Elegia para um caixão vazio – O papel do jornal moderno, as suas limitações e a margem de progresso
Poderá não parecer, mas o fado é recorrente. Há gerações que andamos, na essência, a repetir as mesmas perguntas: o que torna um jornal especial? O que seduz o leitor? Qual a fórmula mágica para criar um jornal cuja compra se torne tão essencial como a aquisição de pão, de leite ou do maço de tabaco?
Os melhores cérebros desta arte pronunciaram-se sobre a questão e é pela miríade de respostas diversificadas desde o início do século XX que se compreende que a questão é complexa e volátil. Os poucos jornais bem sucedidos do século esgravataram o solo, como o vedor à procura de água, em busca de novos filões, mas o sucesso entre o público, essa hidra volátil de mil cabeças, é ingrato e efémero. Esfuma-se entre os dedos num ápice.
Para Silva Graça, inesquecível patrão de O Século, o sucesso da gazeta provinha do folhetim – o romance partido em fascículos, publicado diariamente na primeira página, sempre com nuances inesperadas, que atraíam o leitor como um íman. No Diário de Notícias de Eduardo Coelho, era a oportunidade de ler a notícia sem comentário e o pequeno anúncio num jornal de baixo custo que satisfaziam a clientela. O Diário de Lisboa de Joaquim Manso, por sua vez, abriu as páginas aos literatos: só era autor certificado, com direito a tabuleta na porta do escritório, quem publicasse rimas ou contos na página literária do jornal.
Como todas as inovações, o comboio do progresso chegou tarde ao jornalismo português. Já os grandes periódicos ingleses e americanos utilizavam novos géneros literários para satisfazer a avidez com que o leitor das grandes cidades consumia o jornal diário e ainda por cá se publicavam os intermináveis fundos editoriais, pérolas de sapiência e erudição, quantas vezes fundadas em compromissos partidários, e julgadas imperecíveis pelos seus autores e únicos leitores. Num texto jocoso, publicado em 1932 no Repórter X, Mário Domingues gozava apropriadamente com o velho estilo que marcara as gazetas da véspera: o literato da fama «escrevia pausadamente, num gabinete tranquilo onde nem sequer as moscas tinham licença de zumbir (…), absolutamente convencido de que a sua obra literária ou os seus artigos conceituados entrariam, com seu aureolado nome, na posteridade luminosa». Não entraram.
A entrevista foi um dos géneros jornalísticos que entrou de rompante, embora com atraso, no métier dos jornalistas portugueses da década de 1920. Começara por ser, como jocosamente Artur Portela (pai) a descreveu no Diário de Lisboa em Novembro de 1921, «paralítica de arte, ceguinha de mentira, toda arrepiada de falta de realidade (…) À cabeça, vinha o elogio do homem. Era sempre célebre, sempre ilustre, sempre eminente. (…) Vinha sempre um retrato empastado.» Portela e outros imprimiram dinâmica à técnica. Aproximaram-na da literatura: «A entrevista tem de ser leve, tão fluida como a palavra falada (…) O bom entrevistador não usa lápis nem papel. (…) Não temos de nos jungir ao que S. Ex.ª disse. O que ele disse? Não. O que o moderno repórter vai buscar ao entrevistado é o que ele não quer dizer.»
Como uma árvore, a entrevista enraizou-se. Ganhou pujança e espraiou a copa. Com o tempo, porém, mirrou. Regressou a velhos vícios. Recuperou parte do formalismo de outrora e debate-se hoje com os mesmos problemas de antanho: salvo honrosas excepções, não é uma conversa, é um testemunho a partir do púlpito. Um discurso intercalado por exclamações do entrevistador.
A outra novidade técnica que contaminou positivamente o jornalismo português foi a reportagem, primeiro profundamente desprezada pela hierarquia da classe como expressão de baixa cultura importada de França, mas depois valorizada por príncipes das letras como Reinaldo Ferreira, Mário Domingues, Artur Portela, Norberto de Araújo ou Urbano Carrasco. O público reagiu com agrado. As redacções tornaram-se campos de batalha entre duas facções e duas maneiras de entender a profissão. Pedindo emprestada a analogia de Mário Domingues, entre os editorialistas e os repórteres estabelecia-se «a mesma diferença que existe entre o mestre pintor de arte e o pintor industrial que estampa por molde florinhas exóticas no bojo das terrinas e dos bules». Que importa? A reportagem abre caminho ao entusiasmo e à imprevisibilidade. É, por definição, uma fuga à rotina, ao conteúdo predefinido da gazeta.
