Testemunhos da História – O processo criminal na farsa da “justiça” política sob o fascismo

Para impor, fora de qualquer dúvida, aquilo que designava como “acção de defesa da sociedade organizada e do Estado”, o regime originado pelo movimento militar de 28 de Maio de 1926 fez sair, durante a década de 1930, sucessiva legislação criando e remodelando organismos policiais, institucionalizando a repressão política de quem se lhe mostrasse desafecto. O julgamento da matéria penal assim congeminada competia a um tribunal de excepção, o Tribunal Militar Especial que, à maneira da tropa de então, cumpria com mão pesada o objetivo do Governo, privilegiando a pena de desterro com prisão no lugar do desterro. Foi o tempo da criação do Tarrafal, da deportação para Timor e outras Colónias, da Revolta dos Marinheiros, das greves na Marinha Grande. Foi assim até 1945.

Em Outubro de 1945, na ressaca da Segunda Guerra Mundial, o regime viu-se na obrigação de reformular a sua máquina repressiva, desmilitarizando a justiça política. Recuperou o figurino da instrução a cargo da polícia, banido da Alemanha do III Reich pela vitória dos Aliados, e montou um sistema de justiça privativa da polícia política (PVDE/PIDE/DGS) constituído pelo aparelho repressivo, legislativo e judiciário, que perseguia, julgava e condenava os resistentes ao regime.

Com a cúpula em dois Tribunais Plenários Criminais (TPC) nas comarcas de Lisboa e do Porto, esse sistema da justiça da polícia política estruturava-se do seguinte modo:

  1. Tribunais especiais, com legislação ad hoc que expressamente lhes era destinada ou adaptada das leis gerais, funcionavam nos tribunais criminais daquelas duas comarcas (Boa Hora e S. João Novo), presididos por um Desembargador (juiz da Relação), tendo como assessores dois juízes Corregedores das Varas Criminais da primeira instância. A presidência de um Desembargador era razão para que dos acórdãos do Plenário não houvesse recurso para a Relação, mas diretamente para o Supremo Tribunal de Justiça, com o que ficava eliminado um grau de jurisdição no julgamento do processo.
  2. Sem instrução judiciária (presidida por um juiz de instrução), apenas com instrução policial, feita por funcionários da polícia política, nas respectivas instalações, sem a presença de advogado, ou seja, sem quaisquer garantias de defesa, o processo, finda essa instrução, transitava formalmente da tutela do Ministério do Interior (polícia) para a do Ministério da Justiça (tribunal), sendo distribuído a uma das Varas Criminais.
  3. Um juiz Ajudante do Procurador-Geral da República representava no Plenário o Ministério Público (MP), deduzindo a acusação pública em conformidade com aquilo que a polícia fazia constar dos autos. Longa mão da polícia no Tribunal Plenário Criminal, era o “representante do Estado” enquanto parte acusadora, e constituía o elo da continuidade formal do processo entre a polícia e o tribunal.
  4. A acusação pública era aceite por despacho do Corregedor, e a pronúncia provisória era notificada ao réu, que tinha então cinco dias para, pela primeira vez, tomar conhecimento dos autos, isto é, saber do que era acusado, contestar e apresentar rol de testemunhas, nomeando advogado que, nesse curto prazo, tinha que tentar desmontar uma instrução que, durante meses, sem qualquer limitação, a polícia engendrava, no segredo dos gabinetes, salas ou curros aonde a lei não alcançava. O sarcasmo da fórmula tabeliónica, a que recorriam os advogados numa contestação despida de factos – “o réu oferece o merecimento dos autos” – era o modo de a defesa manifestar o desprezo que lhe merecia uma instrução policial assente na ausência da lei e no uso e abuso da tortura.
  5. Assim “judicializado”, o processo estava pronto para julgamento, mantendo-se afecto à Vara Criminal para toda a tramitação processual. Era a primeira intervenção de um juiz togado no processo – juiz esse que seria um dos assessores (“asas”) do Coletivo do Plenário. Ou seja: o juiz que, numa primeira fase (no gabinete) validava a instrução avalizada pela acusação pelo Ministério Público, era o mesmo que a seguir (na sala de audiências) julgava essa sua decisão, perante uma “matéria de facto” que, pela sua própria natureza, não podia ser controvertida em julgamento por testemunhas meramente abonatórias da personalidade do réu, e que seria confirmada pelos polícias instrutores, dados como testemunhas acusatórias.
  6. Em julgamento, os processos da polícia política eram, por norma, “carimbados” pelo Coletivo do Plenário, com penas de prisão maior (superior a dois anos) a que era descontada, por metade, a prisão preventiva sofrida (até 180 dias, em regra), e às quais podiam vir a acrescer medidas de segurança de internamento, indefinidamente prorrogáveis, uma virtual prisão perpétua. O exotismo da contagem apenas por metade da prisão preventiva era mais uma circunstância que inibia o réu e o seu defensor na decisão de recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça da sentença condenatória, já que cada mês de demora até à decisão final contava apenas por quinze dias de privação da liberdade.

A sala de audiências era exclusiva do Plenário, e o seu préstimo, no Tribunal da Boa Hora, encontra-se agora assinalado por uma lápide, descerrada após a Revolução de Abril. A sua ocupação por pessoal da polícia restringia o acesso ao julgamento de familiares e amigos dos presos, e até de simples curiosos que tiveram ocasião de assistir a agressões verbais e físicas de agentes a réus e advogados, bem como à prisão, julgamento imediato e condenação a prisão, multa e medida de segurança de proibição do exercício da atividade profissional de um advogado, por alegado desrespeito ao tribunal quando denunciou publicamente a falta de isenção daquela justiça e da independência daqueles juízes na farsa que ali se representava.

O cumprimento das penas de prisão e das medidas de segurança de internamento, aplicadas pelo Tribunal Plenário, ocorria em estabelecimentos prisionais (Forte de Peniche e Cadeia de Caxias, em especial) formalmente dependentes do Ministério da Justiça, através dos seus Serviços Prisionais, mas na realidade sob o controlo constante da polícia política, que dispunha, no caso da prorrogação das medidas de segurança, de um poder decisivo.

Donde se alcança que, sob o fascismo, por quase meio século, a repressão por via judiciária da resistência ao arbítrio e à prepotência do regime assumiu a forma de um sistema de justiça paralelo ao sistema de justiça comum: um sistema privativo de uma polícia política que não dependia do Ministério da Justiça, mas do Ministério do Interior, mera correia de transmissão da Presidência do Conselho de Ministros. Era assim.