o próprio regime. As críticas surgiam de sectores à esquerda e à direita, dos integralistas e simpatizantes das experiências autoritárias europeias, mas também das organizações anarquistas e «bolchevistas», inspiradas pelos movimentos revolucionários russo, húngaro e alemão. A frequência de golpes castrenses marcavam o dia-a-dia. A «Noite Sangrenta» coincidiu, justamente, com a publicação do número inaugural da Seara Nova…
Os seareiros procuravam salvar a República, através de um trabalho a longo prazo de propaganda e de difusão de ideias. A crise, como desenvolverão os principais ideólogos do movimento, seria moral na sua essência. Havia que reformar as mentalidades e preparar o terreno para que os vindouros pudessem colher as sementes lançadas à terra.
António Sérgio, ao comparar a nova revista com a Pela Grei, comentará que era «menos estritamente político-económica (…), mais literária e mais variegada, mais popular e mais brilhante, ganhou o êxito que merecia alcançar. Convidado a entrar para o corpo directivo continuei aí a minha antiga campanha: reforma de mentalidade, intelectualismo, escola activa, plano coordenado de reformas económicas, democracia política e social, emancipação do povo pelo próprio povo»[4].
Ponto de encontro de sensibilidades diferentes
A Seara Nova congregou um variado leque de personalidades, o que se reflectirá no seu ideário. Cortesão, anarquista na sua juventude, transitara para o Partido Republicano Português, que abandonou em Maio de 1919; Raul Proença, o vigoroso propagandista da Alma Nacional, converte-se em crítico atento da República que ajudara a erguer. António Sérgio, que se uniu à falange seareira em 1923, foi olhado com suspeição pelo seu passado monárquico. Ferreira de Macedo empenhava-se, ao mesmo tempo, na fundação e dinamização da Universidade Popular Portuguesa. Outros vieram de horizontes diversos, desde o poeta e diplomata Sant’Iago Prezado, que acompanhara Álvaro de Castro na fundação do Grupo Republicano de Reconstituição Nacional, depois Partido Reconstituinte, até ao libertário Emílio Costa e ao próprio general Gomes da Costa.
A revista era um espaço de debate onde se destacavam António Sérgio, Proença e Cortesão na doutrina e crítica; Faria de Vasconcelos na Pedagogia; Ezequiel de Campos e Quirino de Jesus nos temas económicos e financeiros; Raul Brandão, Augusto Casimiro e Aquilino Ribeiro eram presenças mais de cariz literário, enquanto Câmara Reys, para além da colaboração assídua, ocupava-se da gestão da empresa, sempre muito criticada, e foi, até à sua morte em 1961, o elo de ligação das várias fases da revista.
Os seareiros fizeram uma crítica sistemática dos males endógenos da República no campo económico — as despesas improdutivas, o parasitismo, a inércia — no campo político — descrédito do sistema parlamentar, o avanço do reacionarismo, a hegemonia do Partido Republicano Português (dito Democrático), a que as recomposições partidárias não puseram termo. Finalmente, procuraram lutar contra o vazio ideológico e o apagamento cultural.
As grandes linhas do ideário seareiro nestes primeiros anos, plasmadas em artigos onde é possível identificar a opinião «oficial» do grupo, assentavam em duas vertentes ideológicas fundamentais e contraditórias: a liberal e a socializante. A primeira, visava um aprofundamento da democracia, a luta contra as oligarquias e a defesa das liberdades individuais, condições necessárias para a pacificação e concórdia da família portuguesa; a segunda, dava uma particular atenção à questão social através da intervenção estatal esclarecida e do diálogo entre as partes envolvidas. A propriedade privada devia ser submetida aos interesses gerais da sociedade.
Mas as propostas da Seara não estavam isentas de contradições. Ao defenderem a vigência transitória de um governo de excepção dotado de poderes discricionários — a «ditadura pedagógica», como lhe chamou Sérgio —, ainda que provisório, contradizia o primado das liberdades públicas. A conciliação entre a democracia e a limitação dos seus atributos, sem a existência dos quais perderia sentido, foi um dos problemas mais complexos que se depararam aos homens da Seara. Note-se, porém, que havia uma distanciação clara em relação à experiência italiana e que apenas se observa uma certa simpatia pela ditadura de Primo de Rivera, no seu início.