Os constrangimentos da Censura, demasiado comuns na história dos nossos sucessivos regimes (Cardoso Pires dirá, em Técnica do Golpe de Censura, «Portugal, com 420 anos de Censura em cinco séculos de imprensa, representa uma experiência cultural à taxa de repressão de 84%»), criaram zonas interditas – temas proibidos, reflexões vedadas, abordagens sociais excluídas. Com elas, perderam-se também temperos da reportagem e conduziram-se os repórteres e os jornais para o campo aberto – o da reportagem sensacional, bastas vezes espoletada por um episódio fortuito ou grotesco, mas não perdendo de vista a função principal – surpreender. Ensinar algo novo sobre a cidade e o mundo.
Em 1956, a revista Rádio e Televisão especificou aos seus leitores o que entendia por reportagem: «Um repórter é um espião. Onde quer que esteja, por onde quer que passe, para onde quer que olhe, o repórter procura novidade, coisa que o público desconheça. A reportagem é o seu relatório de espião». Mais à frente, enunciava a miríade de temas disponíveis: «Em toda a parte, há um assunto de reportagem: um distribuidor de correio que é cego; um menino com uma cabeça de nove quilos de peso; um mendigo que está a fazer fortuna; uma bruxa que cura a lepra da família; um pepino com sementes de prata; uma soleira de porta que faz morrer três gerações de moradores de uma casa; um pescador de enguias que tem uma técnica própria; um menino cujo berço ficou sob o rodado de um camião, sem desastres pessoais; um cavador que chegou aos cem anos sem nunca ter bebido água; um sujeito que ateava incêndios por vingança (…)».
Com este caderno de encargos, viveu-se – não tenhamos medo das palavras – a era de ouro da reportagem de imprensa em Portugal. Urbano Carrasco no vulcão dos Capelinhos, desafiando o risco para implantar uma bandeira de Portugal na Ilha Nova; Norberto Lopes no Atlântico Sul, averiguando se Gago Coutinho e Sacadura Cabral tinham sobrevivido; Urbano Tavares Rodrigues de muletas no Egipto, procurando perceber quem era Nasser e o que trazia o líder egípcio de novo ao debate global; Consiglieri Sá Pereira, na Noite Sangrenta de 1921, narrando a loucura colectiva como se estivesse estado presente no Arsenal de Marinha; Reinaldo Ferreira esmerando-se em quase tudo o que produziu… mas descontando aquilo que inventou por excesso de pressa. À imagem de Albert Londres ou de Upton Sinclair, os repórteres portugueses criaram um estilo.
À entrevista e à reportagem, somou-se a crónica – o género jornalístico esquecido. Ao longo do século XX, gerações de escritores, à míngua de livros vendidos, encontraram nas páginas das gazetas o barro para modelar páginas de sumptuosa criatividade literária inscrita no quotidiano. A crónica, entendida como reflexão sobre o tudo ou o nada, pincelada de apreciação de um momento e do seu significado para a sociedade, teve sempre praticantes em Portugal, mas encontrou, nos jornais de meados do século XX, o espaço que agora não tem. Crónica lúdica, à maneira de Assis Pacheco ou Cardoso Pires; ternurenta e evocando a infância como a de Baptista-Bastos; brutal e realista como a de Pedro Alvim, desapareceu hoje, sem deixar rasto. É um culto quase sem praticantes ou, dito de outra forma, a elegia do jornalismo moderno é, à imagem da ficção de Baptista-Bastos, para um caixão vazio porque, no interior, já não está o corpo.
