Consistência Imaterial e Incisões no Vazio. Notas Sobre o Vazio
A mitologia do vazio comporta vários entendimentos que são alimentados por perspectivas culturais e históricas de todos os momentos do nosso desenvolvimento enquanto espécie. Para os nossos antepassados, o vazio era um território onde somos estrangeiros, um pêndulo entre o ser e o nada, a existência e o vazio, no plano do espaço e do tempo. Contudo, o vazio enquanto ‘não-coisa’, não-substância, conquistou o espaço e passámos a considerar igualmente o espaço em seu redor, delineado por um contorno que era invisível e que, ao tornar-se percepcionável, formou-se enquanto conhecimento de algo. A sua invisibilidade e imaterialidade não limitam a percepção, é o espaço em redor do vazio que nos afecta após a contemplação, e, aceitando o vazio, tornamos o espaço mais completo, pois na fertilidade do vazio existe o espaço flexível e variável — é este estabelecimento de fronteiras que permite desenhar um contorno em redor de algo, que dá uma forma ao objecto, pois não existe um vazio puro numa realidade invisível, invisibilidade que todavia se afirma na sua existência durável.
O seu núcleo é aquilo que aceitamos como vazio, um espaço de acontecimentos, até porque, todos os fenómenos e coisas — existem e são feitos com o propósito de preencher o vazio. O vazio, a potência do vácuo, fica então além do interior/exterior onde se dão os exercícios e práticas que levam à sua ocupação, como o fenómeno de criação artística. A arte, partindo do mundo, dos fenómenos, do que vimos e vemos, é a criação que se dá no encontro do interior, o invisível, infinito e vertiginoso, com o exterior, o mundo de aparências e palpável. Este mundo de aparências, cópia das verdadeiras formas é a única maneira de termos conhecimento sobre as coisas visíveis. Contudo, podemos também falar de uma consciência do mundo exterior e de fenómenos silenciosos que sentimos mas são invisíveis. Este mundo não é criado do vácuo por nós, mas usa-o como ferramenta para o interpretar.
Há um percurso romantizado da história que começa num vazio perfeito e acaba na decadência caótica, uma ideia que não associa o caos a falta de controlo e catástrofe, que, ao invés, embeleza as possibilidades do caos completo; uma ideia adversa a essoutra de que do caos se faz ordem, perspectiva que atribui ao caos atributos negativos, mas dos quais decorre um renascimento. Deste modo, o caos, mesmo quando apresenta um carácter nefasto, não é interpretado pela sociedade como demolidor nem finito, abrindo para possibilidades de regeneração; Mas no núcleo, na génese, começamos do zero, de uma página em branco, com uma tela vazia — partimos da natureza para algo menos convencional, originário de uma outra realidade, um vazio que faz parte da nossa essência e de todas as coisas, um absoluto que tentamos captar. Englobado no mundo natural e para lá dele, a produção vazia e silenciosa do ano zero contínuo é também um absoluto. Absoluto que não contém excepção e que não depende em qualquer condição, não se encontra num segundo mundo. O concreto, tal como o absoluto e a verdade, são propósitos finais de valor da criação, massa sólida que congrega em si as aspirações e o propósito da arte, e este processo tem como culminar o homem exceder-se nesta criação. Apesar da nossa condição mortal e finita, serve-nos que o ser humano prolongue a sua existência nas obras artísticas que desenvolve, novos absolutos interligados por relações.
Para uma categorização do vazio urgem reflexões, pois o mais simples fenómeno ou objecto ou ser tem uma série de estados, ligações e alterações, no fundo, um processo evolutivo. O problema central foca-se na forma e na percepção de formas; e se este vazio é tocável, tangível e maleável. Por si mesmo, o vazio percorreu, progressivamente, diferentes estados. O olhar, a consciência deste, a criação e, na última fase, a assimilação. Um olhar que mostra características, algo de interior que vislumbremos para além do invisível entendendo o vácuo como um espaço que predispõe a interacções, logo favorável a mudanças. De igual modo, importa relacionar o tempo e o espaço com a arte, este barómetro superlativo que atravessa a experiência humana desde os tempos imemoriais.