A receptividade junto dos meios sindicais foi positiva, como o demonstram os comentários surgidos em A Batalha. Essa ligação ao operariado, desejada pelos seareiros, coaduna-se, aliás, com os objectivos da sua declaração de princípios. Se era fundamental «criar uma falange intelectual», não era menos vital «criar uma opinião pública nacional» informada e actuante, que funcionasse como caixa-de-ressonância e possibilitasse a execução das reformas necessárias. Era nessa perspectiva que António Sérgio se interrogava sobre o que poderão fazer esses homens «se não houver uma elite mais numerosa que lhes dê auxílio?»
A revista Seara Nova contribui para divulgar as propostas do grupo e colheu numerosas adesões. Mas a penetração nas camadas populares era escassa, mesmo com recurso a conferências, palestras e lições, um trabalho lento de consciencialização, uma revolução pacífica, como lhe chamou Jaime Cortesão. Era fundamental a íntima ligação à Universidade Popular Portuguesa, na qual estavam empenhados muitos seareiros.
A discussão em torno do ideário seareiro foi intensa, em especial o posicionamento na dicotomia esquerda – direita e o seu papel perante o avanço das forças conservadoras que conspiravam contra a República. Os textos então produzidos são susceptíveis de interpretações contraditórias. As propostas devem ser analisadas em função do momento em que foram escritas e das motivações pessoais ou de grupo que as justificaram. Nota-se entre os seareiros uma certa apetência para iniciativas de conjunto, reunindo personalidades divergentes em torno de um projecto concreto de reformas, que se explica por uma reacção contra a exagerada influência dos partidos, acima dos interesses nacionais. Um projecto regenerador seria tanto mais «nacional» quanto maior o número e o prestígio das personalidades mobilizadas, e mais diversificado o leque das opiniões representadas.
De entre as iniciativas desencadeadas ou apadrinhadas pela Seara Nova, com um cariz mais político, destacam-se o efémero «Grupo de Propaganda e Acção Republicana», a «União Cívica» e a experiência, em finais de 1923, da revista Homens Livres (dois números publicados em 1 e 12 de Dezembro de 1923) que juntou seareiros e integralistas.
A colaboração com personalidades exteriores ao grupo seareiro — que nem sempre foi pacífica… — sofreu um duro golpe quando elementos da Seara aceitaram participar em executivos, o que sempre tinham recusado. Ao formar governo, após a queda do executivo chefiado por Ginestal Machado (1923), Álvaro de Castro convidou a Seara Nova, através de Jaime Cortesão, para ocupar uma pasta, proposta que foi depois ampliada. Dois seareiros e uma personalidade próxima do grupo ocuparão cargos ministeriais: António Sérgio (Instrução Pública), Mário de Azevedo Gomes (Agricultura) e Ribeiro de Carvalho (Guerra). Era uma tarefa difícil, fazer vingar as ideias do grupo num governo onde era minoritário, sem apoios no parlamento, sob o fogo dos partidos e a pressão dos sectores militares… António Sérgio e Azevedo Gomes abandonavam o executivo a 28 de Fevereiro de 1924, ficando por concretizar a reforma da instrução e os propósitos de Azevedo Gomes de «intensificar a produção e baratear a vida»[5].
Mas não ficaram por aqui as experiências governativas da Seara Nova. A presença de seareiros no Governo empossado a 22 de Novembro de 1924, chefiado por José Domingues dos Santos, era justificada por António Sérgio com argumentos que não eram novos: «para poder tentar a execução de algumas medidas fundamentais do programa da Seara Nova» e porque «figuram na declaração ministerial do governo de José Domingues dos Santos, em matéria económica, várias medidas preconizadas no programa da Seara Nova»[6].
José Domingues dos Santos, chefe da ala esquerda do PRP, formou governo à revelia dos sectores direitistas do seu partido. A divisão entre «bonzos» e «canhotos» aprofundava-se, e essas divergências estão na base da cisão encabeçada por aquele político, que conduzirá, em Julho de 1925, à formação da Esquerda Democrática. Ezequiel de Campos foi o único elemento da Seara Nova a integrar o elenco governativo, com a pasta da Agricultura, num ministério com uma duração relativamente curta (foi exonerado a 15 de Fevereiro de 1925), vencido pela acção concentrada de nacionalistas e «bonzos». Algumas medidas, como a dissolução da Associação Comercial de Lisboa e a legislação para controlar a actividade bancária granjearam-lhe apoios no operariado, testemunhados pela grande manifestação em Lisboa, no dia da sua queda, uma das maiores realizadas na capital durante a República. Mas o apoio popular não evitou que o parlamento o derrubasse. A ala direitista do PRP regressou ao poder com um novo governo presidido por Vitorino Guimarães.