A regeneração das redacções produzida pela revolução de Abril modificou uma velha hierarquia de periódicos – limpou velhos hábitos, conferiu consciência política (com excessos), mas não produziu necessariamente um jornalismo mais rico ou diversificado, sem tabus ou obstáculos. A revolução passou a correr e nós corremos com ela, diz o anti-herói de Lídia Jorge em Os Memoráveis. Emergiram novos jornais, desapareceram títulos históricos. As agências noticiosas passaram a marcar a agenda como um metrónomo impiedoso, desaconselhando fugas à rotina predefinida. O jornalismo esvaziou-se, não encontrando nos velhos géneros as fórmulas para apimentar a receita. Sem folhetins, sem entrevista, sem reportagem e sem crónica, o que resta ao jornalismo?
Duas correntes de pensamento têm ganho terreno, mas ambas apresentam problemas muito específicos. Uma delas assegura que, na era de contra-relógio em que vivemos, resta aos jornais o papel de interpretação e de contextualização do acontecimento. A notícia, velho património do jornal, foi trespassada para a rádio, depois para a televisão e agora para o universo digital. O velho “furo” jornalístico, a notícia que mais ninguém tinha e que gerava vendas de jornais, desaparece agora cinco minutos depois de ser anunciada. Já ninguém se lembra quem noticiou primeiro os últimos escândalos. Resta aos jornais interpretá-los, mas a reflexão requer diversidade e maturidade, bens escassos nas redacções modernas.
A outra corrente de pensamento assegura que a salvação do jornalismo reside na investigação e na capacidade de manuseamento e ordenamento de milhares de documentos num todo coerente. Os principais “furos” jornalísticos do século XXI (os Panamá Papers, os Football Leaks, os Pandora Papers) apresentaram desafios diferentes: forçaram a criação de competências digitais que não existiam nas redacções e cooperação internacional entre meios de comunicação, na esperança de que um consórcio com vários ramos locais seja mais capaz de encontrar nexo no poço sem fundo de documentos multinacionais que importa agora triar e validar. A principal limitação desta abordagem, além do custo, é a reduzida compensação para meses de trabalho vertidos numa única história (ou, no limite, numa série de histórias).
O jornalismo de Big Data, que tanto entusiasma os congressos de jornalismo, veio para ficar e marcará de alguma forma o futuro, mas não é – não pode ser – a receita para viabilizar jornais e jornalistas. Em última instância, da mesma maneira que os sociólogos da alimentação regressam ao pantagruel romano e aos livros de receitas medievais em busca de inspiração, também o jornalismo terá de mergulhar na sua história e extrair dela velhas receitas que ainda funcionem.
Há, claro, um problema de fundo – o da propriedade e da motivação dos proprietários de órgãos de comunicação social. Nesse aspecto, pouco mudou em cerca de século e meio de prática de jornalismo comercial em Portugal. Um jornal é um espelho do proprietário e da sua agenda. O público é melhor servido, não por um título bem sucedido, mas pela pujança de vários concorrentes que, idealmente, expressarão com maior fidelidade os múltiplos matizes das sensibilidades colectivas.
Nesse capítulo, a concentração de títulos em grupos de comunicação social e a opacidade de alguns proprietários (mal-grado as boas intenções da Lei da Transparência) serão sempre obstáculos à vitalidade do jornalismo praticado e à honorabilidade do conteúdo produzido.
Em aulas e congressos, regresso com frequência a um episódio narrado por Artur Portela (filho) em Fotomontagem, um dos livros satíricos mais interessantes sobre a história do jornalismo recente. Numa abordagem inspirada em factos reais, ocorridos no período em que fundou com José Sasportes o Jornal Novo, o autor deu conta de como decorreram as reuniões de apresentação do projecto do novo periódico aos líderes partidários após a revolução. Um deles, porventura o mais pragmático, ouviu com atenção a longa elucubração sobre o desejo de o jornal encontrar uma terceira via entre o PS e o PCP, a intenção de fazer jornalismo moderno, de importar técnicas de sucesso de França, de cativar o leitor pela surpresa e pelo desengajamento. Após a explicação, ao líder interessava apenas enunciar uma pergunta: «De quem é o jornal?»
Hoje como então, essa continua a ser a pergunta decisiva.
Gonçalo Pereira Rosa
(1975)
Centro de Estudos de Comunicação e Cultura, Universidade Católica