Entrevista a Luís Andrade. “O grande motor da história, na perspetiva seareira, é ético-moral e assenta na mudança das mentalidades, por via da educação”
Professor do Departamento de Filosofia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa, desde 1995, coordenador do Seminário Livre de História das Ideias, desde 2006, e do Grupo de Investigação Pensamento Moderno e Contemporâneo do CHAM – Centro de Humanidades, desde a sua constituição, em 2014, Luís Andrade tem-se dedicado ao estudo do pensamento e da cultura contemporâneos numa perspetiva que articula os saberes filosóficos e históricos com os estudos literários e artísticos. A sua investigação mais recente debruça-se sobre os movimentos intelectuais portugueses do século XX, nomeadamente as revistas que os definiram e estruturaram, como a Seara Nova, que ocupa lugar de destaque no sítio Revistas de Ideias e Cultura (www.ric.slhi.pt), que dirige. Membro da Comissão Promotora do Centenário da Seara Nova e coordenador do seu Conselho Científico, é um olhar de fora que está por dentro e a quem pedimos uma visão do passado, presente e futuro. Crítica, aberta ao debate e à polémica. Como a Seara.
Reuniu no portal Revistas de Ideias e Cultura (www.ric.slhi.pt), parte significativa do património editorial da Seara Nova. Qual foi o grande objetivo deste projeto?
A equipa que coordeno colocou online 1604 números da Seara, de 1921 a 1984, com índices de autores e muitas centenas de documentos. Estamos a trabalhar numa versão melhorada, com aditamento de mais polémicas, documentos e testemunhos, em colaboração com a Direção atual da revista. A nossa intenção, mais do que académica, é cívica, ou seja, o objetivo é que o legado da Seara seja parte da cultura atual numa perspetiva não apenas histórica, pois as análises, reflexões e polémicas que ocuparam as suas páginas ainda são ferramentas, conceitos e matérias que nos ajudam a pensar as grandes questões da sociedade atual. Há um legado cultural, que mantém plena pertinência. Aproveitámos a oportunidade, proporcionada pelos meios digitais, para divulgar um património que corresponde a mais de 31 mil páginas e mais de três mil autores, tornando ativo e atual aquilo que de outra forma seria quase inacessível. Isto é importante não só de um ponto de vista de justiça histórica e posicionamento cívico, mas também porque contribui para dar à Seara Nova presente e futuro, criando condições para a estudar completamente distintas daquelas que existiam até agora. Confirmamo-lo através de um conjunto muito variado de investigações que estão a ser feitas sobre a revista e sabemos, pelo Google Analytics, que o interesse na Seara é grande, dentro e fora de Portugal.
Diz no documentário da Diana Andringa que a Seara Nova é a espinha dorsal da cultura portuguesa no século XX. Em que sentido?
Não há nenhuma outra publicação ao longo do século XX que venha desde 1921 e durante, digamos, sessenta anos, reúna um conjunto tão significativo de pensadores e escritores, de homens das artes, das letras e das ciências. A resiliência que garantiu a sobrevivência da revista ao longo de todo este tempo foi feita em circunstâncias particularmente “difíceis”. Durante muitos anos, foi a única publicação periódica portuguesa com escala nacional onde os homens que preservaram a liberdade de pensamento e a atitude crítica puderam escrever. Quer por mérito da direção da Seara Nova, quer porque as circunstâncias não conferiam nenhuma outra tribuna a quem não se conformava com a ditadura, a revista acabou por desempenhar um papel axial na cultura portuguesa contemporânea.
Porque fala em sessenta anos quando estamos a celebrar o centenário da Seara Nova?
A Seara Nova tem várias épocas, nomeadamente a da Primeira República, de 1921 a 1926, e tem aí um conjunto de características. Depois tem uma segunda época, que vai até ao 25 de Abril de 1974 e esse é o seu período de apogeu, de resistência e de reunião dos intelectuais democratas. Para os fundadores da Seara Nova e as muitas centenas de autores que nela colaboraram, a cultura, a democracia e a liberdade eram três elementos de uma mesma realidade e, por isso, pensar doutrinária e criticamente e lutar politicamente eram tarefas que se complementavam. Depois, a seguir ao 25 de Abril, a Seara sofreu uma dura crise e o próprio diretor desse período do pós-25 de Abril, José Garibaldi, disse várias vezes que o maior erro que cometeu foi prolongar a Seara até 1978 ou 79, altura em que passou a ter só uma edição anual. Pelo que, a Seara Nova, como tinha surgido em 1921, acabou a seguir ao 25 de Abril, não por ser eu a decretar o óbito, mas porque o próprio diretor o manifestou.
Mas porquê?
