A situação atual no Sahara Ocidental – o retomar do conflito armado
Breve Contexto histórico
Em outubro de 1975, o Rei Hassan II enviou as primeiras tropas para invadir o Sahara Ocidental, ainda Sahara Espanhol. Em novembro e seguindo conselhos dos EUA e França, iniciou a deslocação de centenas de milhares de marroquinos para ocupar e colonizar o Sahara Ocidental[1]. Liderados pelo seu movimento de libertação a Frente POLISARIO, que já se tinha oposto ao regime Espanhol, os Saharauis não tiveram outra solução senão iniciar uma guerra sem meios técnicos e militares contra Marrocos e a Mauritânia. Mulheres, crianças e idosos fugiram para o deserto, em direção à Argélia onde construíram os campos de refugiados onde, ainda, permanecem e residem entre 200 a 300 mil almas, dependendo da época do ano. Uma outra grande parte vive na Diáspora (Espanha, França, Bélgica e outros países do norte da Europa).
Espanha retirou-se do Sahara sob um pretenso acordo tripartido, inválido perante a lei e contrário a todas as decisões das UN. Haia já tinha emitido um parecer onde claramente dizia que o território não pertence nem tem laços de soberania com Marrocos. Em 1963 é incluído nos territórios não autónomos pendentes de descolonização das Nações Unidas e consta hoje tendo como administrador de jure Espanha e administrado de facto Marrocos[2] [3].
A Mauritânia retirou-se dois anos após o início da Guerra. E apesar da dimensão do seu exército, do apoio técnico-militar e económico, Marrocos começou muito cedo a perder batalhas, levando-o a construir o maior muro militar minado da história contemporânea[4] com quase 3000 km de extensão dividindo o Sahara Ocidental, tornando-a a área mais minada per capita do mundo. Em 1991, a Frente POLISARIO e o Reino de Marrocos assinam um cessar-fogo sob os auspícios da UA e da ONU cuja premissa era a realização de um Referendo para assegurar a autodeterminação do povo saharaui. Seguiu-se um período de elaboração de censos pela MINURSO[5]. Marrocos opôs-se desde o início sabendo que iria perder. Seguem-se inúmeras “rondas de negociações” com enviados pessoais dos vários Secretários Gerais das Nações Unidas sem qualquer êxito e com um único intuito de prolongar o lento genocídio do Povo Saharaui[6], o aumento da presença da colonos Marroquinos[7], o espólio ilegal dos recursos naturais e um posicionamento vergonhoso da Comunidade Internacional que assiste em silêncio desde 1975 a bombardeamentos de Napalm e Fosforo Branco, à colocação de minas, à construção do Muro, aos milhares de presos políticos e às torturas a que são submetidos diariamente os saharauis.
A MINURSO transformou-se num grupo almoçarista-excursionista que se banha nas praias, visita aos fins de semana as ilhas Canárias e esbanja gasolina nos seus todo-terreno, de matrículas marroquinas e com motoristas, maioria marroquinos. Ex-membros têm denunciado a sua complacência e até conluio com Marrocos, mas apenas após se reformarem e já não fazerem parte do staff da ONU.
Situação atual
No dia 13 de novembro de 2020, Marrocos violou o cessar-fogo[8] de 1991 ao atacar um grupo de manifestantes civis pacíficos saharauis em Guergarat, zona tampão sob jurisdição da MINURSO, que protestavam a construção e utilização, por parte de Marrocos, de uma estrada de ligação com a Mauritânia atravessando território da RASD[9], estrada esta utilizada por Marrocos para exportar produtos e recursos naturais espoliados nos territórios ocupados, e rota de narcotráfico. O protesto começara em outubro, sempre com a presença da MINURSO, que “desapareceu” poucas horas antes do ataque de Marrocos. O exército da RASD (ELPS) conseguiu resgatar e colocar em segurança os saharauis.
Desde aí que os bombardeamentos da ELPS são diários e já atingiram o interior de Marrocos perto da fronteira com o Sahara Ocidental. Marrocos nega a existência da guerra, no entanto utiliza UCAV (drones de ataque) que já atingiram Mauritanos e Argelinos, além de Saharauis. O Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto tem desde fevereiro de 2021 uma página web[10] que acompanha os ataques, através de análises estatísticas do Teatro de Operações, Media e Twitter.