Ezequiel de Campos, enquanto ministro, começou por elaborar uma proposta de lei de organização rural que sobressaltou os grandes proprietários, na qual se reconhece uma certa continuidade em relação a medidas tomadas no tempo de Álvaro de Castro, com o objectivo de aumentar as áreas de cultivo. Pretendia intervir na organização rural e no povoamento, aproveitar as terras incultas e diminuir os pousios. O segundo grande objectivo de Ezequiel de Campos era aumentar a área de regadio. A hostilidade dos grandes proprietários justificava-se pela possível expropriação de terras tanto para execução das obras de rega como para fins de povoamento. O malogrado movimento insurrecional de 18 de Abril de 1925, demonstrou que era possível que ocorresse um golpe conservador com o propósito de instaurar uma ditadura militar, mais ou menos inspirada nas experiências italiana e espanhola.
Tentar travar a ascensão conservadora
A Seara intensificou, então, a luta contra o reaccionarismo nas suas diversas componentes. Denunciou a absolvição dos implicados no 18 de Abril, em textos de Raul Proença, Câmara Reys e David Ferreira, alertou contra o perigo do fascismo pela pena de Raul Proença e promoveu sessões públicas. Paralelamente, António Sérgio envolveu-se em discussões, que, apesar do cunho mais «cultural», se integravam na ofensiva contra o pensamento conservador, como as polémicas com Carlos Malheiro Dias sobre a questão do Desejado, com Luís Cabral de Moncada, e a «questão do Seiscentismo».
Os dias que antecederam o 28 de Maio foram de confronto entre seareiros e sectores conservadores. Em Coimbra, estudantes integralistas contestaram vivamente a acção promovida pela Seara. No Teatro S. Carlos, em Lisboa, uma conferência de António Sérgio foi interrompida no meio de confrontos físicos.
Nas páginas da revista acentuava-se a presença de artigos doutrinários. Raúl Proença verberava tanto os conservadores como os «traidores da República», não os «que a abandonaram — têm esse direito —, mas aqueles que dela se aproveitaram para a devorar». Era, porém, tarde demais. As sessões de propaganda, os artigos e a Liga Propulsora da Instrução em Portugal foram esforços desesperados, incapazes de travar as ameaças que se avizinhavam.
Polo de resistência depois do 28 de Maio
Entre o 28 de Maio de 1926 e o 25 de Abril de 1974, a Seara foi uma trincheira de combate e de resistência, que envolveu a própria revista, com a publicação dos textos que passavam as malhas da Censura, foi um ponto de encontros e desencontros, de convergências e dissidências. Essa luta pela Liberdade envolveu, também, directores, redactores e colaboradores, na qualidade de «seareiros» e de cidadãos intervenientes, vinculados ou não a organizações políticas.
Dessa História rica e complexa, deixamos aqui uma brevíssima súmula, com um ou outro detalhe, considerando três fases:
1ª Fase: 1926-1938
A 12 de Agosto de 1926, a revista sofreu uma primeira paragem, entre crescentes dificuldades para manter a periodicidade regular e a acção da Censura. Frustradas as esperanças de uma viragem rápida na situação política nacional, alguns seareiros apostaram na acção conspirativa. Cortesão e Proença participaram no movimento revolucionário portuense de Fevereiro de 1927, com o objectivo de derrubar a ditadura. O malogro da revolta, a mais violenta e mortífera de quantas ocorreram até 1974, e igual sorte sofrida pelo movimento de Julho de 1928 comprometeram o regresso à normalidade constitucional. A Seara Nova registou baixas de relevo nas suas fileiras. Três directores expatriaram-se: António Sérgio, Jaime Cortesão e Raul Proença. O mesmo sucedeu a Aquilino Ribeiro e a João Sarmento Pimentel.