Por dois motivos fundamentais: porque houve uma espécie de golpe dentro da revista, em que uma fação comprou a maioria das ações, e ainda fez um aumento de capital, e impôs o seu domínio e por outro porque muitos daqueles que tinham convergido até ao 25 de Abril, nomeadamente aqueles que eram próximos do Partido Socialista e os que eram próximos do Partido Comunista Português cindiram e, portanto, enquanto no período anterior estavam par a par passaram a estar frente a frente. A revista tornou-se profundamente sectária. Depois, teve um hiato e em 1985/86 renasceu das cinzas associada à Intervenção Democrática, que é, hoje, sua proprietária, mas que, sendo uma organização unitária, se mantém na orla do PCP. A Seara Nova que renasce não é exatamente a mesma, uma vez que tinha perdido peso e influência. Os debates, as polémicas, as discussões doutrinárias, que fizeram da Seara um órgão de imprensa influente, perderam fôlego, pelo que o seu período determinante para a cultura portuguesa, em que reúne a nata dos pensadores e autores, é o que vai de 1921 a 1974/75.
Mas a Seara Nova tem hoje um conjunto de pensadores e intelectuais de diversas áreas e tendências políticas de esquerda, que contribuem para manter o espírito inicial de pensar criticamente a sociedade portuguesa e contribuir com essa reflexão para o desenvolvimento e esclarecimento do país. Que papel pode, na sua opinião, desempenhar no presente e no futuro?
A força que a Seara ganhou desde a sua fundação assenta em três pilares, que aliás são aqueles que os fundadores referem no seu manifesto inicial: um deles é o de serem intelectuais políticos, mas não partidários, o que implica a não subordinação às agendas, linguagem e discursos políticos quando estes são de natureza partidária, por uma razão simples: quando as coisas têm um carácter propagandístico acabam por se submeter a um efeito pragmático. Na Seara, há uma distinção entre aquilo que é político-partidário, que tem esse significado pragmático, e o que é político e tem um significado reflexivo, teórico, o que não significa que não seja igualmente interventivo.
O outro aspeto que me parece importante é que a Seara definiu-se como uma revista de doutrina e de crítica e aquilo que, de facto, do meu ponto de vista, fará sentido e é necessário à esquerda, para criar outras expectativas políticas, é regressar à doutrina. A Seara pode e deve fazer isso: o que é que na Seara se entende hoje por democracia, por socialismo, por revolução, por liberdade? Uma série de conceitos chave que se dissolveram, nos nossos dias, numa polissemia em que perderam o significado porque são tudo e nada. O Raúl Proença, o António Sérgio, o Jaime Cortesão, escreveram profundamente sobre o que era para eles democracia, socialismo, liberdades individuais. A Seara poderia reassumir essa dimensão doutrinária e isso é muito importante porque, se não o fizer, é o próprio combate das ideias e a possibilidade de se criarem novas realidades que se perde. É o combate ideológico que se perde, se não se conseguirem definir os conceitos pelos quais se combate. Não quer dizer que cada um destes conceitos tenha uma única formulação, significa sim que tem que haver um debate sobre as questões que lhes estão associadas. Foi em torno desses debates que a Seara foi criada e foi isso que fez a sua força. Aliás, o subtítulo era precisamente revista de doutrina e crítica e há todo um espaço que é necessário refazer para construir esse pensamento em vez de simplesmente fazer eco de agendas políticas.
O terceiro pilar principal foi a crítica e era bom que esta tivesse outra escala, como teve no período da Primeira República e da Ditadura. Por exemplo, a liberdade de expressão de pensamento é sempre um bem ou é um conceito relativo? Há valores universais em qualquer sítio do mundo e em qualquer circunstância ou a crítica que se faz aqui em nome de determinados valores, já não serve para se fazer em nome dos mesmos valores numa outra qualquer latitude? É essa capacidade de pensar claro em questões doutrinárias, independentemente da esfera partidária, que é importante recuperar e nesse sentido penso que a Seara pode ter um papel enorme à sua frente para desempenhar.
Pensamento crítico e ação: é o lema do centenário da Seara Nova. Nestes cem anos, a revista foi mais de pensamento crítico do que de ação, não foi?
Não me parece. Os seareiros não agiram politicamente por via partidária nem por via governativa, mas não foram menos atores da vida política do que pensadores. Basta pensar que os seareiros estiveram logo no seu início muito envolvidos na revolta militar que mais ameaçou o Estado Novo, que foi o 3 de fevereiro, no Porto, e o 7 de fevereiro, em Lisboa. Jaime Cortesão foi nomeado Governador Civil do Porto durante a revolta, Raúl Proença veio do Porto para Lisboa para que os compromissos político-militares fossem satisfeitos. O Câmara Reys, o Rodrigues Miguéis, o Aquilino Ribeiro, estavam com armas nas mãos nos diferentes sítios e, falhado o golpe, foram quase todos para o exílio. A ideia de que os seareiros não foram homens de ação é errada. Entre os cem seareiros mais significativos, mais de oitenta estiveram presos; muitos conheceram o exílio, a prisão, a expulsão de Portugal, como António Sérgio e Jaime Cortesão; participaram em todas as tentativas de golpe ou conspiração militar, incluindo no 25 de Abril. Do ponto de vista da ação política, foram ativíssimos: estiveram na fundação do MUD, quem promoveu a candidatura do Humberto Delgado foi o António Sérgio, estiveram em todas as campanhas eleitorais – o Câmara Reys morreu em campanha eleitoral, em 1961 -, pelo que não pode dizer-se que eram pessoas que estavam no gabinete e não nas ruas.