O vazio nunca é um ‘vazio’ indefinido, abstracto, é sempre um vazio de algo — não existe uma medida entre o ser e o não-ser. Iniciando a caminhada deste ponto, não há ambivalências nem categorizações polimórficas. O ‘nada’ está em referência a algo — que existe ou à afirmação da sua não-existência. O não-ser existe, mas sempre em oposição a uma existência que conhecemos, real ou irreal. Só não seria assim se um vazio pudesse negar a sua existência, mas este afirma-a e assim afirma-se. O ser nega o nada e o nada nega o ser. Uma negação de algo, seja um acto ou um objecto, expressa algo, não consegue anular algo e ser mudo, é sempre constituinte do conceito: o gigante Adamastor pode ser negado seja pela razão ou experiência, ou justificado pela fé ou pela arte, mas concebemo-lo como unidade. Também na sua exterioridade, o espaço vazio é sensível, de hipótese.
É por isso que a pura expressão artística, a essência da arte, é a revisitação do vazio por diferentes caminhos, e a forma estética da nossa época é a exploração desse vazio. A capacidade de combustão interna da arte permite-lhe lidar com os estilhaços e fragmentos, criados pela sua condição de estar perpetuamente num fim; a magnificência da falta ganha força no sistema cultural, e aquilo que era purismo austero, deixa de ser visões de radicalismo para ser aceite como atitude vanguardista. No nosso ano zero contínuo, não lidamos com a necessidade de uma mudança mas com uma alteração de escala. As mudanças no horizonte artístico não fazem do seu estudo arqueologia estática, pois os seus elementos movimentam-se, transformam-se noutras unidades, mas é o padrão que importa, e aquilo que as expressões representam, que vem do núcleo, e não sofreu alterações. Portanto, o propósito da arte é inesgotável e infinito, porque a arte não é um problema em busca de solução.
Há que reconhecer que a nossa inscrição vazia traz significado a um mundo vazio, sintetizado na tela sem moldura, esse elemento fixo de exposição, que concede estatuto à imagem final e a delimita. Ora, sendo os pensamentos as projecções das ideias do indivíduo, a tradução retardada para outra linguagem dos ímpetos criativos é que dá origem à manifestação das sensações. Esta trasladação do conceito para a realidade levanta problemas, pois esse confronto com o vazio pode, porventura, ser um assalto aos sentidos, que erode a sensitividade. A ruptura, na sua forma assumida e perceptível, é o movimento contínuo da parcialidade do vazio. Na sua totalidade, o vazio e o silêncio são imperturbáveis, mas quando apreciados na sua individualidade, os seus cortes são passíveis de percepção e análise.
A mensagem do vazio não peca por indeterminada. A ter falhas, é pela sua complexidade e camadas que ganhou, de acordo com a interpretação por várias culturas. O vazio enquanto manifestação do Nada convida à contemplação e é impossível ignorar a relevância e presença artística e conceptual desta medida para a dimensão humana, para a nossa marca terrena. O ser pensante nasceu com os seus registos, vive através deles, e quando se extinguir, se deixar alguma marca física no espaço que habita, talvez o futuro traga algo que leia a nossa história. O que nos ocupa é o que é um documento, um registo, e como este é elevado a arte. A investigação de novas linguagens serve como motor para retomarmos posse da experiência artística, revelando a existência do espaço ocupado e do espaço vazio, invisível. Existe então este espaço entrementes, entre as estrelas e os planetas, entre nós e os outros. Se por um lado, o vazio neutraliza em vários sentidos; por outro, justifica a análise e vai ganhando contornos e detalhe. Assistimos à experiência de vazio e a sua consciencialização quando vazio de presença de matéria, transformando-se em espaço de envolvência, em direcção às fronteiras.
O vazio de que tratamos não surge sem conteúdo nem tem o seu início numa tentativa de retratar a sociedade pós-milenar. De resto, não se depreende de que o nada a que nos referimos seja desprendido de conteúdo, até porque “nada se cria a partir do nada.” Conforme a antiga máxima ‘ex nihilo, nihil fit’ – do nada vem nada –, que só encontra causa nele próprio e produz-se a si mesmo.
Se concebermos portanto o vazio como um espaço sem consciência, sem algo que o percepcione, este é encarado como pureza, daí a adição e a sua negação; no fundo, a interacção que expande o vazio para lá do essencial, que resiste por si só e que o eleva a tornar-se uma construção, um projecto. O vazio funciona como o arkhé Grego, o princípio ou fundamento de qualquer categoria que se conceba. Nele, em potência existe tudo: o criador é que vai retirar do vazio o que e quanto lhe interessa – como se apresenta, não tem forma, o acontecimento é intemporal. Ora este vazio é algo de que somos conscientes, temos consciência dele. E através da arte, foram-lhe dispostas várias formas para se manifestar e vemos várias maneiras de existirem e serem. Pelo domínio que exercem na nossa concepção da criatividade, temos um conhecimento real do vazio com uma propensão infinita para as suas manifestações. É portanto importante como transpomos o mais vasto e mais primitivo domínio quantificável no qual assenta o nosso ser – tornar o vazio num vazio sustentável e suportável. Este nada cheio, transbordante de significado, cujos traços do vazio surjam alicerçados por um espaço medido emocionalmente, tal como um espaço medido matematicamente.
