“Era trabalho e era bonito”. A propósito de Maria Keil e as artes gráficas

De Silves a Lisboa, o encontro com Keil do Amaral e com “um mundo diferente, um mundo melhor”

Maria Keil nasceu em Silves, terra de corticeiros, com o início da I Guerra Mundial, em Agosto de 1914. Aos quinze anos de idade partiu para Lisboa para frequentar a Escola de Belas-Artes por vontade da família, aconselhada por Samora Barros, seu professor de desenho na Escola Industrial. Após a conclusão do curso geral de três anos, frequentou o primeiro ano do curso de Pintura com o pintor Veloso Salgado. Entretanto, conheceu na Escola de Belas-Artes Francisco Keil do Amaral, na altura aluno de Arquitetura, com quem viria a casar em 1933. O casamento com Keil do Amaral, e a aproximação a um círculo de amizades que incluía alguns dos mais notáveis intelectuais e artistas portugueses da época, fê-la perceber que “na Escola não se aprendia nada”. Foi em casa de amigos, nos cafés, que descobriu e teve acesso ao que as vanguardas artísticas internacionais faziam. Longe do academismo do ensino oficial das artes, havia um mundo por explorar cujos ecos chegavam a Portugal através de revistas e livros que circulavam entre amigos ou pela boca dos poucos artistas nacionais que conseguiam viajar e estabelecer-se fora do país.

Um texto de Maria Keil, de homenagem a José Gomes Ferreira, grande amigo do casal Keil do Amaral, demonstra a importância que assumiu na sua vida o contacto com os outros: “Há pessoas que nascem mais do que uma vez. Eu por exemplo. Numa das vezes em que nasci encontrei o José Gomes Ferreira. Vivia numa casa pombalina com uma ampla entrada calcetada e uma escada de pedra por onde se subia até ao segundo piso e se entrava numa casa grande, com lambrins de azulejo e janelas de guilhotina, povoada de gente completamente nova para mim. Por fora essas pessoas eram como toda a gente, mas por dentro, isto é, o que diziam, as opiniões, as atitudes, a maneira como conviviam umas com as outras, eram, para mim, de um mundo diferente. De um mundo melhor. Senti que tinha nascido outra vez”[1].

A obra de Maria Keil: Tentativa de periodização

A obra de Maria Keil, muito extensa e variada, abarca as artes gráficas, a publicidade, a ilustração, a azulejaria, o desenho, a pintura, a gravura, a tapeçaria, o mobiliário, entre outros.

O trabalho artístico de Maria Keil pode ser dividido em duas fases: uma primeira fase que abrange as décadas de 1930 e de 1940, de aprendizagem e de formação, marcada por uma intensa atividade no âmbito das artes gráficas, da publicidade e das artes decorativas, em parte devido a encomendas estatais; e uma segunda fase que teve início nos anos de 1950 e se estendeu até ao final da vida da autora, em 2012, de experimentação, diversificação, maturidade e consagração, em que se dedicou a novas disciplinas artísticas, designadamente, à ilustração infantil e à azulejaria, e em que trabalhou sobretudo para particulares.

A linguagem plástica desenvolvida por Maria Keil nos anos de 1930 e de 1940 distingue-se pelo seu carácter sintético, muito gráfico, de traço bem definido, isento de pormenores ou elementos anedóticos. A partir dos anos de 1950, o amadurecimento da autora, enquanto mulher e artista, e as novas experiências artísticas que a década lhe trouxe, resultaram numa suavização do traço que adquiriu uma expressividade pessoal, um lirismo e uma intemporalidade que dificulta a datação dos seus trabalhos. Podemos subdividir esta última fase em dois períodos: um primeiro que termina nos anos de 1980 e um segundo que se estende dos anos de 1980 até 2012, de plena consagração da autora, cujo mérito foi reconhecido através da atribuição de prémios e a organização de exposições retrospetivas.

As artes gráficas: A colaboração com a Seara Nova

O percurso de Maria Keil nas artes gráficas teve início em 1936, no Estúdio Técnico de Publicidade (ETP), fundado por José Rocha e onde trabalhavam, entre outros, Botelho, Bernardo Marques, Ofélia Marques, Thomaz de Mello e Fred Kradolfer, suíço que se estabeleceu em Portugal e que teve um papel determinante no desenvolvimento das artes da decoração e da publicidade no país. No ETP, Maria Keil reaprendeu a desenhar, conheceu uma nova realidade, a da publicidade, e desenvolveu um grafismo muito próprio, de risco sintético e estilizado, claramente modernista, influenciado por Kradolfer e pelos restantes artistas gráficos que trabalhavam no estúdio. Nas palavras da autora: “Era trabalho e era bonito. O que nós conhecíamos de publicidade não prestava para nada”[2]. Ao longo da sua vida, a artista aplicaria os conhecimentos adquiridos no ETP a áreas artísticas distintas da publicidade, designadamente os princípios do sintetismo e da racionalidade.