Desde essa data que a repressão nos territórios ocupados viu uma escalada brutal com um cerco total à população saharaui por parte das autoridades de ocupação marroquinas.[11] Só no primeiro mês registaram-se dezenas de detenções arbitrárias, habitações foram cercadas e sob vigilância 24h até à atualidade. O caso mais grave e conhecido é da ativista Sultana Khaya e da sua família em Bojador. Sob cerco policial desde 19 de novembro 2020, não podem sair de casa sem que sejam de imediato violadas. Nessa casa, vivem Sultana, a sua irmã, a sua mãe e um sobrinho de 18 meses que também já foi vítima de abusos. Ali Salem Tamek, membro da CODESA (associação saharaui de direitos humanos), sob vigilância desde setembro 2020, teve a sua casa invadida pela polícia durante a festa de aniversário do filho de 5 anos. As mulheres da família foram molestadas em frente às crianças.
As detenções arbitrárias têm sido quase diárias, sobretudo de saharauis entre os 16 e os 40 anos. As acusações são baseadas unicamente em documentos produzidos pelas autoridades marroquinas, sem provas e com confissões obtidas sob tortura. Nas escolas, as crianças são vítimas contínuas de maus-tratos, discriminação, humilhação, obrigadas a cantar o hino marroquino e seguidas nas ruas, num constante clima de ameaça e terror[12]. O caso mais chocante foi o de Hayat, uma menina de 12 anos. A própria professora alertou as autoridades para o facto de ela ter desenhado uma pequena bandeira do Sahara Ocidental na sua bata. Foi levada para a esquadra onde foi espancada, obrigada a andar de joelhos, cantar o hino marroquino, beijar a foto do Rei de Marrocos e, por fim, molestada sexualmente. A família recebeu ameaças e não apresentou queixa.
O clima de terror estende-se aos hospitais onde é recusado qualquer tipo de tratamento aos saharauis. Nas prisões os maus-tratos e tortura aumentaram. Sobretudo o grupo de Gdeim Izik (19 presos políticos) tem sofrido represálias[13]. Mohamed Lamin Haddi entrou em greve de fome a 13 de janeiro que manteve durante mais de 70 dias. Sem qualquer contacto com ele, tanto a família como a advogada têm apresentado queixas e pedidos de visita, ainda não atendidos, passando a constar da lista de “desaparecimentos forçados”.
O Comité contra a Tortura das Nações Unidas (CAT) tem recebido queixas apresentadas pela advogada de defesa Olfa Ouled em nome de vários dos Presos do Grupo. O CAT emitiu várias medidas de proteção urgente para garantir a integridade física destes presos, desprezadas mesmo após a jurisprudência de dois casos em que o CAT afirma a tortura continua destes presos desde 2010. Marrocos não respeita o convénio contra a tortura e o seu protocolo opcional, ambos ratificados pelo Reino, pelo qual recebe milhões da União Europeia pelos “esforços” no âmbito dos direitos humanos.
António Guterres, o Conselho de Segurança da ONU e a União Europeia desde o fim do cessar-fogo têm desempenhado o papel dos “3 macacos” (não ver, não ouvir, não falar). De facto, o SG descreveu a situação no Sahara Ocidental no seu relatório de 2020 como “calma”[14], fator que contribuiu em parte para a revolta dos saharauis, que estavam já desencorajados com a falta de ação e não cumprimento das promessas feitas.
A União Africana aceitou a entrada de Marrocos, apesar do Reino violar o artigo 4 do ato constitutivo, o respeito das fronteiras herdadas do colonialismo. Desde a entrada que os conflitos verbais e até ataques físicos a representantes da RASD (membro fundador da UA) têm sido uma constante. Não obstante a UA tem repetidamente condenado as ações de Marrocos e a ocupação do Sahara Ocidental nas várias cimeiras, querendo ter uma parte mais ativa na resolução do conflito para alcançar a autodeterminação do povo saharaui e a retirada de Marrocos[15].
O Conselho de Segurança da ONU tem sido ineficaz e pouco objetivo, tendo vindo a alterar a terminologia ao longo dos anos relativamente ao conflito. O problema, que tem sido denunciado por vários membros não permanentes do CS, por exemplo a África do Sul, e mesmo pela Federação Russa (membro permanente), prende-se com o facto dos EUA serem o redator das resoluções que não são discutidas com os membros do CS e com o constante apoio de França a Marrocos, que ameaça usar o seu direito de veto sempre que se quer avançar no processo do referendo ou incluir na MINURSO um mandato de proteção dos civis saharauis.