Considera então injusto que, na polémica com o Rodrigues Miguéis, anos 1930, que levou à sua saída, se passe essa ideia de que os ideais fundadores da Seara Nova e a própria condução da revista seriam utópicos?
Não entendo a crítica do Miguéis da maneira que a direção da Seara de então entendeu e como ficou para a história…. O que os seareiros defendem é que o país necessita de se pôr a par da Europa culta do seu tempo. Portugal não passou pela revolução científica, não passou pelas luzes, e, por isso, tudo aquilo que era a racionalidade moderna e contemporânea tinha-nos passado ao lado. Os seareiros consideravam que esse papel de introduzir a racionalidade e o espírito europeus, bem como as consequências do conhecimento científico na vida social, seria atribuível às elites e que, nessa medida, era necessário formar elites nos diferentes domínios da vida nacional. O essencial do argumento do Miguéis é que as revoluções são feitas pelo povo e é aí que há a divergência. Na perspetiva do socialismo científico poderiam ser classificados como socialistas utópicos, porque acreditavam que as grandes transformações seriam culturais e de natureza moral, por via da mudança de mentalidades e não através da ditadura do proletariado.
Como definiria então o espírito seareiro?
Do meu ponto de vista, é uma espécie de sistema de valores políticos, não propriamente uma doutrina, mas uma axiologia. E nesses valores há valores fundamentais que são os da liberdade política e da liberdade pessoal em todas as circunstâncias – daí que fossem anti-bolchevistas -, da democracia, da igualdade e distribuição justa dos rendimentos, de uma sociedade feita de indivíduos autónomos, críticos, capazes de pensar por si próprios. Fundamental, também, é a ideia da difusão genérica da educação, permitindo a aproximação da legitimidade inerente ao sufrágio eleitoral com a legitimidade inerente ao conhecimento. Só uma opinião pública esclarecida pode fazer que a governação assegure o bem comum. O grande motor da história, na perspetiva seareira, é ético-moral e assenta na revolução cultural própria da mudança das mentalidades. Ou seja, para os seareiros, só transformando as mentalidades por via da educação é que é possível reformar a sociedade e criar um mundo melhor. Opunham-se de forma veemente à ideia de que se possa reformar as sociedades apenas através da vontade política e das leis.
Quem são as grandes figuras da Seara Nova?
A matriz da Seara Nova é Raúl Proença, que foi o grande doutrinador. Deixou de publicar em 1931 por questões de saúde mental, em parte decorrentes do exílio, mas é a grande cabeça pensante da revista. O Proença distingue-se contra os integralistas, contra o fascismo, na definição do estatuto dos intelectuais e do intelectual político, independente das relações partidárias. A segunda grande figura é o António Sérgio, que vem do Brasil em 1923 a instâncias do Raúl Proença, e que é o maître a penser dos anos 1930 e 40. As teses fundamentais sobre historiografia, literatura, filosofia e educação foi ele que as inscreveu. Era um ensaísta muito criativo, bastante erudito e que inspirou gerações de jovens pensadores. Outra grande figura, que acaba por escrever menos por vicissitudes da vida e do exílio, é o Jaime Cortesão. Os três já se conheciam bem da Renascença Portuguesa dez anos antes e o Cortesão é o símbolo da integridade republicana quase absoluta. A quarta grande figura é o Luís da Câmara Reys, um dos fundadores e o homem que ininterruptamente assume o trabalho editorial e administrativo da revista até aos anos 1960. Consegue nunca ser preso e foi graças a ele que a revista subsistiu. Era bastante conceituado enquanto professor do liceu, de um espírito vagamente libertário e desconcertante em vários aspetos, mas foi ele que conseguiu manter a Seara durante 40 anos, entre vicissitudes financeiras e as de quem dirige um periódico com tantos colaboradores diferentes, onde acaba sempre por tomar decisões que não agradam a todos. Foi ele que mediou conflitos, com um estilo de administração, como dizia, feita a partir do elogio da imprudência, o que tornava tudo mais complicado.
E além dos fundadores?
Há muitos outros nomes que fizeram um trajeto importante na revista. O Mário de Azevedo Gomes é uma personagem bastante relevante, o Fernando Lopes-Graça, gente ligada à cultura e às artes, a Irene Lisboa, nas questões ligadas às mulheres, Faria de Vasconcelos nas questões ligadas à educação. Nós, no portal, temos os 15 que mais escreveram, mas realmente fundamental é perceber o importantíssimo legado que a Seara deixa aos nossos dias. A Seara surge como uma escola de integridade, porque todas essas figuras proeminentes foram cidadãos exemplares que dedicaram a vida unicamente à liberdade, à democracia e à cultura.
Luis Crespo de Andrade
(1953)
Professor da FCSH-UNL e Coordenador científico das Comemorações do Centenário da revista Seara Nova