Quando tudo fazia crer que a Seara jamais voltaria a ver a luz do dia, ela ressurgiu em Abril de 1927. A revista procurava ultrapassar as dificuldades promovendo ainda um grande debate interno. O papel de Sérgio reforçou-se nos anos trinta, após o regresso do exílio, assumindo o cargo de director-delegado a partir de 7 de Junho de 1934. A sede da revista passou da Universidade Livre para a Calçada do Tijolo nº 37-A. Assinale-se as polémicas entre Castelo Branco Chaves e José Rodrigues Miguéis, António Sérgio com Bento de Jesus Caraça e Abel Salazar, e a de Álvaro Cunhal e José Régio. Merece destaque a notável actividade editorial, com a publicação de numerosas obras, com realce para os «Cadernos da Seara Nova». Por entre grandes dificuldades financeiras e a acção da Censura, a revista sofreu um duro golpe, em 1939, com a saída de António Sérgio e de Mário de Azevedo Gomes, acompanhados por diversos colaboradores.
2ª Fase: 1939-1958
Em 1939, a saída de Sérgio, que acusava Câmara Reys de falta de capacidade de gestão e alguns dos novos colaboradores de perfilharem ideias marxistas, causou uma grave crise no grupo e na revista. O seu enfraquecimento visível traduziu-se na diminuição do número de páginas, o que não impediu a participação da revista e de muitos seareiros nos movimentos de oposição à ditadura, como o MUD, a campanha presidencial de 1949, as eleições legislativas e presidenciais de 1951, 1953, 1957 e 1958, bem como o apoio às Comissões Promotoras do Voto. A revista publicou textos alusivos a esses momentos, mas as dificuldades eram visíveis; na década de cinquenta a tiragem andava pelos mil exemplares, não ultrapassando setecentos o número de assinantes. Como recurso, publicaram-se, nos anos cinquenta, números duplos, triplos e até quádruplos. Em 1955 apenas saíram três números, embora um deles, integralmente dedicado a Norton de Matos, tivesse uma centena de páginas. Outros números especiais foram alusivos a Jaime Cortesão e à Energia Atómica. A edição de livros sofreu uma redução drástica. Nota-se uma diversidade maior entre os colaboradores, sob o ponto de vista político. A sede da revista também serviu de ponto de reunião nos momentos eleitorais.
3ª Fase: 1959-1974
Por iniciativa de Câmara Reys, no final da década de cinquenta ocorreu uma renovação do quadro de colaboradores, com a entrada de alguns jovens, com destaque para Manuel Sertório, nomeado director-adjunto, Rui Cabeçadas, Nikias Skapinakis e Augusto Abelaira. O projecto de reforma da República e de transformação da mentalidade portuguesa, acalentado desde 1921, adaptado às novas condições nacionais depois de 1926, deu lugar a outro objectivo: a restauração da democracia. Significativamente, o primeiro número da renovação (Janeiro de 1959), apresenta na capa uma fotografia de Fidel Castro.
A 27 de Outubro de 1961, Câmara Reys morreu no seu posto de combate, quando era candidato oposicionista por Santarém nas eleições para a Assembleia Nacional. O funeral constituiu um momento de elevada tensão. Realizado no dia 29, merecia a descrição irónica do Diário de Lisboa que salientava: «os repórteres fotográficos foram impedidos de exercer a sua missão dentro do cemitério, embora outros estranhos à nossa profissão pudessem fazê-lo livremente», numa clara referência aos agentes da PIDE que habitualmente fotografavam as manifestações oposicionistas[7]. Um dos presentes começou a discursar junto à campa, referindo-se às eleições, mas foi interrompido pelo representante da autoridade que proibia expressamente qualquer alusão ao acto eleitoral. Durante o funeral ocorreram alguns incidentes: «tendo a cerimónia decorrido com o mais elevado sentido patriótico, verificaram-se cenas violentas quando, à saída do cemitério, centenas de pessoas começaram a descer, em grupo, a Rua Morais Soares. Atacando em cargas violentas, várias vezes, forças da PSP e da PIDE espancaram numerosas pessoas»[8].
Mais assertiva e interventiva, a revista conheceu um notável crescimento. Em 1963, a tiragem subiu para 4.600 exemplares, apesar da acção nefasta da Censura e da repressão. Nas suas páginas surgiram cada vez mais textos onde se reflectia sobre a situação política internacional e se difundiam ideias mais avançadas, perfilhadas por jovens socialistas e comunistas. Em 1968, a revista atingia mais de 15.000 exemplares e em 1970 ultrapassava os 20.000, depois de uma acentuada renovação gráfica.
