Sal da Terra – “Fiódor diante do pelotão de fuzilamento”
Causa de morte: juventude. Haveria de ler na ardósia da enfermaria, junto ao cadáver de olhos arregalados de pânico e perplexidade. O que estou aqui a fazer? A letra, não reconheces a letra do teu pai?, a forma elegante como declara óbitos, como quem distribui autógrafos, a esfregar as mãos de vísceras, lastro de sangue alheio na bata, glóbulos vermelhos sem prestígio, vai para a enterrar ou para autópsia, senhor doutor?, e os seus dedos tão pouco gentis a baixar as pálpebras de gente que ainda respira, ainda estou vivo, senhor doutor, mas é por pouco tempo, não se apoquente, a lentidão com que morrem os mujiques, agarram-se à vida, que diabo, mas que vida?, murmura, enquanto segura a serra das amputações e se dirige a outra cama, a outro olhar de pânico e perplexidade, que ofício este de desmembrar gente, emboscar gangrenas, pessoal menor, servos da terra, miuçalha de fábrica e de engrenagem. O que estou aqui a fazer pai? Já morri? Promete que não tentas empurrar-me as pálpebras se meu hálito embacia o espelhinho que costumas trazer no bolso. E depois limpas aquele nevoeiro de vida, contrariado, e voltas a guardá-lo, embrulhado num pedaço de feltro, com mais carinho do que amortalhavas os corpos, porque é que um espelho tem este poder de sentença de tribunal condenatório? Culpados! Foi isso que ele disse, amigos, estamos juntos na vida e na morte. Já morremos? Ainda não? O meu pai despachava os óbitos de corações ainda palpitantes. Para adiantar serviço. Na ardósia da enfermaria. Causa de morte: juventude. Na ardósia da enfermaria. Causa de morte: alacridade, entusiasmo, riso. Na ardósia da enfermaria. Causa de morte: veneração a Gogol. Acho que aprendi a ler naquelas ardósias. Palavras difíceis: apendicite, diabetes, tuberculose, cólera, cirrose… Pai, todas as doenças graves têm três sílabas? Cala-te, fedelho, sai-me da frente, desanda, sempre a ensarilhares-te no meu caminho. E agora, pai, havias de me ver, a quanta gente empato o trânsito, quantas carruagens paradas na Praça Semenovski, a turbamulta jubilosa, ávida de sangue. Lavam daí as suas mãos, como tu, pai, esfregam-nas na bata. Sai-me da frente, inútil. Causa de morte: inutilidade. E o teu examinar vesgo de corpos inchados de podridão e ressentimentos. Se ainda nem sabias, nem eu, que eu padecia de epilepsia. Levava três dias a recuperar de cada ataque. Mas esta palavra difícil nunca me apareceu no quadro da enfermaria. Já rufam os tambores, coados como num aquário, os pensamentos soam tão alto e abafam tudo. Amigos, já levam Petrashevski, Mombelli e Grigoriev, despem-nos em pleno inverno. Causa de morte: hipotermia. Atam-nos a um poste, coberta a cabeça com a carapuça dos condenados, perante o pelotão de fuzilamento. Tenho cinco minutos, pai. Os meus últimos cinco minutos de vida. Devo aproveitá-los ao máximo. Dois minutos reservados para pensar nos meus camaradas de leituras e de infortúnio, outros três minutos reservo-os para mim, para as coisas que me fazem amar a vida. Não quero chegar lá a cima, rabugento como os velhos a quem negam vodka. Como tu, pai. Causa de morte: juventude. Causa de morte: alegria. Quero concentrar-me, mas os meus olhos varejam pela praça, reparo em inutilidades. Causa de morte: inútil. No bigode em ferradura assimétrica de um dos guardas, na flecha de gansos bravos que cruzam o céu, na neve, há quanto tempo a não via, que cristaliza os meus pêlos da barba, na aranha contrariada com tanta agitação que se escapule do poste do condenado, no cão arrependido por ter entrado naquela praça com intenso cheiro a medo e gente que expele nuvens pelo nariz, leva os quadris a romperem a pele de tão magro, como os teus pobres, não precisavam de morrer para lhe anatomizares os ossos e as artérias … Viver cada um dos cinco minutos como uma eternidade, mas sempre a infância entalada na garganta, como uma espinha, por mais que engula bolas de pão. Causa de morte: desamor. Ora bem, se isso matasse, íamos todos. Sai-me da frente, pai, não me empates os derradeiros minutos, fragmentos de eternidade. Chega para lá o espelho, garanto-te que não morri. Dostoiévski, 27 anos, causa de morte: Execução forjada.
* A 22 de Dezembro de 1849, o czar Nicolau I ordenou que simulassem a execução de Dostoiévski e seus companheiros por actos pretensamente conspirativos e revolucionários. Apesar de estarem condenados ao degredo na Sibéria, onde cumpririam trabalhos forçados, o czar exigiu toda uma sádica encenação. Em O Idiota, Dostóievski, através de um seu personagem, faz uma breve alusão a este momento de quase morte.
Iniciada, no número de Inverno de 2019, a presente rubrica visa, mediante solicitação, a colaboração de escritores e poetas com pequenas crónicas/apontamentos do quotidiano. A Redacção