Nas décadas de 1930 e de 1940, Maria Keil colaborou com revistas de cariz variado, como a Revista de Portugal, a Seara Nova, a Panorama, a Eva, a Variante, a Litoral, a Ver e Crer e a Aqui e Além, para as quais realizou trabalhos de ilustração de textos ficcionais e trabalhos de paginação e conceção de elementos gráficos. Numa época em que existiam poucas galerias de arte em Portugal ou outros locais para expor, estas publicações constituíam um importante meio de difusão do trabalho dos artistas plásticos portugueses.

Grafismo e logotipo da Seara Nova criado por Maria Keil

A Seara Nova foi fundada na vigência da I República, em 1921, por um grupo de intelectuais republicanos livres, entre os quais, Jaime Cortesão, Raul Proença, Raul Brandão, Aquilino Ribeiro, Câmara Reis, Ferreira de Macedo e Faria de Vasconcelos. Tratava-se de uma revista de doutrina e crítica, com fins literários, pedagógicos, políticos e sociais. Mais do que uma publicação periódica, a Seara Nova foi um órgão de intervenção de sucessivos grupos de intelectuais republicanos de esquerda e de oposição ao Estado Novo. Nas décadas de 1930 e 1940 contou com a colaboração de conceituados autores portugueses da época, entre os quais Mário de Castro, Emílio Costa, Henrique de Barros, Rodrigues Lapa, Agostinho da Silva, Irene Lisboa. Nas décadas seguintes, de 1950 e de 1960, a Seara Nova assumiu um papel importante na renovação doutrinária da esquerda portuguesa e na sua afirmação política e cultural. Além da publicação da revista, o grupo da Seara Nova promoveu colóquios e debates.

Do ponto de vista gráfico esta revista apresentava uma linguagem moderna, patente nas sete vinhetas desenhadas por Maria Keil para identificar os temas abordados no periódico: “Música”, “Teatro”, “Cinema”, “Artes Plásticas”, “Livros e Periódicos”, “Factos e Documentos” e “As nossas edições”[3].

Vinheta temática desenhada por Maria Keil para a Seara Nova, no início da década de 40

Maria Keil recorreu a uma sobrearticulação de planos recortados de várias redes e manchas gráficas que contrastam entre si. Este contraste, acrescido da utilização de linhas sintéticas, por vezes ondulantes, introduz na composição formas geométricas que correspondem a objetos. O efeito global é de unidade e clareza. Em três dos casos a autora associou texto à composição, criando uma relação de equivalência gráfica entre desenho e texto e, em simultâneo, reforçando a leitura da imagem. As maquetas destas vinhetas foram expostas em 1942 na 1.ª Exposição de Artistas Ilustradores Modernos, promovida pelo SPN, a par de outras obras gráficas da autora[4].

Maria Keil também fez as capas e ilustrou alguns livros publicados pela Seara Nova, um dos quais da autoria de Irene Lisboa, sob o pseudónimo de João Falco, intitulado Começa uma vida e editado em 1940. Irene Lisboa foi uma escritora, professora e pedagoga relevante no quadro cultural português, uma mulher que tinha uma visão da educação muito diferente daquela que era preconizada pelo Estado Novo o que levou a que acabasse por ser afastada do Ministério da Educação. A sua vida pessoal, marcada por uma infância difícil, vivida com o pai, de quem era filha ilegítima, e a madrasta, transparece na sua obra, designadamente em Começa uma vida, romance autobiográfico, narrado na primeira pessoa. Maria Keil, usando uma expressão sua para descrever o trabalho de ilustração, procurou “concretizar em linha e traço o que estava escrito”, e fê-lo de uma forma exímia[5].

Na capa da obra, Maria Keil optou por representar um retrato da protagonista da história em menina, sentada num grande cadeirão, abraçando uma boneca, elementos que acentuam a fragilidade da criança. Uma moldura ondulada envolve o desenho, reforçando a sugestão de retrato. O desenho, assinado “M”, no canto inferior direito, segue uma linguagem modernizante, estilizada. Mais uma vez, a autora recorre à sobrearticulação de malhas e manchas de cor, em preto e azul, que dispensam o uso de contorno no desenho das figuras e objetos, tornando-o mais fluído e sintético. As ilustrações do interior do livro, desenhadas a tinta-da-china, sem aplicação de cor, são construídas, tal como a capa, com recursos a malhas e manchas gráficas sobrearticuladas que sugerem a cor, a luz e as sombras[6]. As figuras e os objetos são representados de forma estilizada, reduzidos às suas formas essenciais, sem perderem, contudo, expressividade.