Até 1974, a Seara Nova foi um veículo de ligação e de debate onde se encontraram sectores distintos da oposição ao regime. Simultaneamente, a qualidade das colaborações registadas converteram-na numa das mais importantes revistas culturais portuguesas de sempre. Em 1972, a Seara atingiu os 26.500 exemplares com 16.373 assinantes! À data da queda do regime a tiragem aproximava-se dos 30.000 exemplares.
A queda do regime, em 25 de Abril de 1974, possibilitando a restauração da democracia, acabou por se refletir negativamente na revista. A unidade das forças oposicionistas existente na Seara Nova deixou de ser possível. Derrubada a ditadura, desaparecia a necessidade de unidade; cada agrupamento já existente ou formado após o triunfo da Revolução procurava afirmar-se com as suas ideias e os seus programas. A revista foi conhecendo dificuldades cada vez maiores, no plano financeiro, perdendo ao mesmo tempo o cunho unitário do passado. A actividade editorial diminuiu drasticamente e a tiragem desceu para 7.000. Continuou a sair regularmente até Janeiro de 1979 (nº 1598-9). A partir de então, publicaram-se números anuais para manutenção do título (1600, de 1980, ao nº 1604, de 1984). Em 1985, Jacinto Baptista, Rui Grácio, Salgado Zenha, Piteira Santos, Ulpiano Nacimento, Luís Francisco Rebelo e Aquilino Ribeiro Machado decidiram retomar o projecto seareiro, que se materializou no Verão desse ano, com um número dirigido por Ulpiano Nascimento. Desta nova fase publicaram-se 83 números, com numeração de 1 ao 83 (Primavera de 2004). Retomando no número de Verão desse ano a numeração original (nº 1685). Entretanto, a propriedade do título foi transferida para a Associação Intervenção Democrática.
Durante 100 anos, a Seara Nova arquivou nas suas páginas centenas e centenas de textos de cariz político, económico, científico, literário, artístico, histórico e pedagógico, sem esquecer as colaborações artísticas de alguns dos maiores vultos das Belas Artes, nomeadamente nas capas dos anos vinte e trinta. Afirmou-se na polémica, no debate de ideias, na crítica que enriquece e semeia a luz. Nela colaboraram alguns dos maiores vultos da nossa Cultura. Recordamos todos eles neste momento.
O segundo centenário começa agora.
Ad multos anos!
Notas:
[1] Sobre a História da Seara, vejam-se as excelentes sínteses: António Reis, «Seara Nova», Dicionário de História do Estado Novo, Direcção de Fernando Rosas e J. M. Brandão de Brito, Lisboa, Círculo de leitores, 1996, Volume II, pp. 890 a 893, e Daniel Pires, «Seara Nova», Dicionário da Imprensa Periódica Literária Portuguesa do Século XX (1941-1974), Volume II, 2º Tomo, Q-Z, Lisboa, Grifo, 2000, pp. 430 a 535. [2] Folheto Empresa de Publicidade Seara Nova, Lisboa, p. 9. [3] António Sérgio, «Aos estudantes portugueses promotores da trasladação dos restos mortais de Antero de Quental», A Águia, 2ª série, Volume XIX, Nº 109-110-111, Janeiro a Março de 1921, p. 55. [4] António Sérgio, «Sobre as correntes inclusas na Renascença Portuguesa e o seu destino», in Jaime Cortesão/Raul Proença – Catálogo da Exposição comemorativa do primeiro Centenário, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1985, p. 56. [5] Entrevista de Mário de Azevedo Gomes, «A situação dos Ministros do grupo Seara Nova em presença do Parlamento», Diário de Lisboa nº 886, de 27 de Fevereiro de 1924, p. 5. [6] António Sérgio, «O programa do governo e o da Seara Nova», Seara Nova nº 39, de Novembro-Dezembro de 1924, p. 44. [7] «Assistiram hoje ao funeral de Câmara Reys muitas centenas de amigos e companheiros de luta», Diário de Lisboa nº 13965, de 29 de Outubro de 1961, p. 3; República nº 11087, de 20 de Outubro de 1961, pp. 1 e 12. [8] «A Prisão de Democratas focada num Comunicado dos Serviços de Candidatura da Oposição de Lisboa, Diário de Lisboa nº 13968, de 1 de Novembro de 1961, pp. 1 e 11.
António Ventura
(1953)
Professor catedrático da Faculdade e Letras da Universidade de Lisboa