De igual modo, é nosso dever e interesse, enquanto espécie, de o dotar de uma sensibilidade para a carga da presença e da ausência, pois o vazio também é um paradoxo, bem como de convertê-lo para linguagem. E é neste ponto que a arte actua como descodificador, servindo-se das suas características reveladoras do inquantificável. O sentido do vazio encaminha-nos, não para a dispersão, mas sim dando uma direcção; foca-nos para os sentidos em si e para interpretarmos o que nos impacta. Podemos associar comportamentos ou sentimentos à nossa percepção de vazio, a um consenso na nossa linguagem que traduz aquilo que pensamos ser apreendido pelos nossos semelhantes, mas, na realidade, nós só conseguimos falar destes significados subjectivos. Com essa capacidade, surge uma nova visão do mundo, uma versão que se ergue a partir de detalhes e fragmentos.
A nossa aprendizagem do mundo constrói-se segundo o progresso humanístico de mudança e, a existir algo semelhante a uma espécie de vazio, constatou-se que a falsídia da arte oculta ou dissimula esse vazio no plano da realidade que nos é permitido conhecer, o aqui e agora, dentro das fracturas que constroem sombras. E o vazio, insubstituível e inegável base de toda a criação artística, condicionado pela sua vacuidade, contribui para o processo de edificação, de intensificação das formas, e, por isso, retira as dúvidas do verdadeiro invisível que a arte procura traduzir. Procurando interferir com outras práticas, esta função de elo intermediário serve o propósito de ambas e conflui numa arte plena, que pode ser despojada de pigmentos mas cravejada de conceitos e referências — a arte enquanto abertura ao invés de ser solipsista, fechada em si. É a origem da atmosfera vazia que nos rodeia e em que não tocamos, semelhante às primeiras formas que imaginamos, de limites nebulosos, e parece-se com aquilo que esquecemos, o vazio que nos preencheu antes de sabermos que era vazio que nos rodeava. Desta consistência imaterial que passamos a sentir, sentem-se incisões nas coisas prazerosas ao olhar e em harmonia entre si — e da necessidade de desvio, de amarrotar a folha branca, que daqui nasce.
A caminhada para os conteúdos não-físicos, em rede, leva a uma simbiose entre o tamanho da forma e o significado do conceito. A forma existirá sempre, seja abstracta ou realista, definida pela proporção, ritmo, escala, textura, volume, entre outros. A artificialidade dessas formas (pela supressão de luz, tempo e o controle de criar uma caixa isolada das alterações do mundo exterior), permitem uma relação especial entre o espaço arquitectural e o espaço habitado, uma dualidade entre o eu e o meu olhar, espaços que só ganham vida com a presença física de público espectador e que são uma componente importante na história da nossa absorção do que nos rodeia. Sem o espectador, após o que desaparecem, fica a obra sem objecto para a posteridade, pelo que o vazio precisa sempre de ter um olhar sobre ele. Presenciando o vazio, não podemos ver um segundo vazio noutro plano, pois tudo é vazio excepto o que está preenchido, o que é um dado concreto.
A sua manifestação é na forma de um buraco de acesso às representações do sublime no nosso subconsciente, uma inversão, o virar do avesso que nos dá uma revelação acerca do espectador e não da obra. O vazio contido no objecto que a audiência deixa mais vazio ainda. O invisível e imaterial das emoções que têm forma no objecto artístico desperta uma emoção no espectador, que por sua vez projecta essa emoção na obra, engrandecendo-a, estimulando emoções noutro imaterial, um outro espectador. Entenda-se que a glorificação do vazio teve como consequência a elaboração do espaço artificial e da elevação dos objectos comuns a arte. E este vazio é precisamente uma forma de suspensão; não da realidade, não ‘da descrença‘, mas uma consideração sobre o levitar da arte, a paragem do tempo no espaço vazio imune à sua passagem; aferindo-se que o presente é uma mescla tão profusa, de vários e diversificados tópicos, que, a um mesmo tempo constrói, desconstrói, monta, desmonta e cose, engloba e cruza, o nada, o zero, o vazio, o silêncio, o ruído, o negro, o branco, a luz.