Em 1947, Maria Keil fez a capa da obra Ossadas, de Afonso Duarte, também uma publicação da Seara Nova. Afonso Duarte (1884-1958), licenciado em Ciências Físico-Naturais pela Universidade de Coimbra, distingue-se pela sua obra poética e investigação nas áreas da pedagogia e da etnografia. Foi cofundador, com António de Sousa, Branquinho da Fonseca, João Gaspar Simões e Vitorino Nemésio, da revista coimbrã Tríptico (1924), colaborou em várias publicações periódicas, como A Águia, Contemporânea, Presença, Manifesto, Portucale, Notícias do Bloqueio, Cadernos de Poesia e Litoral.

O projeto gráfico da capa desta obra é muito simples: sobre um fundo branco, Maria Keil introduziu, em cima, centrados, o nome do autor e o título da obra, o primeiro a preto, o segundo a vermelho, ambos em caixa alta; ao centro da composição, desenhou um pequeno ramo de flores vermelhas e folhagem; na zona inferior da capa, também ao centro, inscreveu o local e a data da publicação.

Já em 1971, a revista Seara Nova convidou dezasseis artistas plásticos portugueses a criarem um cartaz no âmbito das comemorações do seu 50.º Aniversário. Maria Keil foi uma das artistas convidadas, tendo usado um desenho que realizara em 1964 para o Romanceiro geral do povo português organizado por Alves Redol que ilustrava o texto “Romance de um cativo[7]. Os restantes autores de cartazes foram Rogério Ribeiro, Charrua, Espiga Pinto, José Cândido, Lima de Freitas, Cipriano Dourado, Daciano Costa, Eduardo Nery, João Abel Manta, Jorge Vieira, Luís Filipe de Abreu, Querubim Lapa, Henrique Ruivo, Sá Nogueira e Vespeira.

Algumas notas finais

Maria Keil considerava-se essencialmente uma desenhadora. A habilidade com que se expressava através do traço e da linha, independentemente do suporte ou do fim a que se destinava o desenho, é notória. Por outro lado, a artista tinha um entendimento do espaço e uma capacidade de abstração pouco vulgares. A sua obra, multifacetada, reflete uma personalidade complexa, um mundo interior muito rico e uma sensibilidade artística excecional. Grande parte do corpo de trabalho da artista foi realizado num contexto histórico marcado pelo autoritarismo e totalitarismo de um regime nacionalista que marcou profundamente a arte portuguesa do século XX. A vivência intima com figuras destacadas de oposição ao regime, ainda que não tenha resultado numa arte assumidamente de luta política, está presente no pensamento artístico subjacente à sua obra, marcado por uma vontade de mudança e modernidade.

Notas:
[1] Raúl Hestnes Ferreira, José Gomes Ferreira. Fotobiografia, Publicações Dom Quixote, 2001, p. 177.
[2] Entrevista concedida por Maria Keil em 2009 e publicada em, Helena Alexandra Mantas, Maria Keil, uma operária das artes (1914-2012), dissertação de doutoramento, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2013, Vol. II, p.8.
[3] Seara Nova, N.º 619, 24 de Junho de 1939, p. 16; N.º 621, 8 de Julho de 1939, p. 51; N.º 707, 1 de Março de 1941, p. 174; N.º 708, 8 de Março de 1941, p. 200; N.º 709, 15 de Março de 1941, p. 219; N.º 710, 22 de Março de 1941, p. 234; N.º818, 17 de Abril de 1943, p. 26. Originais à guarda da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), Lisboa, Col. MK, cat. 141. Quando consultámos esta coleção em 2009, o processo de transição do espólio para a BNP estava em curso, na sequência da oferta pela autora, pelo que a mesma ainda não estava referenciada. Identificámos os originais pelo número de catálogo da mostra bibliográfica: Maria Keil ilustradora. Mostra bibliográfica, catálogo da exposição, Biblioteca Nacional, Lisboa, 2004.
[4] 1.ª Exposição dos Artistas Ilustradores Modernos, catálogo da exposição, Porto, Edições SPN, 1942.
[5] João Paulo Cotrim, “Maria Keil. A linha e o traço”, in Actual, suplemento do «Expresso», 28 de Agosto de 2004, p. 18.
[6] BNP, Lisboa, Col. MK, cat. 113 e 114. Quando consultámos esta coleção em 2009, o processo de transição do espólio para a BNP estava em curso, na sequência da oferta pela autora, pelo que a mesma ainda não estava referenciada. Identificámos os originais pelo número de catálogo da mostra bibliográfica: Maria Keil ilustradora. Mostra bibliográfica, catálogo da exposição, Biblioteca Nacional, Lisboa, 2004.
[7] Seara Nova, N.º 1508, Julho de 1971, s.p.