O Orçamento que não passou: uma análise
Como é hábito a Seara Nova convida todos os anos alguém da área económico/política a pronunciar-se sobre o Orçamento de Estado. Este ano, apesar de o Orçamento ter sido rejeitado logo na discussão na generalidade, convidámos o economista Duarte Alves, para comentar a proposta apresentada pelo Governo.
O Orçamento de Estado para 2022
A Proposta de Lei do Orçamento do Estado (OE) para 2022 foi rejeitada na generalidade.
O PS, ao não ceder à esquerda, parece ter pretendido, embalado pelas precipitadas declarações de Marcelo Rebelo de Sousa, ir para eleições antecipadas e tentar a maioria absoluta, como, quer no discurso de António Costa, quer em várias declarações de dirigentes do PS, parecia ser o objetivo?
Questões como a valorização do trabalho e dos salários, o reforço do Serviço Nacional de Saúde (SNS) em meios humanos, a resposta à crise da habitação, a construção de uma rede de lares de idosos e de creches, e ainda o combate aos aumentos especulativos do preço da energia e dos combustíveis não podiam ser consideradas e, para tal, procurar-se entendimento se não houvesse outro objetivo que não fosse o de aprovar o Orçamento?
À esquerda as reivindicações – salários, direitos laborais, garantias na fixação de profissionais no SNS – portanto valorização do trabalho, valorização e defesa do SNS, eram não só justas como exequíveis.
Considerado, mesmo na área do Partido Socialista, o modelo económico baseado em baixos salários como um problema estruturante do país, como se pode compreender a resistência à valorização do SMN?
Se é reconhecido que os salários medianos estão demasiado próximos do SMN, como aceitar que permaneçam na legislação laboral os ataques à contratação coletiva do tempo da troika e mesmo os anteriores, quando é precisamente a contratação coletiva que pode levar a uma valorização dos salários intermédios?
Se está à vista de todos a predação dos grupos privados da Saúde (ou, melhor dizendo, do negócio da doença), drenando médicos e outros profissionais para fora do SNS, como é que se admite que um “Orçamento de esquerda” rejeite a criação de incentivos para a fixação desses profissionais?
Há recursos disponíveis
Poder-se-ia dizer que não há recursos para essas respostas, mas a previsão de crescimento económico (5,5%), a suspensão das regras (inaceitáveis) do Tratado Orçamental relativas ao défice, ou ainda os tão propalados milhões do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR/“bazuca”), desautorizam essa ideia. E, aliás, suscita-se a pergunta: se não agora, com estas condições, quando se iniciaria um caminho de resposta a estes problemas estruturais do país, que foram agravados pela pandemia?
Seria possível concretizar os avanços acima referidos (muitos sem impacto orçamental direto), não fosse, por um lado, a obsessão pela redução acelerada do défice, e por outro, a recusa em implementar medidas para aumentar a receita, como o englobamento obrigatório de rendimentos, a taxação em Portugal dos lucros realizados no país, ou o fim da drenagem de recursos públicos para as Parcerias Público-Privadas (que custam 1.400 milhões de euros/ano).
Havendo problemas estruturais, havendo recursos disponíveis, o PS com a posição assumida de não aceitar as propostas colocadas à sua esquerda, coloca-se na velha posição de não querer afrontar as imposições de Bruxelas – ainda que suspensas! – bem como os grandes interesses económico/financeiros mantendo assim, e agravando mesmo, as desigualdades e a delapidação de recursos e a entrega ao setor privado de importante apropriação de áreas do setor da saúde agravando assim o já altamente rentável negócio da doença em Portugal.
Um contexto diferente
Após as eleições de 2015, foi possível reverter muitos dos ataques a direitos realizados pelo Governo PSD/CDS, interromper processos de privatização, e mesmo avançar em medidas tão significativas como os aumentos extraordinários das pensões, os passes sociais intermodais a preços reduzidos, ou a gratuitidade dos manuais escolares, para citar apenas alguns exemplos.
Muitos desses avanços não estavam escritos no tal “papel” exigido pelo então Presidente da República Cavaco Silva. Contrariamente ao que tem sido repetido, não houve naquele período nenhum “acordo de legislatura”. Cada Orçamento foi discutido pelo que continha e pelo que ia para lá dele. Também não é verdade que, até agora, questões fora do âmbito estritamente orçamental não tenham vindo para cima da mesa: a reposição dos feriados, das 35 horas na Administração Pública, os aumentos (insuficientes) do SMN, são exemplos de questões extra-orçamentais que sempre pesaram na apreciação e sentido de voto em cada OE.
No OE 2021, discutido em finais de 2020 no momento mais crítico da crise sanitária, repôs-se o pagamento dos salários a 100% para os trabalhadores em lay-off (que tiveram o seu salário cortado em 1/3 por Decreto-Lei do Governo e depois pelo OE Suplementar); prolongou-se por mais seis meses os subsídios de desemprego (ao contrário do OE Suplementar); garantiu-se verbas para o SNS; criou-se o suplemento remuneratório para os serviços essenciais.
Para 2022, passada a fase mais aguda da pandemia, mas persistindo as suas consequências económicas e sociais, exigia-se uma resposta mais ampla, que abrisse caminho à superação dos graves problemas nacionais.
Um Orçamento expansionista?
É significativo que as verbas do PRR tenham sido encaradas como uma substituição da fonte de receita, e não numa perspetiva de incremento substancial do investimento público. Quando retiramos da equação as verbas do PRR, o investimento público orçamentado desacelera face a 2021[1].
A baixa execução do investimento público, sempre sacrificado no altar do défice, tem sido gritante ao longo dos últimos anos: entre 2016 e 2020, ficaram por executar cerca de 4 mil milhões de euros. É por isso um engano a propaganda do Governo, referindo um aumento do investimento público de 30%, uma vez que compara a estimativa de execução de 2021 com o orçamentado para 2022, sabendo que, tal como em anos anteriores, deixará grande parte por executar. Os níveis anímicos de investimento público, muito abaixo dos mínimos recomendáveis, permanecem um problema a que o Governo não dá resposta, nem quando tem em mãos os recursos para tal.
A prioridade absoluta ao défice ficou bem patente, mesmo num período como o que atravessamos, em que todos reconhecem a necessidade de aumentar os investimentos e assim impulsionar a atividade económica. Segundo o FMI, Portugal é a sétima “economia avançada” (em 38 países) com uma menor despesa pública adicional em resposta orçamental discricionária à crise da COVID-19[2].
Ao passo que em Espanha, por exemplo, o défice previsto para 2022 é de 5%, depois de ter sido 8,4% em 2021, o governo português previa um défice de 3,2% em 2022, depois de ter sido de 4,3% em 2021 (o terceiro menor da zona euro), revelando mais uma vez o mito do “orçamento expansionista”.
Notas: [1] Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) da Assembleia da República, Relatório n.º 19/2021, Apreciação preliminar da Proposta de Orçamento do Estado para 2022, p. 86 [2] FMI, Fiscal Monitor Database of Country Fiscal Measures in Response to the COVID-19 Pandemic, citado no artigo de Paulo Coimbra “Política económica em tempo de pandemia à esquerda? Não exactamente”, publicado no blogue Ladrões de Bicicletas a 30/10/2021 (https://ladroesdebicicletas.blogspot.com/2021/10/politica-economica-em-tempo-de-pandemia.html)
Duarte Alves
(1991)
Economista e Deputado à Assembleia da República do Grupo Parlamentar do PCP