A União Europeia por seu lado tem sido um infrator ativo do direito internacional, apoiante e financiador de Marrocos, desrespeitando as decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia[16], que afirma claramente em todos os seus acórdãos: o Sahara Ocidental não pode ser incluído nos acordos com Marrocos visto tratar-se de um território distinto e separado. A corrupção dentro da União Europeia levou inclusive à demissão de deputados com ligações políticas e financeiras a Marrocos. Portugal tem tido um papel lamentável, desrespeitando em absoluto o artigo sétimo da Constituição Portuguesa: “Portugal, reconhece o direito dos povos à autodeterminação e independência e ao desenvolvimento, bem como o direito à insurreição contra todas as formas de opressão.”
Entramos em fevereiro numa nova fase desta guerra com a RASD a publicar os nomes dos militares marroquinos[17] que foram mortos em combate. Igualmente a Frente Polisário que é perante a ONU o legítimo representante saharaui, está à mesa das negociações e já deixou claro que não existe outra solução que não seja a autodeterminação do povo saharaui, não se abstendo de recorrer a todos os meios necessários apesar de preferir uma solução pacífica negada durante 29 anos de cessar fogo em que os saharauis, nos territórios ocupados, continuaram a ser massacrados, oprimidos e a viver num regime de terror; nos campos de refugiados, no meio de um deserto inóspito, totalmente dependentes de ajuda humanitária.
A última colónia de África entrou de novo em guerra devido à inação e cumplicidade da comunidade internacional perante uma ocupação selvagem e ilegal. Situada numa região extremamente volátil onde a paz está longe de ser alcançada, este conflito pode ter implicações muito para além das suas fronteiras e criar um efeito onda.
É imperativo que a Comunidade Internacional cumpra os seus compromissos com este povo que resistiu de forma não violenta durante 3 décadas e que sofre a ocupação militar há 47 anos.
Notas:
[1] Marcha Verde
[2] https://www.youtube.com/watch?v=PGHrXeye4mM&ab_channel=CEAUPCentrodeEstudosAfricanos
[3] https://minurso.unmissions.org/chronology-events
[4] https://porunsaharalibre.org/2021/07/04/o-muro-militar-marroquino-no-sahara-ocidental/?lang=pt-pt
[5] Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental
[6] https://porunsaharalibre.org/2019/10/14/o-crime-em-curso-de-genocidio-no-sahara-ocidental-por-marrocos/?lang=pt-pt
[7] https://porunsaharalibre.org/2020/05/02/relatorio-dos-servicos-cientificos-do-bundestag-sobre-o-sahara-ocidental-confirma-crime-de-guerra/?lang=pt-pt
[8] https://www.youtube.com/watch?v=amPXFTB1BDM
[9] República Árabe Sahara Democrática
[10] https://www.westernsahara-wa.com
[11] https://www.africanos.eu/index.php/fr/publications/documents-de-travail/964-situation-in-the-occupied-territories-of-western-sahara-since-13th-of-november-2020v
[12] https://www.africanos.eu/images/publicacoes/working_papers/WP_2019_1.pdf
[13] https://www.academia.edu/37155630/The_GDEIM_IZIK_Case_Report_by_International_Observer_Isabel_Lourenço
[14] https://porunsaharalibre.org/2020/11/02/pusl-chama-a-atencao-do-conselho-de-seguranca-para-o-facto-de-que-a-situacao-no-sahara-ocidental-nao-esta-calma/?lang=pt-pt
[15] https://porunsaharalibre.org/2022/02/09/o-quenia-volta-a-colocar-o-sahara-ocidental-na-agenda-da-uniao-africana/?lang=pt-pt
[16] https://porunsaharalibre.org/2019/02/12/pe-ignora-tjue-e-aprova-acordo-de-pesca-ue-marrocos-que-financia-ocupacao-do-sahara/?lang=pt-pt
[17] https://porunsaharalibre.org/2022/02/11/a-polisario-publica-nomes-de-soldados-marroquinos-mortos-em-accao-a-guerra-entra-numa-nova-fase/?lang=pt-pt
Isabel Lourenço
(1966)
Investigadora do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto